Jesus é apresentado no tipo de situação que servia como base para as criticas distorcidas, mencionadas no episódio precedente (v. 34). As narrativas do Evangelho deixam a impressão de que ele era um conviva procurado e bem-vindo em em ocasiões festivas. Ele também não era excluído das casas dos fariseus, o que indica que, pelo menos durante uma parte do seu ministério, a hostilidade farisaica contra ele não era total. Para este vislumbre da relação de Jesus com alguns dos fariseus, somos devedores a Lucas, que fala de duas outras ocasiões em que Jesus comeu com eles (11:37; 14:1). Embora ele se identificasse primordialmente com pessoas dos níveis mais baixos da sociedade, nenhuma pessoa ou lar estava fora dos limites para ele. Falando que ele reclinou-se à mesa deve-se ter em mente que as pessoas ficavam semideitadas ao redor da mesa, sobre almofadas, enquanto comiam.
Em tais ocasiões, a hospitalidade do Oriente Médio requeria que ninguém fosse barrado à porta. Era comum entrarem pessoas das ruas, e permanecerem por ali, observando as festividades. A mulher que entrou é chamada de pecadora, palavra que tem a conotação genérica de impureza ritual (veja 5:30). Não obstante, essa mulher de muitos pecados (v. 47) provavelmente era prostituta. O uso absoluto da expressão "mulher pecadora" ocorre neste sentido na literatura rabínica (Strack-Billerbeck, 11, 162).
A cena que se segue é das mais pungentes e belas do Novo Testamento. Cada gesto dessa mulher, indica grande humildade e senso de indignidade na presença de uma Pessoa que é genuinamente boa. No entanto, percebemos também que tinha ela inteira confiança em que essa pessoa boa não tivesse a atitude que tinha o fariseu. Pelo fato de seus pés se terem estendido, enquanto ele se reclinava à mesa, a mulher pôde se aproximar de Jesus discretamente, para ungir os seus pés com o bálsamo que trouxera para esse fim. Antes de poder se desincumbir de sua missão, todavia, ela fica tão emocionada que chora sobre os pés de Jesus, e, não tendo outro recurso, enxuga-os com os seus cabelos.[1] Beijar os pés de uma pessoa era sinal de profundo respeito. E, indubitavelmente, de humildade da parte de quem beijava.
O fariseu se apressa a tirar certas conclusões que traem as suas pressuposições. Visto que um homem bom como Jesus certamente não iria permitir que uma mulher daquele tipo o tocasse, ele não devia estar sabendo que espécie de pessoa era ela. Conseqüentemente, ele não podia ser um profeta, pois um homem com os dons de um profeta discerniria o caráter dela.
Jesus demonstrou que possuía dons proféticos, discernindo os próprios pensamentos indignos do fariseu. Agora ficamos sabendo que o nome do hospedeiro era Simão (cf. Mar. 14:3). A Parábola do Credor Incompassivo serve para ilustrar, simultaneamente, a relação do homem para com Deus e para com outros homens (cf. Mat. 18:23 e ss.). Diante de Deus, ele é um devedor desesperado. Que diferença faz se a dívida é de quinhentos denários ou cinqüenta, se a pessoa não pode pagar? Com relação aos outros, o homem é um co-devedor, cujas pretensões de superioridade moral e religiosa são completamente irrelevantes. Quinhentos denários representam os pecados da mulher; cinqüenta, os pecados de Simão. Mas este é o quadro visto do lado do homem, e não de Deus. Todos estão desesperadamente endividados, mas alguns se enganam, tentando crer que o seu pecado não é tão grande, em comparação com o dos outros. Essa parábola também ensina que Deus não é como os homens, exigindo asperamente o contrapeso de cada um em relação aos pecados cometidos. Ele perdoa livremente os pecados dos homens.
Esta parábola é a base para uma comparação humilhante entre o homem justo e a prostituta. Em Lucas, as pessoas que se orgulham de sua piedade e que não têm senso das suas necessidades pessoais são colocadas frente a frente com as pessoas que desprezam, a fim de dramatizar o perigo do orgulho moral (cf. 18:10 e ss.; 21:1 e ss.). A atitude de Simão para com Jesus é verificada quando ele deixa de lhe oferecer as comodidades sociais aceitas na época: água para lavar a poeira dos seus pés, o beijo de saudação, e o óleo para ungir a cabeça, como gesto de honra.
Jesus se volta para a mulher, trazendoa, com este gesto, para o círculo. Vês tu "- esta mulher? Não! Simão não a tinha visto! Ele a havia classificado e desprezado, como alguém que estivesse em posição muito baixa para ser notada. Ele a havia despersonalizado, pensando nela como sendo apenas igual a todas as outras mulheres de sua laia. Mas em todos os aspectos demonstra-se que essa mulher é superior a Simão. Ela tem uma capacidade muito maior de amor e gratidão, baseados, como Jesus ensina, na sua capacidade para receber.
Desde que entrei dá a entender que a mulher havia seguido Jesus quando entrara na casa. A luz do diálogo seguinte, é provável que o fato de ela ter sido perdoada por Jesus precedesse a cena descrita aqui. O seu ato, assim, fora uma expressão de gratidão pela aceitação e amor que ela já havia encontrado.
Os versículos 47 e 48 parecem estar em pendência com a parábola dos versículos 41 e 42. Na parábola, amor é a.reação ao perdão, enquanto a interpretação natural dos versículos 47 e 48 é de que o perdão é uma reação ao amor. A dificuldade é removida se traduzirmos: "O grande amor que ela demonstrou prova que os seus muitos pecados foram perdoados" (v. 47a, The English Version). Esta tradução coloca a primeira parte do versículo em harmonia com o versículo 47b (omitida por D) e a narrativa precedente. A declaração pública de Jesus, de que perdoados são os pecados dessa mulher, provoca uma reação hostil (veja ) 5:20 e ss.).
A fé da mulher era a sua crença de que a palavra de perdão pronunciada por Jesus era nada menos do que a palavra de Deus. Na verdade, a fé não salva uma pessoa. pois o homem é salvo apenas pela graça de Deus. Mas a fé é a receptividade essencial para a atividade redentora de Deus. A mulher é declarada como possuidora da paz messiânica, uma palavra que é praticamente equivalente à salvação. Agora não existe tensão entre ela, a pecadora, e Deus. Por que ela sabe que é aceita e perdoada por Deus, pode perdoar a si mesma e levantar a cabeça diante dos outros. O milagre de Jesus tê-la aceito é claramente visto. Sob a influência dessa aceitação divina, as prostitutas descobrem o seu valor pessoal, como filhas do Deus vivo.
[1] Esta história tem afinidades com duas outras, nos Evangelhos {Mar. 14:3 e 55.; João 12:1 e 55.). A omissão de Lucas a respeito da história que Marcos conta, em sua narrativa da paixão, deve ser devida à sua semelhança à narrativa feita aqui. Creed acha que o notável paralelo entre João 12:3 e Lucas 7:38 é explicado por estar João dependendo de Lucas (p. 110). Não obstante, toda a questão do relacionamento literário entre João e Lucas é enigmática, e para ela nenhuma solução satisfatória foi dada até agora
Este paralelo da paz com a salvação é uma idéia que aproxima do pensamento espírita; salvação como libertação interior dos conflitos entre nós e Deus.
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