LEDA MARIA FLABOREA ledaflaborea@uol.com.br São Paulo, SP (Brasil) |
Sabemos que Jesus não deixou nada escrito e por isso muitas palavras atribuídas a Ele não condizem com sua forma
amorosa de ensinar. Mas aqueles que combatem o
Cristianismo em geral e o Espiritismo, em particular,
usam esses argumentos para contestá-lo
Voltemos um pouco no tempo que antecedia a vinda de Jesus. Os conceitos éticos ainda não definidos, não estruturados, cresciam num contexto perverso:
- predominância do direito da força sobre a força do direito;
- escravidão política, social, econômica, de credo e de raça;
- a família submetida ao patriarcado soberano e às vezes cruel;
- os interesses girando em torno da posse, fosse de bens materiais ou de pessoas.
Por outro lado, na religião ocorriam transformações acentuadas:
- o paganismo, culto a vários deuses, entrava em decadência;
- o sacrifício humano para aplacar a fúria divina era substituído, em Israel, pelo sacrifício de animais, transformados em valiosos recursos para absolvição dos pecados e oferenda de gratidão a Deus.
O discernimento e a valorização da criatura já se iniciavam, passando ela a ser vista como imagem e semelhança de Deus.
Esse processo, que ainda continua em nossos dias, teria que superar todos os impulsos agressivos que constituem a natureza humana, vitimada pela herança animal resultante do processo evolutivo como ser biológico, social e psicológico, ao qual ainda estamos submetidos. É nesse momento, em que os primeiros sinais para a aquisição da consciência individual e coletiva aparecem, que chega Jesus para auxiliar e facilitar a transição da barbárie para a civilização.
Para enfrentar a sombra coletiva em que aquela sociedade estava mergulhada, e também romper com as raízes que ainda prendiam o homem aos sentimentos mais agressivos, Jesus precisou trazer uma doutrina de compreensão e bondade, ternura e compaixão, que não podia ser comparada a qualquer atitude de agressividade interna ou externa, fosse ela ostensiva ou disfarçada.
Era preciso usar de energia e valor moral para enfrentar os desafios que surgiam com a intenção de impedir a marcha para a revolução espiritual que Ele trazia. E Ele não cedeu em nenhuma das diretrizes que traçou para o cumprimento de sua tarefa: romper com as estruturas do passado onde deveria haver: supremacia da humildade sobre o orgulho; supremacia do altruísmo sobre o egoísmo; supremacia da compreensão e da bondade sobre a intolerância.
Essa era, no mínimo, uma nova e estranha moral, por ser diferente de tudo o que existia e por contrariar todas as convicções prevalecentes.
Para usarmos os ensinamentos de Jesus como recursos na superação das nossas dificuldades, precisamos estudá-los
Infelizmente, para a grande maioria de nós, essa doutrina continua a ser estranha porque vem de encontro aos nossos interesses pessoais, aos nossos desejos e caprichos egoísticos. “Não é minha praia”, dizem uns. “Não tenho paciência para ficar ouvindo ou lendo”, dizem outros, justificando a total incapacidade de compreender e muito menos de aceitar os convites que Jesus nos faz para a transformação dos nossos sentimentos, para a libertação dos comportamentos desajustados e doentios.
Mesmo entre os espíritas, essa incapacidade existe. Muitas vezes compreende-se a necessidade de mudar, mas não possuímos, ainda, os instrumentos íntimos para enfrentarmos a nossa realidade. É por isso que ainda precisamos dos ensinamentos de Jesus.
Ele, na verdade, nos convida à terapia da renovação espiritual.
Quando entendemos esse convite, perguntamos: Jesus afastará nossas cruzes? Certamente que não, mas seus ensinamentos transformam-se em instrumentos poderosos para deixá-las mais leves. Contudo, para usarmos os ensinamentos como recursos na superação das nossas dificuldades, precisamos estudá-los a fim de compreendê-los e, compreendendo-os, refletir sobre eles para, depois, podermos vivenciá-los em plenitude.
Sabemos que Jesus não deixou, ele próprio, nada escrito e por isso muitas palavras atribuídas a Ele não condizem com sua forma amorosa de ensinar. Aqueles que combatem o Cristianismo em geral e o Espiritismo, em particular, usam esses argumentos para suas contestações.
É possível esclarecer algumas dessas contradições, tirando algumas dúvidas. Em primeiro lugar, precisamos saber se Jesus, efetivamente, as pronunciou, tendo em vista nada ter deixado por escrito. E, em caso afirmativo, saber qual era o significado dessas palavras na língua em que se expressava, pois, ao lermos ou estudarmos um texto antigo, não importa qual ele seja, não podemos usar os mesmos significados de hoje. No caso específico de Jesus, a língua hebraica não era rica e uma palavra poderia ter mais de um significado. Temos dois exemplos que podem ajudar:
· no Gênesis, livro do Velho Testamento, as frases que indicam a criação do mundo podiam significar um período qualquer e o período diurno. Com o passar do tempo, a tradição encarregou-se de colocar o mundo físico criado em seis dias.
· Outro exemplo pode ser encontrado no Novo Testamento, quando Jesus ensina que é mais fácil um “camelo” passar pelo buraco de uma agulha do que um rico alcançar o céu. Nesse caso o termo que significa camelo também significa cabo. Assim, um erro cometido uma única vez permaneceu até nossos dias. Isso mostra que a tradução de uma língua para outra pode trazer enganos que alteram todo o real significado que se pretende dar ao que se escreve.
A ideia de abandono da família não condiz com a doutrina de Jesus; é, antes, a sua negação
Temos que observar, ainda, a natureza particular de cada língua, a mudança do significado com o tempo, os erros dos copistas daquela época (analfabetos, apenas desenhavam o que estava na frente; qualquer observação que houvesse sido escrita à margem do documento seria por eles copiada como se fizesse parte do corpo do texto), a tradução literal que muitas vezes altera o significado real.
O cap. 23 de O Evangelho segundo o Espiritismo traz quatro desses exemplos e que devem ser compreendidos de forma figurada e não tomados ao pé da letra:
1) Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe..., não é digno de mim. (Lucas, XIV: 25-27, 33).
Se pensarmos na palavra odiar dentro do significado moderno do termo, a frase não fará sentido, pois aí não encontramos a forma bondosa com que Jesus ensinava. Entretanto, se considerarmos a possibilidade de significar amar menos ou aborrecer, poderemos compreender que houve enganos na interpretação, porque na doutrina amorosa do Cristo não havia espaço para a palavra odiar como a concebemos hoje.
2) Abandonar pai, mãe, esposa, filhos, fazendas... para segui-Lo.
A ideia de abandono da família não condiz com a doutrina de Jesus. É, antes, a sua negação. Mas, se pensarmos que o ensinamento contido nessa passagem é para que aprendamos a colocar o interesse da vida futura acima da vida material, então, há concordância com a essência do ensinamento.
Fica claro que Jesus pretendeu nos conscientizar de que a vida futura, ou seja, a vida do Espírito é mais importante que a vida da matéria. É interessante notar que existe a necessidade de separação para o progresso. Quem poderia condenar o filho ou a filha que se separam de seus pais para casarem? E que dizer dos filhos que deixam suas famílias para defenderem seu país?
Emmanuel, no livro Fonte Viva, na lição 58, diz, referindo-se a essa passagem, que abandonar é renunciar. É uma renúncia pessoal. Exemplifica dizendo que “se teus pais não procuram a intimidade do Cristo, renuncia à felicidade de vê-los comungar contigo o divino banquete da Boa Nova, e ajuda teus pais”. Lembra ele que renúncia com Jesus não quer dizer abandono, mas expressa devotamento, pois ele próprio, esquecido por muitos, relegado às agonias da negação, sentindo as angústias do Amor-não-amado, não se afastou do convívio dos seus discípulos. Volta e diz confiante: “Eis que estarei convosco até o fim dos séculos”.
O respeito pelos mortos não deve se prender à matéria, mas se realiza pela lembrança do Espírito ausente
3) "Deixe que os mortos enterrem seus mortos e você vá e anuncie o Reino de Deus." (Lucas, IX: 59-60).
Difícil imaginar que Jesus censurasse o filho que queria cumprir sua obrigação de piedade filial. Qual o sentido desse ensinamento?
Respeito pelos mortos não pode ficar circunscrito à matéria. A verdadeira vida é a vida do Espírito livre do corpo físico.
O sofrimento pela perda não nos permite perceber que o tempo para o cumprimento da encarnação encerrou-se: prisioneiro que cumpre pena não é solto; prisioneiro que não cumpre pena é solto.
Fica claro nessa passagem que o respeito pelos mortos não deve se prender à matéria, mas se realiza pela lembrança do Espírito ausente.
4) “Não vim trazer a paz, mas a espada”. (Lc, XII: 49-53 e Mt, X: 35-36)
Ensinamento: Ele se refere aí ao resultado que adviria do estabelecimento de sua doutrina.
Joanna de Ângelis diz-nos que a estranha moral de Jesus veio como uma espada, para separar a mentira da verdade; a posse violenta da conquista honrosa; nos lares, veio para derrubar as construções rígidas do egoísmo, do patriarcado sombrio, do orgulho de clã e de raça; que a espada veio ferir, fortemente, a ignorância, o orgulho, os preconceitos de cada novo adepto, com lutas íntimas, pela não aceitação por parte dos entes mais queridos, da nova escolha feita.
Exemplo disso foi Paulo de Tarso, rejeitado pela família e tido como louco pelos antigos companheiros de tribuna.
A doutrina de Jesus não trouxe mesmo a paz, pois surgiram opositores ferrenhos, ontem e hoje, tais os detentores do poder, os exploradores da credulidade geral, os usurpadores de bens e de recursos, os perseguidores dos ideais de elevação humana (dentro dos próprios lares). Entretanto, os maiores opositores estão no íntimo de cada um de nós. São os mais difíceis, pois é necessária a espada da decisão para superá-los e deles nos libertarmos.
É verdade que Jesus separou pais e filhos, cônjuges, irmãos, por fazerem oposição à decisão daqueles que se entregaram às transformações morais, mas também os transformou em ponte para tocar outros corações, pelos exemplos que dão ainda hoje.
Concluindo: A nova e estranha moral minava as bases do status quo dos poderosos – como ainda hoje. Morto Jesus, morta a ideia. Mas Jesus sabe que a paz virá, que a fraternidade se consolidará através da fé esclarecida. Por isso prometeu e cumpriu enviando-nos O Consolador, o Espiritismo, para nos ensinar o que Ele não pôde fazê-lo antes, por causa do nosso pouco entendimento, e para nos lembrar daquilo que já havia nos ensinado e que, por causa do nosso egoísmo e orgulho, esquecemos.
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