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segunda-feira, 19 de novembro de 2012
O Conceito de Salvação na Visão de Ubaldi
O Conceito de Salvação na Visão de Ubaldi
O conceito de salvação apregoado pelo cristianismo tem sido objeto de muitas controvérsias, sobretudo no âmbito espírita. A exclusiva visão evolucionista, adotada pelo espiritismo como a única forma de se compreender a vida e o universo, entra em formal contradição com a noção de salvação veiculada pelo fundamentalismo cristão. Será possível conciliar esses dois entendimentos aparentemente antagônicos?
Embasada na tradição judaica e especialmente nas lições de Jesus e nas afirmações de seus discípulos diretos, registradas no Novo Testamento, a teologia cristã entendeu a salvação como a recondução do homem, expulso do Paraíso pelo pecado de Adão e Eva, ao Reino de Deus. Tal conceito se responsabiliza inclusive pela própria definição de religião, palavra que na sua origem latina significa re-ligare, ou seja, a restauração de uma pretensa “ligação perdida” com o Criador. Assim o homem é visto como um réprobo, um pecador, que corre o risco de uma condenação eterna, pelo fato de ser herdeiro da desobediência do primeiro casal. Dessa forma justificar-se-ia a sua necessidade de ser socorrido e resgatado desse mundo.
Essa salvação teria sido proporcionada ao homem pela graça e misericórdia divina, como indispensável quesito a ser adotado pela nossa fé. Bastaria então crer firmemente nessa possibilidade para que ela se efetive em nós. Tal conceito está claramente expresso em todo o Novo Testamento, como, por exemplo, nas palavras do apóstolo Paulo: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras para que ninguém se glorie" (Efésios 2:8-9).
A doutrina espírita, não obstante, compreende o homem como um ser que segue uma trajetória evolutiva rumo à perfeição relativa, por meio da palingenesia (reencarnação), depois de ter sido criado simples e ignorante. Essa visão, que denominamos evolucionista em contraposição ao tradicional criacionismo, não reconhece a necessidade propriamente de uma salvação para o homem. Ele não precisa ser resgatado de nada, senão evoluir. Assim, salvação passa a ser simplesmente evolução – o progresso do ser rumo a condições superiores de vida. Apenas isso.
Nessa particular visão, como estamos todos inseridos na natural progressão evolutiva, todos seremos inexoravelmente conduzidos aos planos superiores do espírito. Desse modo, salvação seria movimento automático, inerente à lei do progresso e pertinente a todo ser vivo. Empenharmo-nos nessa salvação significa acelerar os passos na trilha do desenvolvimento. Quem não se empenha em “salvar-se”, ou seja, aquele que permanece arraigado aos interesses inferiores da vida, apenas tardará mais tempo em atingir os objetivos finais da evolução. Já o indivíduo que segue preceitos morais, esmerando-se na prática sincera do bem, dispõe-se ao mais rápido aprimoramento evolutivo e mais depressa atingirá a vida superior do espírito. Portanto, ao evadir-se dos mundos de expiação e provas mais prontamente desfrutará de paz, equilíbrio e felicidade. Já os egoístas, arraigados aos interesses inferiorizados do espírito, demorar-se-ão nas dores expiatórias, colhendo os mesmos sofrimentos e privações que semeiam pelos seus ímpios caminhos.
Salvação, então, repitamos, passa a ser a aceleração do inevitável progresso da alma. E assim a visão evolucionista negou enfaticamente os preceitos evangélicos de resgate da alma da condenação eterna. Precisamos apressar os passos, mas não guardamos propriamente estrita necessidade de ser salvos, pois não estamos perdidos. A inferioridade em que nos demoramos é condição natural de vida, faz parte do roteiro de criação progressiva das almas – do mesmo modo que não precisamos socorrer nenhuma criança da escola primária, apenas ajudá-la a percorrer da maneira mais rápida possível as suas indispensáveis lições. Eis por que um articulista e escritor espírita publicou, certa feita, em importante revista de espiritismo, um artigo intitulado Salvação? Não obrigado! Dizia o renomado autor: “Não usamos o termo ‘salvação’, que historicamente está vinculado ao salvacionismo igrejeiro, uma solução que vem de fora. Na realidade aceitamos a evolução, a sabedoria e a felicidade para todas as criaturas”.
Exatamente por isso o espírita aboliu a palavra “salvação” de seu discurso. Moldados por essa nova visão evolucionista, proporcionada pelos preceitos kardecistas, os antigos conceitos teológico-cristãos tomaram significados próprios, apropriados à compreensão da vida como um movimento de crescimento de espíritos, criados simples e ignorantes, rumo à perfeição relativa. Salvação, assim, tornou-se, evolução. Pecado fez-se nada mais que o erro do espírito ignorante que ainda não sabe se comportar como o exige a Lei de Deus. Jesus foi compreendido como um educador de almas que veio ao mundo para impulsionar-nos aos patamares superiores da vida. O titulo de “Salvador”, o “Messias prometido”, que Ele mesmo se deu e a história humana corroborou, é-lhe formalmente negado. Ressurreição converteu-se em reencarnação, sem a qual o espírito não pode alcançar os planos superiores da vida onde se encontra Deus. Inferno é panorama íntimo da alma atormentada pelo necessário processo de corrigenda dos erros cometidos. E céu ou paraíso passa a ser condição própria da alma que atingiu estágio superior de vida.
E assim a doutrina espírita construiu uma nova teologia entretecida na exclusiva interpretação evolucionista da vida, a qual dispensa em absoluto o antigo entendimento que o fundamentalismo cristão adotou sobre a salvação. A evolução do espírito é agora movimento inexorável, promovido pela lei do progresso – inclusive os corolários espíritas não admitem o retrocesso da alma –, então não há do que sermos salvos. Caminhando pelos múltiplos estágios da escola da vida, alternando existências ora no mundo espiritual, ora no mundo carnal, progrediremos sempre até atingir, segundo os preceitos kardequianos, a almejada perfeição relativa. Pelas quedas morais, comuns à nossa ignorância, podemos retardar os passos, repetir lições, mas jamais deixaremos de ir adiante, e evadir-nos-emos indubitavelmente dos palcos inferiores da vida. Portanto, Kardec, ao afirmar que “fora da caridade não há salvação”, pretendia exatamente dizer que sem o esforço em realizar obras no bem não há possibilidade de o homem adiantar os seus passos na jornada do progresso. Estacionado nos interesses ególatras inferiores, retardar-se-á, multiplicando assim as suas dores evolutivas e expiatórias – outras consequências não advirão, pois o permanente avanço é inexorável.
Não estamos negando esses preceitos. Eles atendem à nossa lógica e estão perfeitamente aderidos aos nossos conceitos de evolução espiritual. Contudo, podemos, com a ajuda de Ubaldi, lançar um olhar mais abrangente sobre o conceito de salvação, compreendendo outros de seus aspectos, ampliando assim um pouco mais o nosso entendimento.
O estudioso de Pietro Ubaldi percebe que o tema é mais vasto do que imaginávamos. Com a ajuda do iluminado mensageiro da Úmbria, compreenderemos que ele extrapola a moderna compreensão evolucionista e, curiosamente, abarca ao mesmo tempo a clássica visão fundamentalista cristã. Como pode ser isso?
Para compreender, faz-se imprescindível abandonar nossas arraigadas posições dogmáticas. Assim, o cristão fundamentalista deve deixar seu cômodo apego à letra dos Textos Sagrados; e o espírita carece evoluir a sua moderna proficiência intelectualizada. Essa é exatamente a dificuldade, pois o primeiro radicaliza-se em seus preceitos fideístas, e o segundo não dispensa sua contumaz racionalidade. Então ambos não logram percorrer o pequeno trecho que os separa de uma verdadeira síntese de conceitos, que nada nega, favorecendo-nos com uma forma mais avançada e unitária de se divisar a realidade.
Quem não está disposto a abdicar de seu entendimento, e sente-se confortável em seu patamar de compreensão, não está pronto para ir adiante. Ninguém poderá convencê-lo do que quer que seja. A revelação que nos trouxe Ubaldi é conhecimento de síntese que requer peculiar predisposição íntima para ser devidamente apreendido. É o tipo de assunto para o qual devemos estar preparados. E não se presta para quem não está pronto. Portanto não serve para todos. Sabemos disso. Por isso não tratamos aqui de impor verdades a ninguém. Além disso, as verdades são como os frutos, precisam estar maduros para se fazer palatáveis ao espírito. Do contrário, tornam-se amargos e imprestáveis.
Se as lições de Ubaldi parecem, a princípio, ferir nossas mais sagradas crenças, é preciso ainda admitir que o cabedal de verdades disponíveis ao homem atual evidentemente não corresponde à última realidade do Todo. Faz-se impositivo aceitar que estamos todos, absolutamente todos, ainda muito distantes da Verdade plena, pertinente apenas aos altiplanos da evolução do espírito. Por isso, uma postura de humildade é essencial a nossa permanente ascensão espiritual. Importa admitir que cada qual está habilitado a perceber um limitado aspecto da verdade, o qual tomará sempre pelo todo. Exatamente por isso nossas verdades devem ser periodicamente desestabilizadas, a fim de sermos preparados para novas e mais dilatadas compreensões. É assim que evoluímos. Desse modo, derruir antigas verdades e predispor-nos a novas semeaduras de sabedoria é genuína obra do tempo, em ação em nossa intimidade, visando impulsionar-nos para adiante. Essa é exatamente a tarefa dos grandes missionários que periodicamente vêm à Terra e por isso eles nos incomodam. Exatamente porque desestabilizam nossas cômodas posições de entendimento. Fixados em nosso habitual misoneísmo e sem suspeitar que estacionamos em corolários provisórios, apressamo-nos a combatê-los, iludidos de que nossas verdades são eternas e jamais serão demovidas.
Por isso sabemos que sequer com Ubaldi atingimos o ápice da verdade. Em absoluto. Não guardamos tal pretensão. Todos os nossos conhecimentos acham-se incompletos, pois, como seres em crescimento, estamos ainda muito distantes da verdade absoluta. Em razão disso não queremos passar a impressão de que nosso conceito é superior aos demais. Ressaltamos apenas que a revelação que nos trouxe o missionário do Cristo acalma-nos sobremodo o entendimento, apazigua nossos atritos ideológicos e ajuda-nos a melhor aceitar nossos aparentes antagonismos. E, sobretudo, funde-nos perfeitamente com as lições do Evangelho. Eis por que o julgamos essencial para os nossos atribulados dias.
Debulhemos, todavia, sem demora o assunto, para que o leitor compreenda tudo isso que estamos afirmando. Como podemos compreender a salvação tomando por base os ensinos de Pietro Ubaldi?
O filósofo da Nova Era ensina-nos que o universo relativista em que vivemos, entretecido em tempo e espaço, energia e matéria, é uma criação deteriorada, produto de uma contração espiritual que se denominou queda do espírito. E essa criação deteriorada em que vivemos, Ubaldi chamou de Anti-Sistema (AS), por achar-se nos antípodas do universo original, o divino, por ele denominado Sistema (S). Essa queda foi motivada, resumidamente e até onde nossa razão pode alcançar, pela inadequada opção do espírito em vivenciar intensamente o egoísmo.
Uma vez que o espírito arremeteu-se ao AS, detendo-se em sua trama de caos e destruição, somente uma força íntima, em ação na sua própria substância, poderia soerguê-lo da hecatombe do egocentrismo. Eis o novo conceito de salvação, que agora compreendemos como ação de resgate do espírito que caiu nas malhas do relativismo, imiscuindo-se em malogrados envoltórios físicos. De outra forma, não se entende por que Deus criaria seres necessitados de percorrer uma evolução, caracterizada, segundo predisposição natural, por expiações e purgações, dores e atritos, em permanente regime de purificação, como a própria doutrina espírita a define.
Segundo a proposição de Ubaldi, e como aferido pela antiga tradição cristã, a evolução somente se justifica para seres que optaram pela revolta contra o amor. E evolução então, como um movimento de expansão do ser, seria nada mais que a reação a uma anterior avulsão de contração de potencialidades.
Os detalhes dessa queda nos escapam na atualidade, pois ela extrapola o nosso concebível por haver ocorrido fora do tempo e do espaço, muito além do que pode a nossa parca razão atual alcançar. Apenas sabemos que ela se tornou possível na criação original por havermos sido gerados com o princípio de autonomia. O tema, contudo, não pode aqui ser abordado, pela extensão e a vastidão de suas implicações. Recomendamos ao interessado que leia Deus e Universo e O Sistema, obras nas quais Ubaldi detalha essas questões. Para quem deseja uma versão resumida e romanceada do assunto, recomendamos o livro Tabernáculo Eterno, um trabalho de inspiração mediúnica no qual tivemos participação especial, publicada pela Editora Inede.
Mediante o conhecimento da queda do espírito, compreendemos agora que, antes de iniciar a evolução, o espírito sofreu um processo de condensação involutiva que o arremeteu à inconsciência, condição que o espiritismo designa como “simples e ignorante”. Nesse ponto, ele inicia a alçada evolutiva, agora vista como uma reação ao precedente movimento de involução. A evolução passa assim a ser entendida, de fato, como a salvação, ou seja, o movimento de recuperação do ser caído na matéria. Movimento operado por forças poderosas, restauradoras da ordem e da perfeição perdidas, veiculadas pela ação amorosa de Deus. Forças que lutam contra a imposição de desordem e destruição que passaram a imperar ao nosso derredor, as quais se originaram da queda e não propriamente do desejo do Criador. Essa é a maneira mais lógica de se explicar a presença desses processos negativos na criação divina, e aceitarmos o fato de que nosso universo é um palco de batalhas de interesses antagônicos – as forças adversas do AS, contra as potências regeneradoras e reconstrutoras do S. Ora, uma criação homogênea, advinda de uma expressão unitária que é Deus, não poderia admitir essa franca oposição de valores em seu bojo.
Com a queda, patenteia-se que gravitamos entre os impulsos de destruição e do mal (forças AS) e as energias do bem e da ordem (forças S), em um universo dualizado, submetido a uma permanente oposição de valores. E justifica-se porque nosso cosmo se inicia em meio a uma fenomenal hecatombe, o Big bang, ao qual a inteligência divina trata de impor uma progressiva ordem e uma crescente complexidade. De outra forma, como aceitar que Deus, se nada existia, tenha gerado antes o caos para então organizá-lo na paciente esteira do tempo? Ora, o caos somente pode advir de forças desordenadas que se investem contra a ordem, jamais da inteligência suprema que creditamos à infinita Sabedoria do Criador.
Uma vez que se formou, empreendido pelas forças rebeldes, esse reconhecido e ciclópico tumulto do universo físico primordial, de que todos participamos, as potências divinas, reconstrutoras da ordem e do equilíbrio, passaram a agir na sua intimidade fenomênica, a fim de soerguê-lo do caos. É assim que Ubaldi nos afirma que “nosso universo é uma doença no seio da eternidade” que será curada pelo paciente trabalho da evolução, sob orientação divina. A antiga revelação do Gênese mosaico engrandece agora surpreendentemente aos nossos olhos, ao recordarmos sua poética e singela linguagem a nos mostrar a ação divina operando a paulatina ordenação da desordenada massa cósmica na sucessão do tempo, os “dias” da criação.
Evidentemente sempre vitorioso, esse dinamismo reconstrutor do universo desmoronado representa então a salvação de Deus, que, por amor, caiu junto com a criatura para resgatá-la do báratro de desordens em que se precipitou. É exatamente essa, a salvação pela graça divina, que foi definida nos Textos Sagrados, sobretudo no Novo Testamento, e concebida por elevada inspiração mediúnica de seus autores, como sabemos. Em luta contra a dor, a morte e o mal em todas as suas expressões, consequências diretas da queda, esse impetuoso impulso salvacionista, criador e organizador, soergue com êxito o espírito das cinzas de si mesmo, ajudando-o a refazer a organicidade perdida. E o faz por meio da longa e paciente elaboração evolutiva, no grande oceano do tempo, em seus quase intermináveis ciclos de vidas e renascimentos.
Portanto a evolução é o movimento de retorno ao seio divino que deixamos, representando a reconstrução da ordem perdida. Por isso, com efeito, como se deduz com ao auxílio do conhecimento espírita, evolução significa salvação. Movimento que agora imputamos à graça divina, que por amor permaneceu junto à criatura para socorrê-la. Aceitar que o dinamismo evolutivo seja um trabalho de “re-construção” e não de “construção” da ordem, deslinda-nos o tremendo paradoxo de admitir que Deus teria gerado primeiro a desordem no Universo, para somente depois ordená-lo, através da lenta ação do tempo. Isso implicaria que Deus necessita da dimensão tempo-espaço para criar – sabemos que não deve ser assim, pelo fato de o Criador encontrar-se fora do tempo e do espaço. E, afinal, teríamos que negar o critério de perfeição que imputamos a Deus, pois o que é perfeito somente pode gerar perfeição – jamais algo imperfeito. Ainda que admitamos que a criação se aperfeiçoe mediante a impreterível ação da evolução, Deus continuaria eternamente criando sob a chancela da imperfeição.
Assim, entende-se ainda exatamente por que a evolução é laboriosa, cansativa, e se faz um permanente movimento de atritos de interesses divergentes – exatamente porque intimamente resistimos à salvação divina, interessados que nos mantemos em prosseguir nossa multimilenar rebeldia contra a Sua ordem. Entendemos por que Deus está aparentemente ausente da realidade exterior em que respiramos, podendo inclusive ser negada a Sua existência. Elucida-se por que quanto mais primária é a vida, maior é o predomínio de imperfeições e a presença de atrocidades e selvagerias entre os seres. Ora, Deus, que é o amor absoluto, não poderia predispor seus filhos a essa luta de egoísmos ferozes, e sequer entregaria rebentos imaculados, recém-saídos de Suas mãos, a essa inadequada pedagogia embasada preponderantemente no desamor.
Assim aceitamos melhor a razão da existência do cansaço e da dor no grande labor evolutivo. E compreendemos por que este se fez e se faz de constantes atritos, fixando valores positivos, mas também negativos que inclusive preponderam na longa jornada pelo reino animal, a nos exigir depois, uma vez conquistada a razão, o operoso exercício da renúncia para libertarmo-nos de suas descabidas lições. Ninguém pode negar, por exemplo, que o hábito de ludibriar, roubar e matar sejam frutos de nossa exaustiva luta pela sobrevivência no mundo selvagem, onde tais atos são perfeitamente lícitos.
Aclara-se, desse modo, por que a criação progressiva parte de uma apriorística existência de egoísmos inatos que necessitam obrigatoriamente ser lapidados pela dor e pela dilaceração do ego inferior. E esclarece-se por que a elaboração evolutiva trabalha essencialmente a dificultosa transformação de verdadeiras feras, aparentemente assim geradas pelo nosso amoroso Pai, em legítimos anjos. Elucida-se por que a vida exige, através de imenso e incompreensível esforço, que seres arraigados no egoísmo pela experiência dos milênios, modifiquem-se, por esforço próprio, em criaturas capazes de doar sua vida aos semelhantes e não as roubar em benefício próprio, como a vida tão bem lhes ensinou. E assim deslinda-se, enfim, por que somente o amor salva, sendo a única força capaz de retirar o ser do inferno em que verdadeiramente vive e reconduzi-lo à felicidade celestial.
Sem a crença na queda do espírito e a certeza de que habitamos um universo às avessas, impróprio para a nossa vida e nossa ventura, não temos como compreender a salvação. Não saberemos por que Deus nos matricula na escola de lutas da carne, educando-nos, quando ainda tenros, na selvageria de todos os hábitos, para depois, somente depois, quando já nos habituamos às barbáries e experimentamos as carnes dos nossos irmãos, pedir-nos o verdadeiro amor. Torna-se algo incompreensível a um Pai que criou seus filhos unicamente para viver a completude do amor e da felicidade.
Com a falência do ser, compreendemos muito bem agora que a escola da vida que frequentamos não é bem um educandário de seres inocentes, que saíram puros das mãos divinas, mas, sim, um reformatório de rebeldes, destinado a corrigir ignóbeis hábitos livremente escolhidos. E assim torna-se compreensível o fato de que a vida se faz de métodos prioritariamente coercivos para seres aprioristicamente rebeldes. E entendemos por que o espírito cobre-se, no trânsito da vida, com carnes frágeis e degradáveis, as quais objetivam nitidamente abafar-lhe as potências originais do espírito – fato incompreensível se não aceitarmos o pressuposto de que a vida trabalha seres que se fizeram prioritariamente rebeldes, tornando-se inconvenientes para utilizar de forma adequada as plenipotências herdadas do Pai.
Portanto somente aceitando que fizemos uma anterior opção pelo mal conseguiremos compreender as forças em jogo na evolução, as quais não podem ser divinas. A bondade do Senhor permite-nos expressar esse mal, pelo qual optamos, na impropriedade da matéria, até o esgotamento de nossas originais intenções. Porém através do labor evolutivo, que utiliza sobretudo a dor como instrumento de persuasão, leva-nos a agastar nossos hábitos impróprios, educando-nos, pacientemente, na imprescindível arte do amor. E assim deslinda-se por que a vida, quanto mais primitiva, mais se faz um entrechoque de rebeldes, um jogo de violências e mortes – coisa incompreensível diante de um Pai que nos exige a prática do amor acima de todos os outros interesses. Logo, se aceitamos que a vida na matéria se compõe de seres que precisam antes de tudo aprender a coibir iníquos impulsos de revolta contra a ordem, entenderemos a necessidade da limitação de forças que a carne impõe. Fato incompreensível se admitirmos que a experiência da vida parte de seres inocentes, saídos das mãos do Criador em estado de simplicidade e ignorância.
De modo geral, os adeptos da Terceira Revelação não concordam sequer em discutir essas questões, simplesmente por julgar que elas contrariam preceitos registrados nas obras básicas. Tomados por dogmas, não percebemos que esses ensinamentos, considerados ao pé da letra, contrariam o fundamental princípio de amor que deve nortear a obra de Deus. E assim, ao colocar a letra acima da leitura da realidade, passamos a repetir o erro de todas as religiões, fixadas em seus inamovíveis dogmas. Ora, assim como julgamos a doutrina do inferno eterno, apregoada pelo fundamentalismo cristão, absolutamente inconciliável com a bondade infinita de Deus, também acreditamos descabida uma crença que toma a selvageria dos mundos inferiores, a lei de destruição e o mecanismo da dor como processos naturais impostos por Deus, como únicos meios para fazer avançar os Seus filhos. Embora justificados pelos fins, tais meios contrariariam o princípio fundamental e máximo da Criação: a Lei do amor. Além de retirar emblematicamente a perfeição da criação, e consequentemente de Deus.
A queda original é uma bela proposta capaz de elucidar essas questões e solver outros graves embaraços das grandes religiões ocidentais. Deveríamos encará-la com seriedade, destituindo-nos de nossos seculares preconceitos. Ela esclarece de forma brilhante outros empecilhos da doutrina kardequiana, como por exemplo, a informação de que a reencarnação tem como finalidade principal a purificação, como nos informa O Livro dos Espíritos (questões 166 a 170). E a de que vivemos em um mundo de expiações e provas, que faz da dor a sua tônica principal. Sem a queda não entendemos por que Deus criaria seres que necessariamente requerem regime de provações, dores e limitações, coisa somente possível para aquele que erra e se habitua ao erro. E entendemos, finalmente, por que, como nos revela a doutrina espírita, a escala de progressão dos orbes se inicia nos mundos primitivos, bárbaros e selvagens, passa pelos expiatórios, depois os de regeneração, para então chegar aos felizes e divinos. Não nos parece uma ordem adequada a seres inocentes, porém unicamente àqueles que escolheram a rebeldia como forma de viver. Basta examinarmos as nossas escolas infantis – iniciar nossos infantes na barbárie e selvageria de todos os hábitos seria algo inadmissível para nós. E ainda mais: exigir-lhes depois, através da dor, que abandonem os costumes que lhes incitamos inicialmente, seria uma completa injustiça, senão mesmo uma loucura. Admitir que assim atua a inteligência divina é imputar indevida irracionalidade e contra-senso ao Criador. E pior ainda, seria assentir que nosso Pai não se importa com a existência do mal na criação.
Se aceitamos, entretanto, que nossa existência na matéria partiu da rebeldia e da contração de nossas potencialidades originais tudo se esclarece. A evolução foi então precedida por grave contração da perfeição com a qual fomos criados. Resgata-se a perfeição e o amor de Deus. Restará ao estudioso sincero, concordamos, a pergunta: como foi possível a seres criados perfeitos caírem na imperfeição e no mal? Mais uma vez Ubaldi nos socorre explicando-nos que a criação original gerou seres tão perfeitos que lhes era imputada a autonomia, uma vez que Deus não quis criar autômatos, mas deuses-filhos que aderissem a Sua vontade por livre escolha. Aí residia a possibilidade de queda (o fruto proibido). Contudo a perfeição da criação se manteve na plena capacidade de reconstrução do ser, de modo que, ao final da evolução, o universo original estará recomposto em seus impecáveis fundamentos, tais como pretendido pelo nosso Pai.
Mediante o pressuposto básico da queda, a evolução torna-se agora muito mais que simplesmente o nosso progresso rumo aos planos superiores do espírito. É de fato evolução a salvação, o nosso resgate das algemas físicas em que nos prendemos. Representa o esforço que nos compete na reconquista do universo divino que deixamos por livre escolha. Exatamente por isso, André Luiz, o famoso mentor espiritual, define a evolução como “a nossa lenta caminhada de retorno para Deus” (A Vida Continua, FEB, 6ª edição, capítulo 21, página 179). Portanto não estamos em uma trajetória de “ida”, mas de “volta” ao Pai.
Logo, evolução passa a ser efetivamente a nossa libertação dos redemoinhos atômicos onde, através da queda, aprisionamo-nos de modo inconveniente. Verdadeiramente, uma vez gerados no seio imaculado de Deus, como puros pensamentos, não poderíamos nos vestir de “pedra” sem uma razão que o justificasse. E não nos seria possível ter sido criados com diferente natureza, uma vez que somos filhos do Altíssimo – e filho de Deus somente pode ser “deus” também. A opção pelo egoísmo foi o que nos selou esse ominoso destino, por termos sidos gerados, como dissemos, mediante o princípio de autonomia. Então foi através da negação do amor, por livre escolha, que “o anjo se prendeu no átomo” (questão 540 de O Livro dos Espíritos). Após esse movimento de contração dimensional e fuga do seio de origem, somente uma força divina, atuante nas profundezas do ser caído poderia auxiliá-lo a reorganizar-se e a refazer a sua perfeição perdida.
Essa força salvadora soergueu-nos do lodo da matéria bruta para a vida orgânica. Orientou-nos, pelos caminhos dos evos, na laboriosa luta pela sobrevivência. Conferiu-nos todas as oportunidades possíveis para evoluir e fazer desabrochar a consciência que em nós dormitava, desde que “morremos” nos abismos infecundos da matéria bruta. Ela nos resgatou do caos que geramos após a hecatombe da queda.
Pura imanência divina, essa força então é a potência salvadora do universo caído – um novo conceito de salvação que o espírita ainda não absorveu. Sem essa “salvação”, proporcionada por esse extraordinário impulso reorganizador, estaríamos para sempre detidos na inconsciência, pela perda absoluta da organicidade. Sem organicidade não há vida, e sem vida não há consciência. Portanto, conferindo inteira validade aos Textos Sagrados, facilmente aceitamos agora que “a salvação é dom gratuito de Deus, que o Pai nos confere por amor e graça” (Efésios 2:8-9, já citado), a fim de reconduzir-nos ao Seu aprisco de amor.
Enquanto nos detínhamos nos conceitos unilaterais do evolucionismo espiritual, esse conceito se perdera. O fundamentalismo cristão o reteve em sua essência, mas o diluiu igualmente na fatuidade de sua interpretação literal, rejeitada pela razão moderna. Por isso Ubaldi nos faz bem, favorecendo-nos a compreensão das verdades eternas tal como registradas nas Sagradas Escrituras. E apazigua-nos sobremodo o intelecto amadurecido ao aplacar-nos o conflito fideísta em que ainda nos debatemos. Além disso, suas lições despejam inigualável luz sobre os ensinos do Cristo, atualizando-os sob o beneplácito de nossa hodierna dialética evolucionista, que não precisamos abandonar.
Para melhor elucidar o tema, esclareçamos, todavia, que identificamos a existência de dois tipos distintos de ação redentora atuantes na intimidade do espírito em evolução: a salvação pela graça e a salvação pela livre escolha.
Na fase em que o ser é ignorante de si mesmo e de suas necessidades, ele é pacientemente guiado pela inteligência divina que lhe faculta todas as oportunidades para conquistar valores e evoluir. Esta é a salvação pela graça. Por meio dela, o Criador o nutre com uma sabedoria, que ele não detém, necessária à confecção de organismos preparados para a vida e para a luta. Sem essa ínsita inteligência orgânica, orientadora da vida, a evolução do espírito não seria possível.
Ainda que em meio à selvagem luta pela sobrevivência, favorecida pela desapiedada seleção natural própria dos mundos inferiores e selvagens, essa ingênita inteligência guia o ser ao constante aperfeiçoamento e à aquisição de genuínos valores evolutivos. Compreendamos, todavia, ainda que repetindo conceitos: esse bárbaro regime inferior de vida não é uma oferta espontânea do Criador para o simples exercício de crescimento do ser. Não podemos admitir a barbárie dos reinos primários como uma legítima proposta pedagógica de nosso amoroso Pai. Resta-nos então aceitá-la como um inadequado sistema de vida desejado pelo espírito que optou pela revolta e pelo desamor. E Deus o permitiu viver, porém distante de Seu Reino, onde somente o amor é possível. Justo assim que seres que escolheram viver intensamente o egoísmo tenham sido atirados às arenas de luta, dor e morte que preponderam nos mundos primitivos. Deus aproveita esse impróprio modo de viver para educar o espírito e fazê-lo desistir do egoísmo - jamais poderíamos imputá-lo ao amor infinito e à inteligência excelsa de nosso Pai.
Uma vez, porém, que as operosas forças salvadoras de Deus impulsionam o espírito à reconquista da razão perdida, a evolução passa a se tornar um movimento consciente, sujeito então a interferência de sua vontade. Por isso, na fase de evolução consciente em que nos encontramos, nossas escolhas e nosso empenho na reforma íntima passam a influir preponderantemente em nosso avanço evolutivo. Aí sim, a evolução passa a se valer de nossa operante vontade de realizações no bem. Antes disso, era puro e gratuito dom da graça divina. Agora depende de nós e de nossas obras: esta é a salvação pela livre escolha.
Ainda assim, a salvação pela graça divina prossegue atuando em nós nos pontos em que continuamos ignorantes e não sabemos guiar-nos como convém. Ela permanece em ação em nossa intimidade como força reconstrutora e mantenedora do equilíbrio orgânico, permitindo-nos atuar na dura escola da carne, regenerando-nos no trânsito da vida. Essa operante força continua fundida à substância de nosso ser, gerando-nos inteligência molecular, funcional e anatômica, sem a qual não nos fixaríamos na matéria bruta. Então ela age onde nossa inteligência é ainda insuficiente para edificar e resguardar nossos corpos. Essa preponderante ação divina é momentânea e periodicamente suplantada pelos impulsos tidos naturais, de caráter destrutivo, que nos levam inevitavelmente à degeneração orgânica e à morte. Não obstante, é aparente essa vitória das forças do AS, pois a vida, através do sustento divino, refaz-se sempre através do milagre do renascimento, sendo a morte nada mais que condição de uma nova existência, como todos sabemos.
“Salvação pela graça divina” e através de “nossa própria vontade” compõem assim o cortejo das potências redentoras que soerguem o espírito das cinzas da matéria, onde ele encontrou a morte da consciência. Por isso, está certa a doutrina espírita que nos ensina que “a fé sem obras é morta” e “somente a caridade pode nos salvar”. O espiritismo nos fala aqui da redenção consciente que requer o adequado emprego da nossa vontade e nosso empenho em boas obras. Mas o fundamentalismo cristão não se enganou ao afirmar-nos a existência de uma força salvadora inerente à substância da vida, na qual devemos confiar e que inexoravelmente nos socorrerá. Seus mecanismos utilizam a dor e a aspiração pela perfeição perdida como principais impulsores do ser caído, mecanismos infalíveis para reconduzi-lo às suas origens. Essa salvação é obra da nossa mais pura fé. Acreditarmos nela pressupõe entregarmo-nos com extrema fidúcia à sua ação sempre benéfica, amorosa e restauradora, dinamizando-a em nosso benefício.
Essa extraordinária compreensão funde a visão espírita evolucionista com o fundamentalismo cristão. Ela autoriza as lições evolucionistas, mas valida também o criacionismo bíblico, por incrível que nos pareça. A criação divina, como sabemos, permeia a evolução, enriquecendo-a de soluções prontas e inteligentes para os seus desafios. Confecciona corpos e predispõe uma sábia anatomia e uma engenhosa fisiologia adequadas às necessidades evolutivas do ser. Então, de fato, “a salvação é dom de Deus, não de nossas obras, para que ninguém se vanglorie” – estava certo Paulo de Tarso ao exarar a sua famosa frase. Mas está correta também a doutrina dos Espíritos que afirma que somente evoluímos pelo esforço próprio, mediante o nosso empenho em boas obras – fato igualmente registrado na Palavra Sagrada (Mt 7:1 e Ti 2:26).
Impossível negar que forças divinas operem constantemente a nosso favor. Elas nos favorecem, por exemplo, edificando-nos corpos cada vez mais aperfeiçoados, e trabalhando ativa e permanentemente em favor de nossa recomposição. Elas nos conduzem através da sábia linguagem dos instintos, quando ainda não detemos a inteligência suficiente para efetuar nossas escolhas. Isso basta para compreendermos que a salvação vai muito além de nossa mera vontade em progredir e realizar obras de caridade. É evidente que à medida que o espírito progride rumo à aquisição de sabedoria, essa salvação pela graça torna-se cada vez menos operosa, entregando-nos ao nosso próprio trabalho de reconstrução de nós mesmos. Por isso a dor se reduz à proporção que nos tornamos mais conscientes de nosso trabalho evolutivo. Não há dúvida de que inteirarmo-nos de nossas necessidades de reforma íntima e predispormo-nos à realização de boas obras apressará sobremodo o nosso resgate definitivo do universo às avessas em que vivemos, contudo essa ação consciente não seria suficiente para nos socorrer quando ainda ignorávamos essa necessidade.
A salvação pelo esforço próprio, que denominamos autorredenção, está então na alçada de nossas escolhas: dependerá do abandono dos incuriais valores que arquivamos do passado, o homem velho; da renúncia ao ego inferior que ainda portamos; da superação dos hábitos animalizados que automatizamos por imposição da própria da egolatria; de um grande esforço no aprendizado do amor ao semelhante e, enfim, da nossa entrega à vontade maior de Deus.
Autorredenção pressupõe ainda, efetivamente, fazer morrer o personalismo doentio que permanece nos vestindo. Exige o abandono das armas de defesa que confeccionamos na estrada dos séculos, e nas quais ainda nos comprazemos, por serem completamente inadequadas aos fundamentos do amor. E, tomando sobre nossos ombros as nossas dores, significa alçar com bom ânimo o calvário da redenção. Não foi exatamente isso que nos ensinou Jesus em Suas imorredouras lições e seu contundente exemplo? Agora, entendemos por que deve ser assim. Então, é verdade que “fora da dor não há salvação”. E sem a queda, mais uma vez, não compreenderemos por que Deus nos impõe tamanha necessidade para atingirmos o desiderato maior da evolução.
Entender que sofremos uma obra evolutiva de resgate facilitar-nos-á aceitar por que a Lei de Deus, depois de nos educar na luta pela sobrevivência e dotar-nos de terríveis artifícios de ataque e defesa, pede-nos, na fase consciente de evolução que ora percorremos, critérios completamente opostos aos que a escola da vida ensinou-nos na esteira dos milênios. Ao contrário do que a evolução até aqui nos ensinou, devemos agora aprender a doar nossa vida ao semelhante e não roubá-la em benefício próprio. E aclara-se exatamente por que o Evangelho de Jesus é antibiológico, ou seja, ele nos alerta que o fundamental para nossa sobrevida é nosso total empenho no amor a Deus e ao próximo como a nós mesmos. Este é o máximo recurso de vida que nos permitirá viver a integral fusão com o Pai que nos criou unicamente para amar e ser feliz. Os fundamentos da vida biológica tão bem aprendidos na escola dos séculos devem ser definitivamente esquecidos.
Como vemos, o conceito da queda do espírito, tão rejeitado pelos estudiosos da doutrina espírita, é a mais extraordinária luz capaz de iluminar sobremodo a nossa compreensão dos mecanismos da vida a que estamos submetidos e suas intrigantes contradições. Quando, contudo, remetemo-nos ao Evangelho de Jesus, então constatamos como esse conceito se faz indispensável para melhor entendê-lo. Se não nos vemos como seres degredados e presos nas algemas da matéria, como entender que Cristo veio ao nosso mundo para nos salvar? Qual seria o significado de Seu sacrifício? Exatamente por que Ele se deixou imolar na cruz por todos nós?
Para a doutrina espírita, nos moldes como é interpretada pela maioria de seus seguidores, representa um peso enorme a negação desses conceitos tão fundamentais que caracterizam o cristianismo em sua essencial original. Como repudiar essas inferências se elas estão embasadas nas próprias palavras de Jesus, as quais a história humana deu tanta ênfase? Nossa visão unilateral da revelação espírita nos autoriza a negar as próprias afirmações do meigo Rabi? As informações que nos chegaram pelas vias mediúnicas e analisadas pela inteligência de Kardec selaram a verdade, superando os ensinos do divino Mestre? Não estiveram elas sujeitas aos psiquismos dos médiuns e suas particulares interpretações? Será a mediunidade um processo infalível?
E ainda mais: não foram os mesmos espíritos que afirmaram que não nos disseram tudo? Que muito ainda tinham a nos revelar, porém nossa acanhada compreensão não lhes permitia avançar? Teríamos, com as obras básicas da codificação atingido em definitivo o conhecimento da verdade? Evidentemente que não. Aqueles que se apegam ao dogmatismo doutrinário, deveriam lembrar-se do que exarou Kardec, em A Gênese: “O Espiritismo assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia (...). Caminhando de par com o progresso, o espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificará nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”. Nessa mesma obra, o Espírito Galileu afirma: “Há questões que nós mesmos, espíritos amantes da ciência, não podemos aprofundar e sobre as quais não podemos emitir senão opiniões pessoais, mais ou menos hipotéticas”. E na questão 182 de O Livro dos Espíritos, encontramos: “Nós, Espíritos, só podemos responder de acordo com o grau de adiantamento em que vos achais”. Não obstante tomamos suas palavras como a última e inamovível verdade. Ora, estamos muito distantes da verdade absoluta para nos deter em informações que nos chegaram no século XIX, quando ainda muito pouco sabíamos da realidade que nos envolve. Quanto a ciência cresceu desde então! Nosso inato anseio por verdades absolutas fez-nos estagnar em dogmas, repetindo o erro das religiões convencionais do mundo.
Seguramente, o maior benefício da teoria da queda que nos trouxe Ubaldi é a perfeita fusão das revelações religiosas com o conhecimento que nos propiciou a ciência do século XX. A cosmologia moderna encontra aí sua mais perfeita unificação com a cosmologia cristã. Remetemos o leitor interessado em aprofundar a questão ao nosso despretensioso trabalho Arquitetura Cósmica, publicado pela Editora Inede, no qual efetuamos um detalhado estudo sobre as visões de mundo ao longo da história, para demonstrar que a queda do espírito é a única tese capaz de explicar e unificar todos os conhecimentos humanos.
Do ponto da cristologia, com a queda original, passamos a compreender perfeitamente a missão do Cristo entre nós. O divino Amigo veio trazer-nos a notícia da existência de um outro mundo além do nosso, onde se encontra nosso Pai, o Reino de Deus. Ele nos pediu enfaticamente abdicarmos do mundo às avessas em que vivemos (o AS) para a conquista desse Reino (o S). Fato intrigante para nós sem o conhecimento da queda, pois se Deus nos gerou em Seu seio, por que nos mantém fora de nosso natural habitat? E não entendemos por que Ele nos colocou em um mundo infesto de desazados valores aos quais com tanto esforço devemos abdicar, a fim de atingirmos à vida verdadeira para a qual fomos criados.
Cristo mostrou-nos ainda, em Seu sacrifício, de forma nítida, como realizarmos o nosso resgate do mundo às avessas em que vivemos, o AS, e conquistarmos mais rapidamente o Reino de Deus. Esse foi o desiderato maior de sua vida, a que Ele dedicou a sua existência – e recomendou-nos enfaticamente fazer o mesmo. Portanto, Ele nos deixou o roteiro da autorredenção, realizando-a aos nossos olhos. Assim acreditamos que, ao deixar-se imolar na cruz, Ele penetrou definitivamente o Mundo Celeste, o S. No instante do Calvário, Ele abandonava o Relativo para assumir a sua posição definitiva no Absoluto, realizando a sua integral fusão com o Pai. Consubstanciava-se a dissolução de seus envoltórios dinâmicos e seu retorno decisivo ao seio paterno como espírito purificado. Eis a realidade maior da ressurreição de Jesus que Ubaldi descreve-nos em seu último livro, Cristo – o divino Amigo realmente “subiu aos céus” e voltou ao Pai como um espírito ressurreto.
O meigo Rabi entregou seu corpo ao sacrifício demonstrando-nos que Ele não se interessava por salvar a matéria perecível. Ele não queria igualmente firmar-se mais como um vitorioso no mundo às avessas em que vivemos. E deixou-nos patente que seu interesse maior era fazer morrer o que Lhe restava de personalismo inferior, doando-se, por amor, incólume, à vontade de Deus. E de fato, sem a completa extinção do nosso ego inferior, sem a entrega confiante de nossa alma ao desejo do Pai, sem a não resistência ao mal, sem o perdão verdadeiro àqueles que nos maltratam e nos tiram a vida, sem a renúncia aos valores da animalidade, sem a oferta de nossa vida em prol do semelhante – ou seja, sem a vivência de um verdadeiro e supremo amor não nos libertaremos das malhas do relativismo onde nos demoramos. Portanto, sem dor, sem renúncia, sem sacrifício, sem perdão, sem doação ao outro e sem amor não há salvação. Por isso é imperativo subirmos todos pelo calvário da evolução, com nosso sacrifício e todo o empenho na superação do homem velho, que deve morrer na cruz para a libertação de nosso ser real na verdadeira vida eterna – a gloriosa ressurreição, no dizer de Emmanuel.
Portanto, a autorredenção faz-se imprescindível para a nossa salvação. Destarte vale insistir que ela não bastaria, como nos afirmaram as Sagradas Escrituras, para o resgate da matéria. Se Deus não agisse permanentemente em nosso imo, repitamos, como a força máxima de reconstrução, não nos salvaríamos. Entregues a nós mesmos, estaríamos detidos na inconsciência da matéria bruta, “mortos nos túmulos de pedra”, até os dias de hoje.
E entendemos ainda que Cristo, após o seu definitivo retorno ao Reino de Deus, fez-se essência imaculada. Unificado com Deus e fundido na substância da Lei, Ele então consubstancia a Terceira Pessoa da Divina Trindade, como pressupôs a velha Teologia cristã. Estando fora do tempo e do espaço, Ele agora participa da onisciência e da onipresença divina. Por amor a nós, contudo, permanece ao nosso lado, agindo no imo da alma humana como força reconstrutora e salvadora (Mt 18:20). Portanto, como fazem nossos sinceros amigos cristãos em todo o mundo, podemos enfim bater no peito e com a mais pura e intensa emoção proferir: Jesus é meu salvador!
Com todos esses novos conceitos podemos doravante melhor aceitar e colocar em prática todas as lições do Evangelho. As palavras do Cristo tomam novo e vigoroso significado. Entendemos afinal que o Messias veio à Terra efetivamente para nos salvar. Ele veio “resgatar o que estava perdido”, como afirmou (Mt 18:11). Ou seja, para reconduzir-nos, ovelhas perdidas, ao aprisco celeste (Mt 15:24, Lc 15:4). Compreendemos exatamente por que estamos distantes do Reino de Deus, que o divino Amigo, na oração dominical, suplicou para “vir até nós” (Mt 6:10). E recomendou-nos a reconquista desse Reino que perdemos, como o máximo objetivo de nossas vidas (Mt 6:36). Todo o empenho de nossa alma deve ser dirigido a esse esforço, como alguém que acha um tesouro de inestimável valor e tudo vende para adquiri-lo (Mt 13:44). Ora, se estivéssemos seguindo os passos normais de uma evolução natural em um mundo adequado e pretendido por Deus, não haveria por que Jesus recomendar-nos, com tanta ênfase, apartarmo-nos dos caminhos da carne e buscar afanosamente a verdadeira vida espiritual (Mt 6:33). Sem a interpretação da queda, Suas conjecturas, em sua maioria, tornam-se evasiva e não podem ser levadas a sério. Jamais compreenderíamos, por exemplo, por que Sua imensa compaixão por nossas dores levou-O a nos consolar, dizendo: “Não temas, ó pequeno rebanho, porquanto a Deus agrada dar-nos o reino” (Lc 12:32). Essas e todas as palavras eternas que o Messias nos deixou careceriam de sentido próprio. Portanto, não podemos mais negar que necessitamos, sim, de salvação. E sem a salvação pela graça, juntamente com o empenho na autorredenção, jamais retornaremos ao Pai.
Para grande consolo nosso, de posse desses novos conceitos chegamos à clara constatação de que nossa exaustiva caminhada evolutiva pelas veredas do relativismo, e o próprio universo relativo terão um fim. Nossa jornada terminará com o nosso definitivo retorno ao absoluto. O espaço sucumbirá com a extinção da matéria, o tempo expirará com a morte da energia, e o espírito sobreviverá para viver a eternidade no seio divino. Herdaremos então a perfeição absoluta e não a relativa, como havia pressuposto Kardec, pois somos genuínos filhos de Deus, e como tais, feitos de sua mesma e impecável natureza. Validamos assim a escatologia cristã e todas as suas previsões, pois “o céu e a terra passarão” e apenas os valores imponderáveis do espírito restarão da realidade que nos alberga (Mt 5:18 ). Esclarece-se agora o “fim dos tempos” a que se referiu Jesus, a morte da dimensão espaço-tempo, que um dia nasceu e, como tudo que nasce, deverá igualmente morrer. O conceito de ressurreição restitui o seu significado original.
Os estudiosos da doutrina espírita poderão negar essas afirmativas, uma vez que Kardec pressupôs a nossa evolução infinita e a existência ad aeternum de nosso universo. Todavia vale recordar que os próprios Espíritos, na questão 169 de O Livro dos Espíritos, exararam que “o progresso é quase infinito” – portanto não caminharemos eternamente pela aparentemente infinda estrada da evolução, mas nos fixaremos, enfim, no “fim dos tempos, como colunas inamovíveis no Templo de Deus”, como nos promete a palavra sagrada (Ap 3:12).
A cosmologia moderna, confirmando a escatologia cristã, já fixou o trágico fim do nosso universo na sua vertiginosa expansão rumo à exaustão absoluta de todas as suas energias, e até mesmo no decaimento do próton. Não existiremos, aqui, para todo o sempre e, como disse Ubaldi, sequer as paisagens do relativo sobreviverão para a eternidade, mas todo o nosso cosmo será espiritualizado, restituindo-se completas as potências do absoluto que o originaram, quando todos os registros da grande queda forem integralmente reabsorvidos pela evolução.
Compreendemos que Jesus deixou-nos, na maneira como se conduziu na Terra, o exemplo claro de como efetuarmos a nossa própria redenção. Como aceitar, porém, a peremptória afirmação do fundamentalismo cristão de que, com a Sua morte, Ele promoveu a redenção de nossos pecados? Podemos legitimar essa afirmativa que já se consagrou como um dos principais dogmas do cristianismo? O Evangelho não diz que “o Cordeiro de Deus tomou sobre si as nossas dores e morreu em nosso lugar na cruz”(Jo 1:29)? Poderia a morte de um justo pagar pelas faltas de outros? Como pode ser isso, se a própria justiça humana jamais concordaria em penalizar alguém por erros alheios? Seria um mistério pertinente a Deus e, portanto, algo que não podemos questionar, diz-nos a velha teologia cristã. Não obstante, insistimos: nossa razão considera um disparate conceber que a perfeita justiça divina possa funcionar de forma tão incoerente. Necessitamos de melhores explicações para tal afirmativa. Se na Idade Média esse pressuposto parecia conformar o coração humano, nos dias atuais, vê-se claramente que mais se serve como um obstáculo à plena aceitação do Evangelho. Com o auxílio de Ubaldi, aproximemo-nos da delicada questão, tentando esclarecê-la um pouco melhor.
Sabemos que o inconsciente humano traz em seus arcanos o registro arquetípico da queda do espírito. Isso o fez postar-se, desde os primórdios da razão, como um ser pecaminoso, sobretudo diante da Divindade. Exatamente por isso, ele cuidava de fazer oferendas aos seus deuses, a fim de aplacar suas pretensas iras. Interessado então em reduzir as suas penas, partindo do pressuposto de que ele era culpado de alguma coisa e havia ofendido a Divindade, ele depositava nos altares de seus templos o melhor de sua colheita.
Em muitas culturas antigas, entretanto, ele intentava ludibriar os deuses, sacrificando seres que considerava inocentes, para que o sangue derramado por estes, no lugar do seu, pudesse simular a pena que se julgava inconscientemente merecedor. Desse modo, ovelhas, pombos e até mesmo jovens virgens eram imolados, em macabros rituais, para que o homem se sentisse liberto de sua inevitável condenação.
Evidentemente, tais bárbaros costumes baseavam-se na mais precária concepção de Deus, compreendendo-O como um déspota, a quem a simples visão de sangue bastaria para dissuadir a impor ao homem os castigos que ele sempre se sentiu merecedor.
Assim, o psicologismo doentio do homem encontrou na morte de Cristo o perfeito sacrifício a Deus para a remissão de suas culpas. O sangue do mais puro dos homens, ou mesmo de um verdadeiro deus, seria então mais do que o bastante para que o Senhor desistisse de cobrar pelos nossos muitos pecados. Fizemos então de Jesus o “Cordeiro de Deus que tirar o pecado do mundo”, aplicando à Sua execrável morte nada mais do que mais um dos nossos sangrentos rituais aos pés do Criador. Atendia-se, desse modo, mesmo sem a clara noção do fato, aos apelos do inconsciente coletivo humano, onde o homem guarda a sua culpa de origem, oriunda da queda do espírito.
Ao analisar o fato, chegamos mesmo a suspeitar de que esse teria sido “o cálice” que Jesus pediu ao Pai lhe fosse afastado, no momento da crucificação. Ele já havia demonstrado a Sua clara disposição de se deixar imolar para nos dar o exemplo de como se deve agir diante do mal. Mas Ele não queria fazer-se o “Cordeiro da humanidade”, cuja morte seria erroneamente interpretada como a condenação de um justo que derrama o seu próprio sangue no lugar do nosso para se aplacar a condenação divina a que nos fazem jus. Naturalmente que o Mestre, profundo conhecedor do nosso infantil psicologismo, sabia que esse estranho e inadequado papel lhe seria imputado pela nossa história, iludindo-nos de que assim estaríamos isentos do próprio sacrifício em prol da nossa salvação.
Em suma, chegamos à conclusão de que não podemos aceitar que a morte de Jesus tenha redimido os nossos erros perante a Lei divina. Isso fere o que entendemos da justiça divina e do conceito que na atualidade detemos de Deus. Nossa consciência ferida somente será recomposta se seguirmos os exemplos do Cristo. Jamais pelo simples fato de um inocente ter sido condenado em nosso lugar.
Resta-nos, todavia, a pergunta: a salvação será infalível? Todos se salvarão? Será que Deus não respeitará a vontade do filho rebelde que não queira jamais retornar ao Seu aprisco? Ubaldi abordou a delicada questão e afere-nos que os mecanismos divinos de salvação são infalíveis. Utilizando-se da dor, da nostalgia pelos bens perdidos e do anseio pela perfeição, sentimentos que impregnam toda criatura caída por estigma de origem, a Lei conduzirá todas elas aos planos superiores do espírito. Fugindo do inferno da matéria e suas dores que inevitavelmente colorem as paisagens dos mundos inferiores, movido pelo natural instinto de felicidade, o ser não tem outro caminho que evoluir. Desse modo, diz Ubaldi, todos se salvarão. Nosso universo físico será completamente extinto, e não restará aqui um único átomo, afirma-nos o inspirado da Úmbria. Cristo já havia nos dado essa certeza ao proferir que “de suas ovelhas, nenhuma se perderá” (Jo 10:27-28). Entretanto, permanece como possibilidade teórica a dissolução definitiva do ser, caso ele não se predisponha ao sacrifício do ego inferior e almeje perpetuar eternamente a sua revolta contra a ordem divina e a negação do amor. Nesse caso, diz-nos Ubaldi, a substância divina que o individua poderá terminará por desfazer-se, pela intensa contração involutiva a que se exporá, fazendo-a retornar íntegra a sua fonte original, o seio de Deus. Uma vez que tal substância é indissolúvel, somente a sua individuação será desfeita. Imaginamos algo como o desfazimento da forma de uma estátua, porém não o desaparecimento da matéria que a compõe. Essa seria a real morte do ser, que Deus não quis, como nos informou o Cristo (Mt 16:28). Por isso, certamente, aferiu-nos o nosso Salvador que “se alguém guardar as Suas palavras jamais verá a morte” (Jo 8:51), e Paulo nos afirmou que “Deus nos ressuscitará pelo seu poder (I Coríntios 6:14).
Concluindo, vemos então que, retomando o conceito de salvação no mais elevado que nos favorece Ubaldi, chegamos à perfeita fusão de duas conceituações que conhecemos, a espírita e a cristã, conferindo-lhes inteira validade. Está certa a salvação consciente, apregoada pela doutrina de Kardec, a qual representa a nossa escolha pelo autoaprimoramento evolutivo; e corretíssima a salvação gratuita, aquela que opera na intimidade de nosso ser, orientando devidamente os nossos passos rumo ao Amor paterno que malbaratamos, conforme defendido pelos Textos bíblicos. A primeira traduz o nosso necessário empenho no bem e na realização de boas obras, a segunda aguarda nossa total confiança no socorro divino. O antagonismo entre o fundamentalismo cristão e a razão espírita desfaz-se ante a luz dessa nova concepção. Ambos acham-se fixados em verdades complementares. Agora, não obstante, podem dar-se as mãos na grande obra de redenção da humanidade.
Então são genuínos o fundamentalismo cristão, iluminado pelo fideísmo sentimentalista, e o racionalismo espírita, abrilhantado pela fé raciocinada. Deixemo-los em suas genuínas, porém parciais trilhas da verdade, até que a evolução os entrelace no abraço da verdade única, solvendo nossos atritos conceituais e reconduzindo-nos, juntos, ao Absoluto. Até lá, eximamo-nos de improfícuos atritos, pois nossas crenças são nitidamente complementares, jamais antagônicas, como as aparências de nossas relativas posições nos induzem a crer.
Sem a pretensão de nos fazermos porta-vozes da verdade absoluta, da qual nos achamos muito distantes, deixamos aqui o nosso esforço de conciliação entre a essência sagrada do Cristianismo primitivo e as modernas revelações assinaladas pela Codificação Espírita. A nenhum negamos o seu real valor, apenas não desejamos mais vê-los atirados em acirrados e improfícuos entrechoques de ideias. Estacionados na parcialidade, é possível compreender que eles não se acham em aparente contradição.
A ninguém queremos convencer, apenas anunciar que existe uma melhor maneira de se conciliar as verdades parciais que adotamos por sagradas. E o que atesta que uma verdade é parcial é o simples fato de ela admitir a sua exata contradição. Ora, toda premissa que suporta um antagonismo, não se acha completa, pois a verdade realmente absoluta somente pode ser aquela que engloba também a sua oposição. Esse é um interessante axioma deduzido por Niels Bohr, a partir das observações da fenomenologia quântica. Assim, a síntese genuína deve unir tese e antítese para se fazer lídima expressão da realidade. Logo, estejamos atentos, se nos encontramos imersos em uma arena de disputas ideológicas, é preciso humildemente considerar que nos achamos distantes do conhecimento absoluto e unitário – aquele que realmente não admite rivalidades, por englobar os seus opostos.
Sigamos adiante, na certeza de que somos seres em desenvolvimento e nossa ignorância é ainda imensa ante a extensão da complexidade fenomênica que habitamos. Se desejamos crescer rumo à verdade que liberta, como disse Jesus (Jo 8:32), urge abrirmo-nos à germinação dos novos conhecimentos que periodicamente são semeados em nosso campo íntimo, como a revelação que nos trouxe Ubaldi e outras que certamente continuarão chegando-nos do Plano Maior. Para isso, na lavoura do crescimento espiritual, por vezes é preciso deixar que nossos parciais entendimentos morram para dar lugar a novas e mais avançadas compreensões. Se a semeadura nos compete, lembremo-nos de que a germinação é da alçada do Senhor, que, zeloso, oferta sempre a cada um as florações de verdades que é capaz de suportar em seu particular momento evolutivo. Portanto, não nos apoquentemos com quem não pode ou não quer compreender. O tempo, em sua sabedoria, fará amadurecer os frutos de verdades que realmente nos convenha à necessária redenção.
Belo Horizonte, 4 de maio de 2009
Gilson Freire
Bibliografia
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