“Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso, e não te assistimos? Então lhes responderá: em verdade vos digo que sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer.” Mateus, 25:44 e 45.
A palavra salvação, colocada por Allan Kardec, como título do capítulo XV de O Evangelho Segundo o
Espiritismo, merece uma interpretação adequada ao que queremos demonstrar, pois ela tem um sentido mais psicológico que religioso. Salvar-se não se refere, necessariamente, a uma ameaça externa, nem tampouco a uma atitude para com o semelhante. Não há ameaça grave nem abismo a que o ser humano esteja ameaçado de cair, muito menos um inimigo contra o qual deva se precaver sob pena de perder a Vida. A salvação compreende a adoção de um estado de consciência que disponibilize a mente para a captação do mundo como ele se apresenta, isto é, sem os filtros impeditivos das defesas do ego. Salvar-se é predispor-se a viver a Vida sentindo suas conseqüências com maturidade e equilíbrio, quaisquer que sejam elas.
A salvação diz respeito a uma mudança de atitude psíquica. Trata-se de estabelecer um estado de espírito que possibilite a apreensão das leis de Deus sem os medos e os receios impregnados nos mecanismos de defesa que normalmente o ser humano adota frente à Vida e perante aquilo que desconhece. O ‘inimigo’, por assim dizer, é oculto, interno, inconsciente, e age sutilmente nos escaninhos da mente humana. A salvação compreende a necessidade de aprender a lidar com esse inimigo interno, correspondente à sombra pessoal.
Por outro lado, a afirmação de que fora da caridade não há salvação supõe que não existe outro estado possível. É determinante que se aja daquela forma sem a qual não se alcança o que se pretende. Nesse sentido, a caridade não é tão somente uma atitude externa ou um ato isolado. É também um estado de espírito, uma atitude psíquica. Uma predispõe a outra atitude mais elevada.
A caridade é um meio, como uma ponte que nos leva de um lugar a outro, sem os perigos de se cair no abismo. Não se trata de uma atividade externa, como um compromisso social ou uma regra decorrente de um preceito religioso. Pode-se até iniciar-se a compreensão de seu significado pela prática externa, mas isso não garante alcançar seu sentido real. O exercício da caridade, como de qualquer atividade humana, leva à consolidação de seu sentido oculto. Em paralelo à prática, deverá ocorrer a internalização da mensagem significante, intrínseca à experiência.
Num sentido psicológico, a caridade elimina as projeções, pois me possibilita enxergar o outro naquilo em que ele necessita e não no que desloco de minha personalidade e projeto nele. Doar algo a alguém é
desprender-se de si mesmo vendo o outro como ele é. É não projetar sua sombra no outro. Ela, a caridade, leva o indivíduo a sair de si e a perceber o outro no momento evolutivo em que se encontra, permitindo que aquele que a exerce saia dos limites de seu ego e vá na direção do Self próprio e do outro.
Esse deslocamento na direção do outro não se trata apenas de uma ação, mas, principalmente, de um sentimento; um estado de ser interior, de sentido de desprendimento. Esse estado psicológico predispõe o indivíduo à percepção de si mesmo, pois o coloca em contato com a sombra do outro e, conseqüentemente, com a sua própria, face à vontade de prestar auxílio.
Praticar a caridade pode ser apenas estar caridoso, isto é, realizar uma tarefa como outra qualquer. Quando se trata de um estado de espírito, o indivíduo é caridoso, isto é, trata-se de um traço de sua personalidade. Passar de um estado a outro requer, além de outros aspectos, conhecimento de si mesmo. Ser caridoso é entrar em contato com sua essência divina, com o Self, cujo sentido básico é a organização psíquica para o contato com Deus.
Aquele estado favorece o caminho para a dissolução dos complexos enraizados no inconsciente, pois inibe as reações defensivas do ego. Quando se atua caridosamente, de acordo com um sentimento interno, vence-se a barreira que impede a conscientização dos complexos. O sentimento de caridade permite o desarme defensivo do ego e a utilização demasiada das personas, isto é, das máscaras.
A atitude caridosa que atende somente a regras externas atua de modo contrário, ou seja, inflacionando o ego com sentimentos de vaidade e orgulho. Por mais que ajude o outro, a caridade aparente pode funcionar como um disfarce para a satisfação dos desejos de reconhecimento e destaque daquele que a pratica. Por outro lado, ser caridoso para com os demais pode significar uma fuga das próprias questões, de modo a não entrar em contato com sua sombra, evitando curar-se a si mesmo.
O sentimento de caridade, complementado pela ação caridosa, diminui o poder do ego estimulando o processo de desenvolvimento espiritual. Psiquicamente, o indivíduo consegue melhor elaborar seus conteúdos inconscientes bem como aqueles conscientes que impedem a percepção de si mesmo. Esse sentimento provém do Espírito e se torna consciente com o exercício constante e persistente da ação caridosa.
Somos naturalmente condicionados a atitudes externas de acordo com o senso comum oriundo da educação, da cultura e da convivência, o que nos torna seres de ação movidos pelo coletivo. É possível perceber que, face à existência da individualidade, há motivações singulares, nascidas da essência espiritual de cada um, porém as tendências coletivas são poderosos guias da Vida do ser humano. O exercício da caridade, bem como o cultivo do sentimento da caridade, conseguem reduzir o efeito dessa tendência natural a viver o coletivo. A caridade inibe as tendências coletivas, arquetípicas, que nos impulsionam para longe de nós mesmos. Essas tendências não são de todo prejudiciais. Se de um lado, nos distanciam do alcance da nossa realização pessoal, de outro, porém, nos colocam em condições de viver em sociedade.
As relações sociais naturalmente geram tensões, disputas e diferenças, colocando o ser humano em constante embate entre sua individualidade e as exigências do mundo. Ora ele afirma sua individualidade, ora ele busca sua identidade com o grupo social de que faz parte. O alívio dessas tensões significa o encontro consigo mesmo e a paz com o mundo. A caridade proporciona a necessária
identidade com o mundo por trazer consigo a empatia nas relações com o próximo. Ela permite a identidade com o semelhante de tal forma que o indivíduo se sente uno com o outro, igualando-se a ele na sua necessidade. Psiquicamente diminui as barreiras que provocam tensões e elimina as vaidades do ego, aproximando as pessoas umas das outras.
Estar em paz é garantia para o equilíbrio psíquico, previne os acessos abruptos do inconsciente e inibe as obsessões. Nesse estado, o indivíduo entra em contato com os Bons Espíritos, favorecendo sua motivação para viver. Semelhante estado se alcança com a vivência da caridade. Ela promove o bem estar psíquico preparando a mente para vencer as investidas persistentes dos conflitos oriundos das vidas passadas enraizados no inconsciente. A “fina camada” que separa a vida consciente da inconsciente, onde se encontram as experiências esquecidas da atual encarnação e das vidas anteriores, permite a passagem, para o aprendizado do Espírito, dos complexos afetivos oriundos de antigas situações dolorosas. Essa influência constante do passado sobre o presente é amenizada pelo sentimento de caridade, que age como um filtro, atenuando os efeitos sobre a vida consciente.
A ação da caridade sobre o próximo é uma terapia fundamentada no amor que atinge principalmente aquele que a executa.
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