Elzio Ferreira de Souza
Livro: Ser e Existência (2011)
Editora: Circulus
Capítulo 17
A violência nossa de cada dia
Para estabelecer a paz em volta de si, precisa o homem estabelecer a paz em si mesmo. Sem cuidar do interior da casa, não adianta querer dedicar-se aos jardins da mansão. O processo de cura interior é indispensável para que se possa ter paz no mundo. Ao homem tem sido fácil fazer guerras, não, porém, estabelecer a paz, exatamente porque essas constituem seu clima interior. Sem uma remodelação da interioridade, nada pode ser feito para diminuir a violência que domina cidades, numa espécie de guerra civil de todos contra todos, que acaba por conferir aos homicídios, roubos, etc. um ar de naturalidade, estado este com o qual o ser humano termina por ser obrigado a conviver, fazendo cada um sua parte na manutenção de tal estado de coisas.
"O que faremos para livrarmo-nos disso?" - é a pergunta geralmente feita. Todos querem evidentemente, mudar o quadro, porém não falta quem dele tire proveito. Há profissões que se criaram e vivem da violência, e não há, portanto, interesse fundamental de que as coisas mudem: desde a polícia civil, dos militares até o guardador de veículos, existem categorias profissionais que são dependentes da violação à lei. Se desaparecesse esta, naturalmente faltaria qualquer fundamento para subsistirem fora dos museus. A questão aqui é que a pergunta está evidentemente mal formulada, não adianta questionar sobre como alguém ou a sociedade pode livrar-se do estado de guerra; a pergunta certa é - "O que fazemos para isso?" Qualquer exame ainda que superficial vai revelar-nos que a violência nasce por dentro de nós, e que a violência exterior, a violência dos outros, é bem o reflexo da nossa própria violência, ora contida ora expressa em formas que não possam acarretar a repressão, ou contra alguém que não pode reagir, ou contando com a impunidade, seja por passar desapercebida das autoridades seja por contar com a inércia destas, ou por ter a sociedade se acostumado com uma série de violações aos direitos alheios que já não presta mais atenção em determinadas infrações, consideradas menores e inapreciáveis ante a onda de mortes e ataques ao patrimônio, e, de um modo geral, à integridade pessoal que domina nas cidades. Se o homem estivesse atento a seu interior, verificaria que o estado de guerra social encontra suas raízes mais profundas e as mais superficiais dentro de sua mente e de seu coração.
Não há necessidade de qualquer análise em consultório psicanalítico para descobrir a realidade: basta atentar um pouco para os objetivos, para os instrumentos e meios com que se deseja atingi-los, para os motivos que levam a delineá-los, e perceber-se-á que tudo isso está mergulhado, em realidade, num oceano de egoísmo, que coloca o indivíduo como o centro do universo. Quando isto ocorre, e ocorre sempre, é impossível deixar de reconhecer que ele se encontra numa permanente guerra contra os demais consórcios, ainda que velada por aspectos sociais de manifestação da "luta pela vida": "formação profissional", "eficiência e qualidade", etc. Ou seja, o homem se aperfeiçoa continuamente para exercer sobre os outros alguma espécie de violência, seja que esta surja com a clássica "pesca" estudantil nas salas de aula, com o "pistolão" para desbancar os concorrentes, com pequenas violências nas "festas de calouros", nos esportes violentos ou nos que, apesar de assim não serem qualificados, são motivos para o exercício da violência com a finalidade de sobrepujar o oponente mais rápido ou mais eficiente. Não é de admirar que isto desemboque, em seguida, na violência familiar, em que geralmente a mulher milenarmente leva o quinhão de sofrimento, embora, por sua vez, esteja aprendendo outras formas de violência. Da violência verbal à violência física, o egoísmo é o fundamento de todas as expressões.
Mudar a vida é modificar-se. O trabalho é desafiador porque exige transformação da visão antes da alteração dos hábitos. Se quisermos que as pessoas alterem seu modo de vida, abandonem as casamatas do egoísmo, para que depois possamos fazer o mesmo, o trabalho jamais se iniciará, pois o problema somos nós, e não o outro. Há de reconhecer-se que, não rara vez, a violência do próximo é o reflexo, o resultado do contágio de nossas expressões de vida. Não podemos articular o desejo de paz, se esta aspiração não se tornou algo concreto e consolidado em nós. Se a violência está submetida à lei do contágio mental, em que os semelhantes atraem-se, a paz também se submete à mesma lei. O conhecimento da lei deve possibilitar ao homem exercê-la em benefício da renovação social.
O que se pode ver é que o estado de guerra estabelecido pelo homem é, em verdade, um estado mental: a guerra interna ou externa, de qualquer natureza, é sempre resultado da intemperança mental. Mentes desequilibradas não podem gerar um mundo em equilíbrio. A cura da mente é indispensável.
Ninguém pode curar a mente, porém, se não desenvolve a atenção; sem estar atento não só para o que ocorre a sua volta, mas também para cada um dos seus pensamentos, o homem é apenas um náufrago que perde a vida diariamente. Atentar para todos os movimentos do ser interior é a tarefa inicial. Não adianta falar de concentração, se não se estiver atento para os desvarios da mente. É preciso tomar conhecimento deles, e isto deve ocorrer não apenas quando um se senta para meditar ou orar, mas a todos os momentos. A cada instante, uma série de pensamentos surge, e devemos estar atentos para a direção que tomam, o que pretendem, e por que surgem estes, e não outros, ou estes e outros. Muitos pensamentos e idéias não repelidas podem ter origem na natureza do próprio indivíduo, no entanto é possível que se originem em mentes alheias, encarnadas ou desencarnadas, e que esteja ele simplesmente recepcionando-os. Se os pensamentos se acomodam na casa mental e passam a estimular outros pensamentos, acordando certos aspectos negativos da natureza humana, então teremos o início de uma queda, se não se opera uma cirurgia mental rápida e oportuna. Afinal, a natureza humana é, ainda, de baixo teor, e os impulsos egoísticos, sejam referentes a sexo ou poder, exclusivismo ou destruição, etc. são rapidamente postos em ação por pensamentos do mesmo teor.
É um erro pensar que é possível modificar a mente com métodos violentos, estes acabam impulsionando-a no sentido que se desejava alterar. Nem se deve dar largas a complexos de culpa, pois o pessimismo irrefreável acabaria destruindo mais rapidamente a possibilidade de cura. A solução também não pode ser encontrada na simples condescendência com tal estado da mente sob a desculpa de "naturalidade"; isto pode ser a base das racionalizações com que o ser se dispõe a evitar qualquer esforço no sentido de uma metamorfose, aquietando-se na justificativa de que se trata da própria natureza humana. O caminho a seguir é simples, mas mostrar-se-á eficiente, no entanto só surtirá efeito se praticado perseverantemente em qualquer situação, e não apenas quando se está sentado para meditar. Sempre que pensamentos ocorram em catadupa, deve procurar-se trazer a mente de volta ao que se estiver realizando, sem irritar-se, evitando toda dispersão, do mesmo modo que, após um pequeno escorrego, recoloca-se o corpo em equilíbrio, sem discursos racionalizadores, reprovativo ou justificativo. A princípio, nem sequer é necessário que se distinga sua origem, se interna ou externa, se de um encarnado ou desencarnado. Este pequeno exercício vai gerar mais reserva de força mental para a realização de qualquer tarefa, e, naturalmente, irá propiciar mais energia para os momentos reservados à meditação clássica. Mas, lembre-se, quando atentos ao que se passa na mente, seja qual seja o lugar em que estejamos, não importando a espécie de tarefa material ou espiritual a realizar, executamos uma forma particular de meditação, porquanto estamos presentes a nós mesmos, ainda que envolvidos por uma multidão de pessoas ou de ruídos. Meditação é a arte de estar só para que possamos estar com o outro. Isto parece paradoxal, mas é a pura verdade. Quem não conhece seu espaço interior não desenvolve qualquer respeito pelo espaço interior do outro. À medida que nos descobrimos interiormente, o outro se nos revela mais claramente. Ao adquirirmos compaixão por nós, aprendemos a estendê-la ao próximo. Foi, por isso, que o Senhor Jesus erigiu o amor de cada criatura a si mesma como modelo do amor ao vizinho e recomendou-nos o exercício de fazer o bem com idêntica orientação. Quem não conhece o amor, na cela divina do coração, não pode expressá-lo na vida.
Comentários:
Nesta importante mensagem, o autor espiritual trata de um tema muito comum nas religiões orientais: da concentração. Cuida-se, nessas religiões, de preparar a pessoa à meditação, adestrando-se a mente inquieta. O objetivo é estar atento naquilo que se faz ou se aprecia, não permitindo à mente vagar livremente em múltiplos outros objetos de atenção, retirando o indivíduo de seu natural equilíbrio. Nesta passagem, o autor coloca a concentração ou atenção como meio de interromper o ciclo de pensamentos inquietos que nos levam à "violência nossa de cada dia", conclamando o leitor a modificar-se interiormente a si mesmo se deseja a modificação do quadro social.
Há referência a dois tipos de meditação: (1) a clássica, em que o indivíduo procura silenciar a mente, contra a qual o autor não opõe nenhuma censura e colocando a concentração como meio de reforçá-la; (2) "uma forma particular de meditação", consistente na chamada atentividade, em "estar presente a nós mesmos", atentos a tudo que se passa interiormente em todos os momentos.
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