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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
Camilo Salgado: o médico e o mito
Conheça um pouco da vida de Camilo Salgado, cultuado como santo popular no Pará
Camilo Salgado: o médico e o mito
Médico notável pelo conhecimento científico é cultuado como santo popular no Pará
Aristoteles Guilliod de Miranda*
Apesar da evolução da Medicina, as práticas mágico-religiosas persistem, fazem parte da medicina popular e coexistem com as intervenções científicas e ajudas divinas no imaginário ocidental cristão. O sincretismo religioso do Brasil originou uma expressão de forte apelo popular. Os contrastes socioeconômicos também contribuem para uma crescente manifestação de religiosidade que busca o bem-estar inalcançável pelos meios oficiais. Nesse terreno fértil, vicejam os santos populares, aqueles ainda não legitimados pela Igreja Católica e, em particular, os médicos santos. Seus defensores, sem negar a Medicina praticada por profissionais habilitados – cada vez mais ocupados com suas máquinas em detrimento do atendimento humanizado –, invocam a intervenção de pessoas falecidas que possuiriam poderes divinos para a resolução dos mais variados problemas, desde questões de saúde até financeiras e sentimentais. Assim se pode entender o culto religioso ao médico Camilo Henriques Salgado Júnior, nascido em Belém do Pará, em 1873.
Camilo ingressou na Faculdade de Medicina de Salvador, cursando ali até o quarto ano, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde se diplomou em 1911. Para aprimorar seus conhecimentos freqüentou, em Paris, grandes serviços de cirurgia e especialidades correlatas, como a Clínica de Charcot no Salpetrière. Em Belém, instalou consultório e atendeu em hospitais como o Dom Luiz I, da Imperial Sociedade Beneficente Portuguesa do Pará, do qual foi diretor clínico. Como reconhecimento pelo trabalho à instituição, recebeu da comunidade portuguesa os títulos de sócio benfeitor, sócio honorário e por último de sócio benemérito, a maior honraria. Em 1982, Camilo seria novamente homenageado, dando nome ao moderno centro cirúrgico do hospital.
Era um exímio cirurgião. O cabedal de conhecimento adquirido com a formação européia, as operações que realizava, o pioneirismo e o grau de dificuldade de seus atos médicos, deram-lhe fama e notoriedade entre seus pares e parte da comunidade beneficiada por seu trabalho, principalmente os mais pobres, a quem atendia sem visar recompensa financeira. Um dos fatos relatados sobre seu desprendimento é a falência de uma farmácia da qual seria dono, tantas foram as doações de medicamentos a quem não tinha dinheiro. Além de atuar no Hospital de Ordem Terceira, trabalhou na Santa Casa de Misericórdia do Pará, chegando a chefe da enfermaria de cirurgia e ao cargo de provedor. Foi um dos fundadores da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, em 1914.
Em 1918, membros da Associação Científica do Pará o procuram, apelando para o seu espírito elevado e prestígio na classe médica, pedindo seu apoio à criação de uma Faculdade de Medicina e oferecendo-lhe a direção da escola. A idéia foi de pronto encampada pelo médico, que assumiu o comando da empreitada, declinando da oferta do cargo de diretor.
O curso de Medicina, o primeiro das regiões Norte e Nordeste, à exceção da Bahia, começou a funcionar em maio de 1920. Em 1922, Camilo Salgado assumiria a direção da Faculdade, onde permaneceria até a morte. Com seu prestígio, conseguiu sensibilizar a sociedade paraense e levantou a quantia necessária para a aquisição de um prédio, onde passaria a funcionar o curso de Medicina, em frente ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia, que seria utilizado para as aulas práticas. A atuação de Camilo Salgado na Faculdade de Medicina foi das mais representativas. Seu prestígio e influência se fizeram sentir também na política, sendo eleito e reeleito para o Senado estadual em 1918 e 1927, exercendo os cargos de vice-presidente e presidente da Casa. Com a Revolução de 1930 afastou-se da política, retornando em 1935, eleito para a Câmara Municipal.
Camilo Salgado já gozava de fama em vida e sua morte brusca, por provável infarto aos 55 anos, gerou um clima de comoção em toda cidade, dando início a um verdadeiro culto religioso em sua memória. O noticiário sobre o falecimento destacava as qualidades do médico, principalmente sua atuação junto aos mais pobres, ressaltando a presença de grande número de pessoas das mais variadas camadas sociais no cortejo fúnebre, desde a residência do médico até o cemitério de Santa Izabel, uma distância significativa à época. Com o passar do tempo, a idéia de santidade foi se estruturando em torno de Camilo Salgado, passando a ser considerado um dos santos populares mais importantes de Belém, juntamente com Severa Romana, jovem que foi assassinada por não permitir que um militar fizesse sexo com ela e cujo caso teria merecido a atenção, a ponto de a Igreja Católica iniciar a coleta de dados visando um processo de beatificação. Como santo popular de Belém, figura ao lado de pelo menos mais dois médicos – Crasso Barbosa e João Carlos Maciel, falecidos respectivamente em 1919 e 1979 – sendo, no entanto, mais famoso que seus colegas. Sua importância é tamanha que entre as homenagens a ele prestadas está a mudança do nome de praça fronteiriça à Faculdade de Medicina, de Santa Luzia para Camilo Salgado. O nome de santa substituído por o de alguém que seria considerado, também, santo.
Embora desde sua morte a memória de Camilo Salgado fosse motivo de veneração, as referências na imprensa sobre sua santidade começaram na década de 70, mais evidentes por ocasião do centenário de nascimento. Atualmente, são inúmeros os relatos de intervenção na solução de problemas, principalmente de saúde, havendo inclusive referências a “curas espirituais” realizadas por ele em pacientes hospitalizados, que descrevem a presença, à noite, de uma pessoa toda de branco que conversa com elas, as examina e, posteriormente, desaparece. Mas, curiosamente a invocação ao médico não se faz apenas por doenças; as pessoas pedem também para que ele as impeça de adoecerem.
A visitação ao túmulo de Camilo Salgado é programa obrigatório para os freqüentadores do cemitério de Santa Izabel, principalmente às segundas-feiras, dia dedicado às almas. Um grupo de pessoas faz uma espécie de romaria a várias sepulturas, onde estão enterradas aquelas consideradas milagrosas, terminando na sepultura de Camilo Salgado. A líder do grupo relata a atuação do médico em centros espíritas, sendo desejo dela construir um centro com o nome de Camilo Salgado.
O culto a Camilo Salgado não implica a negação à medicina científica. Na maioria dos casos, as pessoas invocam sua memória sem afastar-se dos tratamentos normais. Acredita-se que, mesmo sendo um espírito de luz, pelo fato de ter sido um médico, apesar de morto continuaria trabalhando como tal pela saúde de quem o solicita. Seu túmulo, em mármore negro, ofertado pela colônia portuguesa como reconhecimento à sua atuação no Hospital Dom Luiz I, vive rodeado por placas de agradecimento, fitinhas com o nome de pessoas e de doenças, muitas flores e velas. Na busca por intervenção, as pessoas fazem orações, inclusive algumas especificamente a ele dedicadas, procuram tocar na sepultura e no retrato do médico.
A fé, os símbolos e os rituais na prática médica
Os feitos atribuídos a Camilo Salgado necessitam de um elemento fundamental para sua concretização: a fé. A fé tanto no que diz respeito ao aspecto religioso quanto ao científico. O médico, independente de sua formação ou credo religioso, não pode ignorar os aspectos transcendentais de sua profissão, fator fundamental, também, para o processo de cura ou de manutenção da saúde.
A aceitação da influência de fatores sobrenaturais como causadores de doença permitiu que a invocação de forças divinas fizesse parte do arsenal terapêutico, sem prejuízo dos métodos científicos estabelecidos pela ciência médica. Mesmo com toda a racionalização peculiar à ciência, o médico depara-se com situações em que não consegue responder aos questionamentos e anseios do paciente. Voltar-se ao terreno espiritual na busca de respostas para os males que lhe afligem é uma tendência humana.
Por último, a Antropologia demonstra inúmeros elementos religiosos presentes no ofício de curar. Para o homem primitivo, além da remoção das causas visíveis, o tratamento implicava a utilização de práticas mágicas, envolvendo as forças da natureza, os recursos das plantas, e estava ligado a cultos e rituais, com sacerdotes no papel de dominadores das forças do mal. O combate às doenças pela prática médica também demanda determinados rituais realizados por meio de símbolos, que incluem instrumentos padronizados e organizados por ordem de uso. O mesmo acontece com as roupas, movimentos, gestos, palavras, sons etc. Simbolicamente, bater o carimbo com o número do CRM sacramenta o ritual do ato médico. A aplicação de conhecimentos médicos estimularia também a fé na cura da doença, adquirindo, assim, a atividade, o status de sacerdócio.
* Aristoteles Guilliod de Miranda é cirurgião vascular, membro Titular da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular-PA e primeiro-secretário do Conselho Regional de Medicina do Estado do Pará
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=243
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