"Espíritas: amai-vos, eis o primeiro mandamento; instruí-vos, eis o segundo". Esta frase ditada pelo Espírito de Verdade, em Paris, 1960 (cap. VI, item 5 do Evangelho Segundo o Espiritismo*), há muitos anos tem sido amplamente divulgada no meio espírita. O primeiro mandamento é cristalino, reforçando a base cristã do Espiritismo. É a reprodução das palavras de Jesus, segundo o apóstolo e evangelista João (Jo 14:12): "Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros, como eu vos amo".
Gostaria de fazer algumas reflexões sobre o segundo, "instruí-vos". Para isto, vou inicialmente reproduzir um trecho do artigo "Por que ler Immanuel Kant", de Pedro Paulo Garrido Pimenta (doutor em filosofia pela USP e prof. de história da filosofia moderna do Departamento de Filosofia da USP), publicado na pag. 98 da revista "MenteCérebro & Filosofia: Kant" (vol. 2 - 2a. ed. rev. - São Paulo: Duetto Editorial, 2011).
A razão de começar estas reflexões com um artigo sobre Kant é o fato deste ser um dos maiores expoentes do Iluminismo (muitos o consideram o maior filósofo da Era Moderna), movimento filosófico que foi um verdadeiro "divisor de águas" na cultura ocidental. Pimenta cita, neste artigo, um famoso texto de Kant cujo título traduz por "Que é Ilustração?", mas muitas vezes traduzido por "Que é Esclarecimento?". Traduções deste texto podem ser encontradas na internet, como a deste link, publicada no site da Universidade Federal de Santa Maria.
As idéias centrais iluministas estão claramente expressas na obra de Kardec (nascido no mesmo ano em que Kant desencarnou, 1804), o qual, além do grande inovador no campo espiritual da humanidade, pode ser visto também como um representante de muitos dos melhores valores do Iluminismo.
"Kant viveu e escreveu há mais de 200 anos, num mundo bastante diferente do nosso. Ora, se o intuito da filosofia é (ou deveria ser) explicar as coisas ou fazer-nos pensar sobre elas, fica a pergunta: que teria a nos dizer, ainda hoje, um filósofo tão distante no passado?
Muita coisa. A partir do instante mesmo em que foi publicada, a Crítica da razão pura causou um impacto que ainda hoje se faz sentir. Não é que as teorias de Kant permaneçam atuais: é que elas não precisam, para se sustentar, de referência a esta ou aquela época.
O objetivo de Kant foi a razão humana, um poder, ou uma "faculdade", como ele gostava de dizer, que permanece inalterado. É claro, as manifestações dessa racionalidade, que constituem o campo da cultura, mudam de lugar para lugar e se alteram ao longo do tempo. A antropologia estuda e tenta compreender essas variações. Mas, em se tratando do ser humano, somos os mesmos, onde quer que nos encontremos, seja em que período for: sentimos, agimos, falamos, cremos, raciocinamos, construímos objetos e alteramos a realidade à nossa volta, damos sentido a ela conforme os princípios do que Kant chamava de "razão".
A vida atual é marcada pelo acelerado avanço da tecnologia, um processo que cada vez mais nos distancia daquela referência - a natureza - sem a qual não somos capazes de pensar a cultura. Esse avanço trouxe inegáveis melhorias à humanidade. Já no século 18, porém, Kant alertava, num texto intitulado "Que é Ilustração?", para que não se confundisse o progresso dos conhecimentos e da civilização com o esclarecimento dos homens.
Este último é uma marca daqueles que, tendo ou não instrução, sabem pensar por si mesmos e ousam fazê-lo, a despeito de múltiplos obstáculos: a superstição religiosa, a coerção social, a censura política, a banalização da informação. É perfeitamente possível ser bem informado e completamente estúpido; no mais das vezes é, por sinal, o que acontece. A saturação de conhecimentos impede o uso livre da razão: satisfeitos com um cabedal de informações, descansamos tranquilos em nossa ignorância de nós mesmos. Mais difícil é pensar sem a direção alheia, descobrir, por conta própria, os poderes, limites e usos da razão. Assim, ler Kant hoje é redescobrir a filosofia, não como uma relíquia do passado, mas como uma referência atual; é um jeito de evitar essa submissão, tola e desnecessária, ao que há de mais desumano nas coisas feitas pelo homem."
Frases deste último parágrafo sintetizam idéias básicas desta minha reflexão:
"É perfeitamente possível ser bem informado e completamente estúpido; no mais das vezes é, por sinal, o que acontece". Concordo, se entendermos "estúpido" no sentido de obtuso, falho de entendimento, não em decorrência de um transtorno orgânico, mas causado por rigidez mental, dogmatismo, preconceitos e/ou "preguiça mental". Veja, nesse sentido, a fala de Aulus, instrutor de André Luiz, descrita no livro "Nos Domínios da Mediunidade", cap. 5, citada no final da postagem "Espiritismo e Desenvolvimento Científico", de 19/11/2010.
"A saturação de conhecimentos impede o uso livre da razão: satisfeitos com um cabedal de informações, descansamos tranquilos em nossa ignorância de nós mesmos". Um risco que todos corremos se não estivermos alertas e abertos aos ensinamentos da Vida...
"Mais difícil é pensar sem a direção alheia, descobrir, por conta própria, os poderes, limites e usos da razão". Esta é, a meu ver, a meta do "instruí-vos": não o mero acúmulo de informações, mas aprender a pensar por conta própria. E isto se aprende praticando, ousando usar seu próprio raciocínio, ir até onde este o levar e submeter suas conclusões aos crivos da razão, dos fatos empíricos e das opiniões contrárias.
Não quero dizer, com isso, que o acúmulo de informações seja inútil. Claro que não! A informação é matéria-prima para o raciocínio. Mas a informação deve ser digerida, refletida e integrada com os demais conhecimentos da pessoa (gerando, assim, conhecimento útil ao seu detentor), não engolida sem mastigar, sem reflexão. A informação "engolida" sem reflexão pode ser inútil ou até "tóxica" àquele que a engole.
Numa postagem posterior a esta, de 13/05/2011, "Pensando por si mesmo!", com uma ótima contribuição de Poliana Martins, o tema de pensar por conta própria é retomado e detalhado um pouco mais, com base num texto de Shopenhauer. Veja, também, a postagem "Bendita Dúvida", no qual relaciono os resultados das pesquisas do psicólogo Ibrahim Senay com o tema fé raciocinada x fé cega.
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*Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo: contendo a explicação das máximas do Cristo, sua concordância com o espiritismo e sua aplicação às diversas situações da vida. Tradução de J. Herculano Pires. - 14a. ed. - São Paulo: Edições FEESP, 1998.
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