Justiça: De Kardec ao Século 21
Escreve: Jacira Jacinto da Silva e Mauro Spínola
Em: Novembro de 2012
1. INTRODUÇÃO
Em que pese a extensa interpretação que se pode dar à palavra “Justiça”, talvez como consequência da criminalidade crescente, a preocupação nesta matéria volta-se muito mais para a Justiça Penal. Cada um procura se colocar no lugar do legislador, arriscando-se a opinar sobre o que deveria ser feito para que o mundo tivesse mais justiça. Ouve-se de tudo, inclusive propostas bem extravagantes, como a de voltar às penas de tortura há muito banidas do nosso ordenamento jurídico.
Com base na definição de Allan Kardec, procura-se neste trabalho compreender o significado de Justiça, valendo-se, inclusive, de situações hipotéticas, mas que refletem a realidade.
O ponto de partida é a discussão do conceito espírita de Justiça, que embasa todo esse estudo. Faz-se na sequência uma rápida digressão histórica da lei penal, com ênfase no período coincidente com o início do espiritismo, chegando aos dias atuais em que se vê a implantação experimental da Justiça Restaurativa por alguns magistrados, principalmente na área de infância e juventude.
Infere-se que a Justiça Penal praticada atualmente na maioria esmagadora dos processos criminais se mostra totalmente obsoleta, inócua e divorciada dos princípios que deveriam nortear a aplicação da lei penal. De outra parte, descobre-se que homens geniais já proclamavam bem antes de Kardec a necessidade de se estudar a pena, aplicando-a de forma individualizada, com vistas à recuperação do criminoso pelo bem da sociedade e não apenas pela motivação vingativa como se faz atualmente.
Apesar da ênfase maior na lei penal, a lei civil também é discutida tendo como pano de fundo a filosofia espírita.
Finaliza-se com a notícia alvissareira da aplicação da Justiça Restaurativa, voltada à recomposição da paz social pela harmonização dos envolvidos em conflito.
2. O LIVRO DOS ESPÍRITOS E O CONCEITO DE JUSTIÇA
O capítulo XI da Parte III de O Livro dos Espíritos trata DA LEI DE JUSTIÇA, DE AMOR E DE CARIDADE, abordando os seguintes títulos: - 1. Justiça e direitos naturais. - 2. Direito de propriedade. Roubo. - 3. Caridade e amor do próximo. - 4. Amor materno e filial.
Será que os conceitos e as definições trazidos por Allan Kardec a respeito de JUSTIÇA, AMOR E DE CARIDADE seriam ainda concebíveis e admissíveis para o nosso tempo? Antes que se pretenda responder a esse questionamento, parece interessante analisar a abordagem que Kardec faz desse tema.
Atente-se para a pergunta 873, que principia o tópico “Justiça e direitos naturais”:
“O sentimento da justiça está na Natureza, ou é resultado de ideias adquiridas? Resposta: Está de tal modo na Natureza, que vos revoltais à simples ideia de uma injustiça. É fora de dúvida que o progresso moral desenvolve esse sentimento, mas não o dá. Deus o pôs no coração do homem. Daí vem que, frequentemente, em homens simples e incultos se vos deparam noções mais exatas da justiça do que nos que possuem grande cabedal de saber.”
Antes ainda de aprofundar a discussão do questionamento proposto, já se pode afirmar, a despeito de toda a caminhada percorrida desde a edição de “O Livro dos Espíritos”, que nessa questão a teoria espírita continua atual, ampliando a nossa concepção de justiça e facilitando a nossa compreensão da vida.
Como bem observou o mestre lionês, sendo a Justiça uma lei da natureza, não seria razoável que os homens a interpretassem de forma tão diferenciada, alguns considerando justo aquilo que para outros parece injusto, mas os espíritos esclareceram que ao sentimento de justiça se misturam paixões que o alteram, como sucede à maior parte dos outros sentimentos naturais, fazendo com que os homens vejam as coisas por um prisma falso.
A análise de um sentimento humano permite avaliar a atualidade desta lição. Tome-se como exemplo o sentimento dos pais pelos filhos, que embora sendo uma das maiores demonstrações de amor sobre a Terra, não escapa à possibilidade de se misturar com excessiva proteção, possessão, apego e outras paixões capazes de obscurecer o sentimento maior, provocando as mais diversas reações, inclusive de sentimentos menores, como o ciúme, o orgulho etc.
Esse entendimento de que o sentimento de justiça, como outros sentimentos naturais, se mistura às paixões, fazendo as pessoas verem as coisas por um prisma falso, aliado ao fato de estarmos em diversas condições evolutivas, ajuda-nos a compreender as diferentes reações e manifestações das pessoas, às vezes até contraditórias, do que pode ser considerado justo em determinada situação.
Definindo Justiça
A definição de Justiça mais comum — conceder a cada um o que é seu — pode ser compreendida como um princípio aceito por diversos pensadores, particularmente filósofos do Direito. Tida como a virtude central que coordena todas as demais, a Justiça representa a harmonia e o equilíbrio.
Aristóteles tanto atrelava o termo justiça à legalidade como à igualdade, de modo que justo seria aquele que cumprisse a lei, mas também aquele que realizasse a igualdade.
Representada em Roma por uma estátua com olhos vendados, a Justiça constitui os valores máximos nos conceitos "todos são iguais perante a lei" e "todos têm iguais garantias legais", ou ainda, "todos têm iguais direitos".
A justiça implica, também, em alteridade. Uma vez que justiça equivale à igualdade, e igualdade é um conceito relacional (ou seja, diferentemente da liberdade, a igualdade sempre se refere ao outro), é impossível, segundo Aristóteles e Santo Tomás de Aquino praticar uma injustiça contra si mesmo. Apenas em sentido metafórico poderíamos falar em injustiça contra si, mas, nesse caso, o termo injustiça pode mais adequadamente ser substituído por um outro vício do caráter.
De acordo com a pergunta 875 de “O Livro dos Espíritos”, “A Justiça consiste em cada um respeitar os direitos dos demais”. A resposta é bastante abstrata e subjetiva, permitindo um leque infindável de interpretações, dependendo do que se entenda por direitos alheios, o que resulta em tanta divergência quanto ao sentimento de justiça.
Propõe-se neste espaço uma discussão no campo do direito natural, falando-se em Justiça e não em legalidade. A propósito, a advertência da questão 878 é esclarecedora: “Podendo o homem enganar-se quanto à extensão do seu direito, que é o que lhe fará conhecer o limite desse direito? O limite do direito que, com relação a si mesmo, reconhecer ao seu semelhante, em idênticas circunstâncias e reciprocamente.”
É impressionante como a lição de “O Livro dos Espíritos” é atualíssima e extremamente elucidativa. A pergunta seguinte, 878-a, praticamente arremata a discussão:
“Mas, se cada um atribuir a si mesmo direitos iguais aos de seu semelhante, que virá a ser da subordinação aos superiores? Não será isso a anarquia de todos os poderes? R: Os direitos naturais são os mesmos para todos os homens, desde os de condição mais humilde até os de posição mais elevada (...). Esses direitos são eternos. Os que o homem estabeleceu perecem com as suas instituições (...). A subordinação não se achará comprometida, quando a autoridade for deferida à sabedoria.”
Reflexão a Partir de Exemplos Hipotéticos
Abstraindo-se os conceitos legais, pode-se iniciar a discussão da variação do sentimento de justiça na nossa própria mente a partir de exemplos incertos: Impingir agressão física contra quem matou um cidadão comum é justo? E se a vítima for um bandido? Ou o símbolo de uma ideologia popular, como Chico Mendes?
Sem ao menos sondar singelamente os motivos que levaram o autor do homicídio a praticá-lo, seria possível conjeturar largamente sobre a justeza da “pena”. No primeiro caso, dificilmente haveria um sentimento genérico de que seria justo agredir quem matou um cidadão comum. Maior justiça haveria, aos olhos da maioria das pessoas, em colocá-lo na prisão, obrigá-lo a trabalhar enclausurado ou fazê-lo assistir a família da vítima etc. Diante do quadro “um cidadão matou o outro”, a sociedade não chega a se abalar, sendo comum ver apenas as pessoas próximas da vítima se indignarem.
Qual seria o sentimento da coletividade se a vítima fosse um bandido? Primeiro: quando um bandido é assassinado, a sociedade organizada não toma conhecimento. Segundo: quando toma conhecimento, o sentimento volta-se apenas para aquele que morreu, ouvindo-se frases do tipo: – já foi tarde, isso não é crime, é limpeza pública etc. E quanto ao autor do homicídio? O sentimento generalizado é de que fez justiça, foi corajoso, admirável etc. Nada seria preciso fazer contra ele ou, no máximo, algum tempo de prisão.
Como reage a sociedade organizada quando corre a notícia de que um homem de bem, um expoente de uma categoria de classe ou um missionário religioso, enfim, alguém que estivesse prestando um serviço social fosse morto? O que seria justo fazer com quem praticou o ato? Matá-lo, naturalmente, seria a melhor medida. Na impossibilidade, dever-se-ia aplicarem-lhe os piores castigos físicos e morais.
O crime em análise é o mesmo — uma pessoa tira a vida da outra, mas apenas a nossa avaliação sobre a pessoa da vítima já é suficiente para determinar nosso sentimento em relação às penalidades, que podem ser absolutamente divergentes.
São, portanto, duas questões chaves que se entrelaçam. É verdade que o sentimento de justiça está de tal modo na Natureza, que nos revoltamos à simples ideia de uma injustiça, mas não é menos certo que só com o progresso moral desenvolveremos esse sentimento. A expressão “desenvolve” significa que o sentimento de justiça é também uma construção nossa.
Para saber o que é direito dos outros, portanto, é preciso desenvolver o sentimento de justiça, com o qual não se compadecem as paixões limitantes desta compreensão.
Logo, já se vê que a lição espírita a respeito de justiça continua muito válida para os tempos atuais, nos quais nos vemos envoltos ainda na penumbra do egoísmo, do orgulho e de outras paixões menores, desses sentimentos descendentes.
Conceituada a Justiça, parte-se na sequência para uma revisão histórica da Justiça criminal e uma discussão da Justiça cível, com base nesses conceitos. Depois é retomada a discussão espírita, com foco no direito alheio e na Justiça Restaurativa.
3. NOÇÃO DE CRIME E PUNIÇÃO: DE KARDEC AOS TEMPOS ATUAIS
A interpretação kardequiana de Justiça se mostra capaz de alcançar todos os campos da atuação humana, seja no que toca ao direito da criança e do adolescente, seja a respeito dos direitos civis ou criminais.
Sem dúvida nenhuma, a todos interessa saber se um direito hereditário será respeitado; se o consumidor merece reparação pelo desrespeito na relação comercial ou se os juros cobrados pela instituição financeira são extorsivos. Mas, parece que o direito penal pode ser eleito o segmento mais apto a refletir o amadurecimento da sociedade em termos de Justiça, pois lida diretamente com os dois maiores direitos contemplados na Constituição Federal: o direito à vida e o direito à liberdade.
Considerando as questões atuais, relacionadas com a proposta de redução da idade penal e das estratégias políticas para a contenção da criminalidade, é mister uma análise mais pormenorizada do tratamento que a lei dispensou ao longo do tempo para a transgressão penal. Ao cabo de um resumo da história mais recente, a partir da época de Kardec, será possível avaliar se temos evoluído e se seria recomendável uma atualização da visão espírita do tema.
4. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDEIAS PENAIS
No período pré-histórico a Justiça penal se revela como expressão natural do instinto de conservação, individual e coletivo. Os penalistas o denominam período das vinganças defensivas, subdividido em vingança privada, vingança divina e vingança pública. Com o decorrer do tempo surgiu o período humanitário, mergulhado nas ideias iluministas, inserindo várias transformações nas bases do direito penal através das escolas que se sucederam.
Por estar mais próximo ao nascimento do espiritismo, interessa para a presente análise o estudo da evolução história a partir do período humanitário.
a. Período Humanitário
Após o período do Renascimento intelectual da Europa, das descobertas de Copérnico, Kepler e Galileu, entre outros, surgiu o Iluminismo, preconizando que os homens são naturalmente bons e iguais, quem os corrompe é a sociedade, tendo por principais idealizadores John Locke, Montesquieu, Voltaire e Rosseau.
César Bonesana, o Marquês de Beccaria, publicou em 1764 (um século antes de Kardec), o seu livro “Dos Delitos e das Penas”. Indicou uma série de reformas, mais ou menos profundas, a começar pela abolição da pena de morte e da tortura.
Beccaria estudou a origem das penas e os fundamentos do direito de punir, apoiando-se na teoria do contrato social de Rosseau. Além de defender o fim da pena de morte, expôs ideias que serviram de fundamento aos princípios da legalidade e da presunção da inocência. Para ele, o propósito da pena, além de intimidar o cidadão, seria também o de recuperar o delinquente.
Neste contexto o homem adquire a consciência crítica do problema penal, considerado como problema filosófico e jurídico, surgindo as transformações ditadas pela Escola Clássica. Feuerbach, Romagnosi, Francesco Carrara e Bentham, que escreveu a “Teoria das Penas e das Recompensas”, meio século antes de Kardec, em 1818. Ele acreditava que a pena só poderia ser infligida em razão de sua utilidade.
b. Período Científico
Após o período humanitário, por volta da metade do séc. 19, teve início o Período Científico (contemporâneo de Kardec), também denominado Criminológico, quando foram trilhados outros horizontes para o estudo do Direito Penal, tendo como característica principal a busca dos motivos que levam o ser humano a delinquir.
Algumas escolas de maior importância se sucedem no tempo até a atualidade: Em contraposição à Escola Clássica surge a Escola Positivista, influenciada pelos avanços científicos do século 19, como as teorias de Darwin e Auguste Comte. Essa escola considerava o crime como um fato humano e social, motivo pelo qual seria importante chegar aos motivos de cada indivíduo delinquir, o que forçava a individualização da pena, ou melhor, à adaptação das condições pessoais do delinquente à punição. A pena teria por fim a defesa social e não a tutela jurídica.
Os maiores vultos desta escola são César Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo.
César Lombroso, psiquiatra italiano, publicou em 1876, “O Homem Delinquente”, considerada a obra-prima da Escola Positiva, inaugurando a Antropologia Criminal. Segundo a teoria lombrosiana, certos homens, por efeito de uma regressão atávica, nascem criminosos, como outros nascem loucos ou doentios. A criminalidade decorreria de fatores biológicos. O indivíduo viria ao mundo estigmatizado por determinados sinais de degenerescência, com malformações e anomalias anatômicas ou funcionais, relacionadas com o seu psiquismo. Lombroso reuniu muitos casos e formulou a teoria do homem delinquente por tendência natural.
Lombroso reconheceu que os estigmas arrolados não caracterizavam o criminoso, pois existem indivíduos honestos e normais que os possuem, mas defendia que esses estigmas eram encontrados em proporção muito maior entre os criminosos.
Enrico Ferri, criador da Sociologia Criminal, dizia em sua obra “I Nuovi Orizzonti del Diritto e della Procedura Penale” (1880), que além dos fatores antropológicos, expostos por Lombroso, seria necessário levar em consideração os sociais, ou seja, as condições do meio em que o delinquente vive e também os fatores físicos. Para ele seriam os fatores mesológicos (meio) que iriam formar o criminoso.
Opôs-se à ilusão predominante na idade Média, que perdurou na Escola Clássica, de que o método mais eficaz contra o crime era a pena, feroz (antes de Beccaria) ou mitigada (depois dele). Sustentou, ao contrário, nos “Studi Sulla Criminalitá in Francia” (1880), que as penas têm uma mínima eficácia defensiva contra a delinquência.
Impressiona os argumentos utilizados por Ferri, ainda no século 19 para prevenir a criminalidade. Dizia ser necessário indagar a respeito das causas e procurar eliminá-las ou atenuá-las por meio de um conjunto de providências que fogem à alçada do Código Penal, consistentes em reformas práticas de ordem educativa, familiar, econômica, administrativa, política e também jurídica (de direito privado e público). Considerava que as penas deveriam durar o tempo que levasse para reajustar o condenado, ou seja, não poderia ser estipulada “a priori”.
Em consonância com a crença de que as atitudes humanas nada mais representam do que a manifestação do acervo intelectual e moral do espírito, cuja bagagem se acumula ao longo das existências, Rafael Garofalo afirmava que o delinquente é um portador de anomalia do sentimento moral. Publicou a obra “Criminologia”, em 1885, sustentando que o crime é dotado de fatores antropológicos (Lombroso), sociais (Ferri) e jurídicos (Garofalo).
5. HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO
Por ser um país relativamente novo, nosso direito tem suas raízes no direito estrangeiro, especialmente no ordenamento jurídico português, que vigorou durante três séculos.
O direito brasileiro tem origem romano-germânica, ou na fusão entre o direito romano e os direitos germânicos medievais, como o francês, o espanhol, o italiano, o belga e o alemão.
O ordenamento jurídico de um país tem suas características próprias, que se vão sedimentando com o amadurecimento daquele povo, mas especialmente nos dias atuais, com tão favoráveis meios de comunicação, a tendência é de evolução das noções de direito concomitantemente, entre todos os povos. Os juristas defendem suas teses baseados no direito comparado, sempre buscando inspiração nas melhores técnicas utilizadas em outros países, gerando um intercâmbio de pensamento jurídico entre as nações.
a. Brasil Colonial
Nosso primeiro ordenamento jurídico, vigente ao tempo da descoberta do Brasil, em 1500, foram as Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446, que regiam Portugal mas não chegaram a ser aplicadas, pois em 1514 começaram a vigorar as Ordenações Manuelinas, editadas em 1514, por ordem de Dom Manuel. As penas normalmente não eram prefixadas, ficando ao arbítrio do juiz, que as regulava de acordo com a classe social.
Ao tempo das capitanias hereditárias, as Ordenações Manuelinas, embora formalmente estivessem vigorando, não constituíam a fonte do direito aplicável no Brasil, pois o arbítrio dos donatários, na prática, é que impunha as regras jurídicas.
Em 1603, foram revogadas pelas Ordenações Filipinas. Na época da União Ibérica, em 1603, o rei da Espanha e de Portugal, Filipe II, editou as Ordenações Filipinas que em quase nada distinguiam das já revogadas Manuelinas e Afonsinas.
As penas eram severas e com requintes de crueldades, como a pena de morte que poderia ser na forca (morte natural), antecedida de torturas (morte natural, cruelmente) ou mesmo a denominada morte para sempre, onde o corpo do condenado ficava suspenso, putrefando-se, até que a confraria o recolhesse, além de várias outras.
Os tipos penais eram também contrários á ordem racional moderna, pois confundiam direito, moral e religião. Eram punidos hereges, apóstatas, feiticeiros, blasfemos (contra Deus ou contra os santos), benzedores de cães e outros bichos sem autorização do rei; sodomia, o infiel que dormisse com algum cristão, e o cristão que dormisse com infiel; vestir-se o homem com trajes de mulher ou a mulher com trajes de homem "e dos que trazem máscara". Foi o ordenamento jurídico penal que mais tempo durou no Brasil, mais de dois séculos, de 1603 até 1830.
b. O Império
O Brasil conquistou sua independência de Portugal em 7 de setembro de 1822, mas uma lei de 20.10.1823 mandou que fossem conservadas as Ordenações Filipinas até que surgisse um Código nacional, o que aconteceu somente em 16 de dezembro de 1830, quando foi sancionado o Código Criminal do Brasil, por D. Pedro I. Esse ordenamento fixava os princípios da responsabilidade moral e do livre arbítrio, segundo o qual não há criminoso sem má-fé, sem o conhecimento do mal e sem intenção de praticá-lo. Contemplava as penas de prisão simples e prisão com trabalhos forçados, banimento, degredo, desterro, multa, suspensão de direitos e a mais cruel de todas, morte na forca (para os crimes de insurreição de escravos, homicídio agravado e roubo com morte).
A pena de morte foi revogada tacitamente por D. Pedro II, que possuía o direito de conceder clemência e a distribuía a todos os condenados à morte. Há notícia de que o Imperador teria se impressionado quando soube do erro judiciário que levou o fazendeiro Manoel da Motta Coqueiro à forca.
c. A República
Em 15 de novembro de 1889 foi proclamada a República dos Estados Unidos do Brasil, fato que somado à abolição dos escravos ocorrida no ano anterior (1888), implicava na necessidade de um novo Código, que entrou em vigência através do Decreto n. 774 de 20.09.1890. Severamente criticado, deu ensejo a várias leis extravagantes. Através do decreto n. 22.213 de 14.12.1932 entrou em vigor a Consolidação das Leis Penais, revogada pelo atual Código Penal, promulgado em 1940, com vigência a partir de 01.01.1942.
Sobrevieram reformas na parte geral desse código pela lei 7.209, de 11.06.1984. A lei 7.210, da mesma data, disciplinou a execução penal.
6. LEGISLAÇÃO CIVIL - BREVES CONSIDERAÇÕES
A base da lei civil, como de toda a legislação é a Constituição Federal. Se remontarmos ao tempo de Kardec, veremos que no Brasil vigorou a Constituição Imperial de 1824, com as modificações do Ato Adicional de 1834, até 15 de novembro de 1889, quando foi proclamada a República.
Desde a Constituição Imperial de 1824, houve por parte do legislador uma preocupação explícita no aspecto relativo aos direitos e garantias individuais, o ponto mais relevante da Constituição atual, como também se verificou na Constituição de 1967 e na sua Emenda 1/69.
Observe-se que ao tempo do advento do espiritismo já se tinha proclamado o nascimento dos direitos humanos, oficialmente com a Declaração dos Direitos Humanos da Constituição dos Estados Unidos da América, no ano de 1776, e em seguida com a Revolução Francesa em 1789, considerada um marco incontestável na história da humanidade.
No Brasil, com a chegada da República renovou-se a ordem constitucional a partir da Carta Magna de 1891, seguida pelas de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. Se tais ordens constitucionais enfatizaram os direitos e garantias individuais, não deixaram de representar uma frustração pela maneira de ser e de sentir da sociedade brasileira, mostrando a dificuldade de adaptação ao regime político e ao sistema de governo implantado em 1889. A propósito, convém invocar a lição do professor constitucionalista, Paulo Napoleão:
“O sistema da Constituição de 1891, copiado dos Estados Unidos e transposto às Constituições seguintes, não poderia vingar no Brasil; lá, a sociedade foi forjada à base da ética protestante que consagra o individualismo, enquanto o Brasil foi formado pelo catolicismo ibérico, entranhadamente comunitarista.”
Já no preâmbulo da Constituição vigente, os constituintes de 1988 inseriram princípios que devem ser considerados essenciais, como os direitos sociais, os individuais em geral, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça, a fraternidade, o pluralismo sem preconceitos, a harmonia social e a solução pacífica de controvérsias. Esses valores estão consagrados em “O Livro dos Espíritos”, evidenciando a atualidade desta obra.
Uma análise da evolução normativa revela que os valores propostos na sequência das Constituições republicanas evoluíram com significativos avanços até a vigente Constituição, denominada cidadã. Mas, a experiência mostra que ainda existe um descompasso muito grande entre a previsão constitucional dos direitos e garantias (baseadas nos princípios republicanos) e o cenário político-social. Nós, individual e coletivamente, estamos tão distantes dos valores preconizados por “O Livro dos Espíritos”, como o estamos da prática e do respeito aos princípios consagrados na Constituição Federal.
Basta ver a dificuldade que temos em reconhecer os direitos dos outros minimamente contrários aos nossos interesses. No tocante à lei civil, aplaudimos o Código de Defesa do Consumidor, desde que não sejamos os fornecedores de mercadorias ou serviços. Já no campo penal, não temos a sensibilidade de enxergar os benefícios de propostas alternativas que não estejam calcadas na punição como vingança.
Qualquer das leis modernas destinadas a garantir a cidadania, desde a que ampara o consumidor até a que protege o meio ambiente, está caminhando lado a lado com o espiritismo, que de outra banda não inviabiliza o avanço da ciência; antes apoiando as pesquisas com células tronco e transgênicos, nos parâmetros da ética e do respeito a esse conjunto de normas construídas a duras penas ao longo dos séculos para a defesa dos direitos humanos.
7. COMPREENDENDO O QUE SIGNIFICA “DIREITO DOS DEMAIS”
Uma das questões fundamentais levantadas por Kardec na sua definição de justiça é a que se refere ao direito alheio. Neste tópico discute-se o tema com base nos conceitos fundamentais do espiritismo.
De acordo com a questão 404-a de “O Livro dos Espíritos”, são duas coisas que determinam os direitos dos outros: a lei humana e a lei natural.
“Tendo os homens formulado leis apropriadas a seus costumes e caracteres, elas estabeleceram direitos mutáveis com o progresso das luzes. Vede se hoje as vossas leis, aliás imperfeitas, consagram os mesmos direitos que as da Idade Média. Entretanto, esses direitos antiquados, que agora se vos afiguram monstruosos, pareciam justos e naturais naquela época. Nem sempre, pois, é acorde com a Justiça o direito que os homens prescrevem. Demais, este direito regula apenas algumas relações sociais, quando é certo que, na vida particular, há uma imensidade de atos unicamente da alçada do tribunal da consciência.”
Essa resposta dos espíritos é atualíssima e explicita com racionalidade a fragilidade/inconsistência, diante da lei do progresso, do que se reputa correto na lei humana. Mostra com muita propriedade que a lei humana não pode ser considerada como a lei de justiça, senão para um momento, num determinado local e em circunstâncias específicas. A evolução do conhecimento imprime um ritmo de mudanças dos regulamentos da vida humana em cada época.
Tal reflexão nos impõe o dever de discutir as leis existentes, propor mudanças e participar da construção de um ordenamento jurídico melhor, mais adequado ao seu tempo e compatível com o senso geral de Justiça.
E se a própria lei humana é mutável, substituível, por certo a noção do que são direitos alheios também se modifica, servindo aquela de parâmetro para se chegar a estes. A lei natural, de outra parte, é imutável, soberana e inspira os novos rumos da lei humana. Na resposta à pergunta 614, os espíritos afirmaram: “A lei natural é a lei de Deus. É a única verdadeira para a felicidade do homem. Indica-lhe o que deve fazer ou deixar de fazer e ele só é infeliz quando dela se afasta.”
Para compreender melhor a posição espírita sobre Justiça, é deve-se observa a pergunta 876 de “O Livro dos Espíritos” e sua resposta:
“Posto de parte o direito que a lei humana consagra, qual a base da justiça segundo a lei natural? R: Queira cada um para os outros o que quereria para si mesmo. No coração do homem imprimiu Deus a regra da verdadeira justiça, fazendo que cada um deseje ver respeitados os seus direitos. Na incerteza de como deva proceder com o seu semelhante, em dada circunstância, trate o homem de saber como quereria que com ele procedessem em circunstância idêntica. Guia mais seguro do que a própria consciência, não lhe podia Deus haver dado.”
Diferentemente do caráter subjetivo da resposta dada à pergunta 875, aqui não há dificuldade de compreensão, não se exigindo regra de hermenêutica para se conhecer a base da Justiça de acordo com a lei natural da vida. Desde o sábio ao mais selvagem, desde o ser moralizado ao bárbaro, todos podem avaliar como quereriam ser tratados em circunstância idêntica.
A explicação dada por Kardec à resposta em discussão pode não ser tão valorizada quanto carecia. Não basta não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem, pois de acordo com “O Livro dos Espíritos” o critério efetivo da verdadeira justiça está em querer cada um para os outros o que para si mesmo quereria, o que não significa a mesma coisa. O tópico do capítulo denominado Direito de propriedade – Roubo ajuda a compreender o conceito espírita de Justiça.
Parece equivocado todo desejo de alienar-se do mundo, numa tentativa de eximir-se dos seus perigos. Fazemos parte do mundo e somos os responsáveis pela sua evolução, competindo-nos o dever de participar ativamente da vida. Há sempre uma dúvida permeando nossa consciência, que não consegue discernir direito se tudo que é lícito é justo. Um dos direitos consagrados desde os tempos mais remotos da história da humanidade é o direito à propriedade, convindo analisar as respostas dadas pelos espíritos a Kardec a respeito do tema.
Na pergunta 881, Kardec indagou: O direito de viver dá ao homem o de acumular bens que lhe permitam repousar quando não mais possa trabalhar? R: “Dá, mas ele deve fazê-lo em família, como a abelha, por meio de um trabalho honesto, e não como egoísta. Há mesmo animais que lhe dão o exemplo de previdência.”
A busca da propriedade dos bens terrenos não pode ignorar a existência da grande família humana. Acumular em família significa proporcionar oportunidade a todos, pois não faz sentido reunir grande parte da riqueza da terra nas mãos de alguns em detrimento da miséria de milhares de outros. No mínimo, a propriedade deve transformar-se em mecanismo de progresso para outros. Não pode haver maior expressão de egoísmo na Terra do que a busca do ter pelo ter simplesmente.
Na pergunta seguinte os espíritos afirmaram: “o que, por meio do trabalho honesto o homem junta constitui legítima propriedade sua, que ele tem o direito de defender, porque a propriedade que resulta do trabalho é um direito natural, tão sagrado quanto o de trabalhar e de viver.” Não se olvide a advertência de que a aquisição da propriedade deve-se dar por meio de trabalho honesto e não egoísta; entendido como tal aquele decorrente do esforço de cada um, sem sacrifício do direito alheio, sem esgotamento dos recursos naturais, sem comprometimento da qualidade de vida no planeta, etc.
Tal raciocínio decorre da pergunta 883 e de sua respectiva resposta: É natural o desejo de possuir? “Sim, mas quando o homem deseja possuir para si somente e para sua satisfação pessoal, o que há é egoísmo”. “Há homens insaciáveis, que acumulam bens sem utilidade para ninguém, ou apenas para saciar suas paixões. Julgas que Deus vê isso com bons olhos? Aquele que, ao contrário, junta pelo trabalho, tendo em vista socorrer os seus semelhantes, pratica a lei de amor e caridade, e Deus abençoa o seu trabalho”.
E para que não reste nenhuma dúvida sobre o conceito de Justiça, observemos a resposta dada pelos espíritos à pergunta 884: Qual o caráter da legítima propriedade? R: “Propriedade legítima só é a que foi adquirida sem prejuízo de outrem”.
Prosseguindo na análise do tema, o LE traz na pergunta 886 uma contribuição para compreendermos o significado de Caridade e amor do próximo: “O amor e a caridade são o complemento da lei de justiça, pois amar o próximo é fazer-lhe todo o bem que nos seja possível e que desejáramos nos fosse feito”.
De uma superficial reflexão sobre a justiça humana, pode-se inferir que o poder estatal encarregado dessa tarefa, não pratica a verdadeira justiça, não se tendo notícia de que usualmente tem como complemento o amor e a caridade. Pela vontade de uma maioria significativa, nem mesmo a Justiça humana seria respeitada, donde se conclui que as pessoas estão muito longe de amar o próximo, desejando-lhe o bem tanto quanto gostaria de recebê-lo.
Quando Kardec quis saber, na pergunta 879, qual seria o caráter do homem que praticasse a justiça em toda a sua pureza, os espíritos responderam: “O do verdadeiro justo, a exemplo de Jesus, porquanto praticaria também o amor do próximo e a caridade, sem os quais não há verdadeira justiça”.
A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola, abrange todas as relações em que nos achamos com os nossos semelhantes, sejam nossos inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores. Ela nos prescreve a indulgência, porque da indulgência precisamos nós mesmos, e nos proíbe que humilhemos os desafortunados, contrariamente ao que se costuma fazer. No estágio evolutivo em que se encontra a humanidade da Terra, aquele que propõe indulgência para com o criminoso é execrado, não pode contar com o respeito comunitário e se vê isolado nos seus ideais, mas a caridade proíbe que humilhemos os desafortunados.
Belíssima lição é encontrada em “O Livro dos Espíritos”: “O homem verdadeiramente bom procura elevar, aos seus próprios olhos, aquele que lhe é inferior, diminuindo a distância que os separa.”
Atente-se para a lição extraída da pergunta 887. Jesus também disse: Amai mesmo os vossos inimigos. Ora, o amor aos inimigos não será contrário às nossas tendências naturais e a inimizade não provirá de uma falta de simpatia entre os Espíritos? “Certo ninguém pode votar aos seus inimigos um amor terno e apaixonado. Não foi isso o que Jesus entendeu de dizer. Amar os inimigos é perdoar-lhes e lhes retribuir o mal com o bem. O que assim procede se torna superior aos seus inimigos, ao passo que abaixo deles se coloca, se procura tomar vingança.”
Esta questão dá margem a muitas discussões sobre a criminalidade. Os criminosos agem como nossos inimigos; tomam os nossos bens, sequestram e matam nossos amigos e parentes e criam a instabilidade social esparramando terror pela comunidade, mas não podemos desenvolver o sentimento de vingança, pena de não sermos justos, pois a recomendação dos espíritos é de que possamos retribuir o mal com o bem.
Quando bradamos por penas mais e mais severas, quando desejamos castigos físicos e tratamento deprimente e desumano aos infratores da lei, geralmente diante da notícia de um crime, estamos nos igualando aos marginais e desconsiderando as máximas espíritas. O sentimento de vingança é incompatível com o de justiça, amor e caridade e, portanto, não pode balizar nosso comportamento. Precisamos criar outra mentalidade a respeito do crime e do criminoso, buscando alternativa de devolver o mal com o bem, em forma de educação, assistência, encaminhamento e/ou tratamento.
Para não nos equivocarmos sobre o que fazer quando quisermos ser caridosos, observemos a resposta à pergunta 888, que contém importante advertência dos espíritos:
“Não esqueçais nunca que o Espírito, qualquer que seja o grau de seu adiantamento, sua situação como encarnado, ou na erraticidade, está sempre colocado entre um superior, que o guia e aperfeiçoa, e um inferior, para com o qual tem que cumprir esses mesmos deveres. Sede, pois, caridosos, praticando, não só a caridade que vos faz dar friamente o óbolo que tirais do bolso ao que vo-lo ousa pedir, mas a que vos leve ao encontro das misérias ocultas. Sede indulgentes com os defeitos dos vossos semelhantes. Em vez de votardes desprezo à ignorância e ao vício, instruí os ignorantes e moralizai os viciados. Sede brandos e benevolentes para com tudo o que vos seja inferior. Sede-o para com os seres mais ínfimos da criação e tereis obedecido à lei de Deus.”
8. JUSTIÇA RESTAURATIVA
“Não temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim que fazer algo melhor do que o Direito Penal.” (Gustav Radbruch)
É bem verdade que enquanto homens de gênio, há mais de cem anos, já falavam na necessidade de individualizar as penas; de acabar com as penas de morte e de tortura; da inutilidade de se agravar mais e mais a punição; da necessidade de considerar os fatores sociais para compreender o aumento da criminalidade; da importância que reformas de ordem educativa, familiar, econômica, administrativa, política e também jurídica exerceriam sobre a questão da criminalidade, atualmente nos deparamos com movimentos fortíssimos no sentido contrário. Defende-se a imposição de castigos severos, luta-se pelo agravamento das penas e dos sistemas prisionais e propõe-se reduzir a idade penal.
Felizmente, embora seja ainda um movimento quase desconhecido no Brasil e evidentemente minoritário, a Justiça Restaurativa vem ganhando força e tem sido aplicada por alguns magistrados no Brasil, em especial nas varas da infância e da juventude com excelentes resultados.
A Justiça Restaurativa apresenta os conflitos e os fenômenos complexos como violência e criminalidade por um novo prisma, não como desgraças, mas como oportunidades de mudanças positivas em benefício de todos, e não apenas da Justiça ou do infrator. Uma oportunidade de mudança que não prescinde de mecanismos capazes de reparar danos e reconstruir relações humanas. Ferramentas que, sem desprezar o ordenamento jurídico, também permitam lidar com os sentimentos elementares das pessoas na sua interação com o mundo.
A Justiça Restaurativa parte do ponto de vista que é preciso entender os componentes emocionais do conflito e a sua transformação. Esse entendimento envolve estudo interdisciplinar e múltiplas intervenções, cuja forma mais acabada são as câmaras Restaurativas, um componente introduzido inicialmente em programas coordenados pela polícia de Canberra, capital da Austrália, como alternativa ao processo judicial em casos de infrações de trânsito sob influência de álcool, ou de violência e crimes contra o patrimônio praticados por adolescentes.
Pesquisas realizadas na Inglaterra, na Austrália e em outros países economicamente desenvolvidos, com contextos socioculturais diferentes, atestam que a Justiça Restaurativa tem produzido satisfação nas vítimas, nas pessoas em geral e nas comunidades.
Não pode ser crível que não servisse também para os países em desenvolvimento como o nosso. Algumas iniciativas avançam pelo Brasil, com resultados positivos. Destacam-se os projetos pilotos de Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília. No primeiro as experiências estão sendo realizadas com a Justiça infanto-juvenil; no segundo com escolas, e no terceiro o programa é voltado para infratores adultos. Existem outras experiências em andamento.
As práticas Restaurativas são aplicáveis a qualquer tipo de conflito, desde os problemas de ordem familiar, de vizinhança, desentendimentos nas escolas ou no ambiente de trabalho, aos atos efetivamente considerados infracionais pela lei.
A denominação Justiça Restaurativa é atribuída a Albert Eglash, que escreveu em 1977 um artigo intitulado “Beyond Restitution: Creative Restitution”, publicado por Joe Hudson e Burt Gallaway na obra denominada “Restitution in Criminal Justice”. Para o referido autor há três respostas para o crime – a Retributiva, baseada na punição; a Distributiva, focada na reeducação; e a Restaurativa, baseada na reparação.
Para se compreender melhor o alcance dessa prática, importa transcrever a seguir importante esclarecimento:
“A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, na forma de procedimentos tais como mediação vítima-infrator (mediation), reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).”
A ideia é realizar uma reunião com a participação de um mediador, preferencialmente que desfrute de algum respeito na comunidade, não importando a sua área de atuação profissional. Pode ser um padre, um psicólogo, um médico, um engenheiro, um professor, enfim, alguém que tenha alguma familiaridade com a matéria objeto daquele conflito e se disponha a conversar com as partes, tentando promover um entendimento entre elas.
O local deve ser adaptado para uma reunião, devendo as partes ser colocadas em posição de igualdade, e se possível umas de frente para as outras, todas voltadas para o mediador. O profissional encarregado da mediação promove uma discussão respeitosa entre os presentes, permitindo a manifestação de todos e buscando perceber em que consiste o principal fundamento do conflito. Ao perceber o pano de fundo que gerou toda a discórdia, sugestionará o diálogo sobre as causas e as consequências do desentendimento, encaminhando o acordo num plano restaurativo, não apenas no interesse de uma das partes, ou que se limite ao campo dos interesses individuais, mas que mostre o possível benefício geral, inclusive comunitário daquele acordo.
Novamente se mostra oportuna a lição de Eduardo Rezende Melo:
“(...) Para compreender a justiça Restaurativa é preciso desapegar-se do pensamento linear e cartesiano, ir além também do pensamento sistêmico para utilizar-se do pensamento complexo - ou seja, “ver a terra plana e redonda ao mesmo tempo” (Mariotti, 2000: 30). É necessário mudar o foco epistemológico – mudar as lentes - como sugere Zehr, que assim vislumbra as noções de crime e justiça (Zehr, 1990:181): Para os neozelandeses, não ocorre mediação, mas facilitação no processo restaurativo. Os argentinos usam a expressão mediación.” [(Morris, Allison and Warren Young. 2001) e (Paz, Silvina et Silvana, 2000)].
A visão de crime muda pelo foto da Justiça Restaurativa, pois, conforme se extrai das lições deste autor, não é apenas uma conduta típica e antijurídica que atenta contra bens e interesses penalmente tutelados, mas, antes disso, é uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade, o que impõe à Justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado.
Há, de acordo com esse entendimento, a defesa de um valor muito maior do que o simples interesse na imposição de uma pena de prisão, pois o foco está na restauração, na criação de oportunidades às pessoas envolvidas, que poderão buscar, com o auxílio de um mediador, um acordo ancorado no diálogo. Os pioneiros na prática desta modalidade de fazer justiça colocam os envolvidos no centro do processo, de forma que consigam assumir a responsabilidade pelos seus atos, aceitando e até buscando um resultado individual e socialmente terapêutico. Sem esse resultado, a Justiça não cumpriria o seu objetivo.
Propõe-se, portanto, agir com vistas ao futuro e para a restauração dos relacionamentos, não se restringindo, simplesmente, a concentrar-se no crime ou no ato infracional já concretizado e na culpa.
Eduardo Rezende Melo simplificou a ideia com o seguinte contraponto: “A justiça convencional diz: você fez isso e tem que ser castigado! A justiça Restaurativa pergunta: o que você pode fazer agora para restaurar isso?”
9. CONCLUSÃO
Uma reflexão sobre a evolução legislativa, incluindo as propostas inovadoras do momento atual, desde as penas vigentes no Brasil colonial, severas e com requintes de crueldades, até as garantias da Constituição cidadã de 1988; da pena de morte antecedida de torturas ou mesmo da denominada morte para sempre até a expressa determinação legal do respeito aos direitos humanos, há de se reconhecer que um longo caminho foi percorrido.
Embora cada país guarde as suas tradições e suas peculiaridades, e mesmo sendo correto afirmar que há ordenamentos jurídicos extremamente divergentes entre si, não é possível evitar que o consenso global do respeito à vida, à liberdade, e a todos os direitos fundamentais se dissemine por todo o planeta, contagiando os povos e despertando as consciências.
Sendo o planeta Terra asilo de tão variada gama de níveis evolutivos, naturalmente esta consciência chega em momentos diferentes nos agrupamentos sociais, que refletem, em regra, o amadurecimento do seu povo. Mas, todos os seres humanos têm, especialmente com a modernização dos meios de comunicação, informações suficientes para os tocar, provocando em muitos o interesse pela inovação e pela mudança.
É assim que o progresso legislativo vem sendo observado, especialmente nos países ocidentais, modernizando as legislações para que expressem efetivamente a garantia dos direitos naturais. As questões atinentes à modernidade, como as que tocam na bioética, ou as que se referem à comunicação virtual, não passam despercebidas e promovem debates sociais ao mesmo tempo em que provocam a sua normatização.
Paralelamente, estão vigorando há exatos 150 anos, como proposta filosófica para o Direito e a Justiça, os postulados espíritas, que se apresentaram ao mundo muito à frente da sua época e continuam absolutamente válidos para os tempos atuais. Afinada com a concepção humanista exaltada no iluminismo, a filosofia espírita não se compadece com nenhuma manifestação sócio-política tendente a retroceder a legislação no tempo.
Por qualquer prisma que se analise o ordenamento jurídico, seja no âmbito trabalhista, seja no campo do direito penal, ou na regulação dos direitos civis, é possível adotar os postulados espíritas como fundamento, especialmente os capítulos atinentes ao direito natural e à justiça, pois esses preceitos têm total aplicação ao mundo contemporâneo, como se estivessem sendo ditados na atualidade.
Não pode haver equívoco em dizer que “a justiça consiste em cada um respeitar os direitos dos demais”, como também não envelhece a advertência de que “na incerteza de como deva proceder com o seu semelhante, em dada circunstância, trate o homem de saber como quereria que com ele procedessem em circunstância idêntica”.
A moral espírita não envelhece e não se torna dispensável porque o espiritismo adotou a moral de Jesus de Nazaré, como se norteou pela moral de Buda ou de Maomé. Na base das propostas espíritas para o direito e a justiça, está o direito natural, bússola segura e indispensável para o delineamento de todos os povos, inscrito nas consciências universalmente.
Desde meados do século 19 os ordenamentos jurídicos podem se servir da filosofia espírita como mais uma inspiração segura, que não inventou nenhuma moral diferente, nem propôs uma ordem diferenciada: o espiritismo simplesmente fundiu conceitos e fundamentos que estão na base das religiões e das mais diversas filosofias de vida, convidando o homem para crescer indefinidamente, para além do túmulo e aqui mesmo noutras oportunidades, revestindo outros corpos em novas oportunidades de construção da felicidade plena.
Compare-se a proposta da Justiça Restaurativa com os postulados espíritas; analise-se o capítulo que trata da lei natural e da justiça, contrapondo-o aos princípios constitucionais vigentes. Atente-se para as propostas dos grandes gênios que marcaram a evolução do direito penal, como Beccaria, Lombroso e Enrico Ferri, comparando-as com a advertência de Kardec na resposta à pergunta 888, citada anteriormente neste texto: instruir os ignorantes, moralizar os viciados, brandura e benevolência com tudo que seja inferior.
A humanidade ainda não percebeu, mas a França produziu uma inteligência ímpar que foi capaz de explorar as manifestações fúteis dos espíritos, dali revelando ao mundo uma fonte inesgotável de recursos para o crescimento da humanidade. Os próprios espíritas ainda não conhecem essa filosofia como gostaria o seu fundador, mas a contínua busca do conhecimento levará a humanidade a reconhecer a contribuição deixada por Allan Kardec para a evolução contínua.
Fonte: Ensaio apresentado no Xº Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, realizado de 11 a 14 de outubro de 2007, em Santos-SP.
Jacira Jacinto da Silva é formada em Ciências Biológicas, Matemática e Direito. Especializada em violência doméstica contra crianças e adolescentes pela USP, mestre em Direito, professora universitária e juíza de Direito há mais de 15 anos, é titular da Vara Cível da Comarca de São Paulo-SP. Escreveu o livro “Criminalidade: Educar ou Punir?”.
E-mail: jacjac@terra.com.br
Mauro de Mesquita Spínola possui graduação em Engenharia Eletrônica pelo ITA - Instituto Tecnológico de Aeronáutica (1979), mestrado em Computação Aplicada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (1986) e doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de São Paulo (1999). Atualmente é professor doutor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e professor titular do Programa de Mestrado e Doutorado em Engenharia de Produção da Universidade Paulista. Coordenador do eLabSoft, onde realiza pesquisas sobre produção de software. Escreveu o livro “Centro Espírita: Uma Revisão Estrutural”.
E-mail: mauro@spinola.eng.br
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