Revisão da Literatura
Endereço para correspondência: Adair de Menezes Júnior. Rua Barão de Cataguases, 460/701 – 36015-370 – Juiz de Fora, MG. E-mails: adair.menezes@ufjf.edu.br e alex.ma@ufjf.edu.br
Differential diagnosis between spiritual experiences and mental disorders of religious content
Adair de Menezes Júnior1, Alexander Moreira-Almeida2
1 Psicólogo e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
2 Psiquiatra e professor adjunto pela Faculdade de Medicina da UFJF.
Recebido: 16/8/2008 – Aceito: 13/10/2008
Resumo
Contexto: Experiências espirituais podem ser confundidas com sintomas psicóticos e dissociativos, constituindo-se muitas vezes em um desafio para o diagnóstico diferencial.
Objetivo: Identificar critérios que permitam a elaboração de um diagnóstico diferencial entre experiências espirituais e transtornos psicóticos e dissociativos.
Métodos: Foi feita uma ampla revisão na literatura sobre o tema, na qual foram examinados 135 artigos identificados em pesquisa no PubMed.
Resultados: Foram identificados nove critérios de maior concordância entre os pesquisadores que poderiam indicar uma adequada diferenciação entre experiências espirituais e transtornos psicóticos e dissociativos. São eles, em relação à experiência vivida: ausência de sofrimento psicológico, ausência de prejuízos sociais e ocupacionais, duração curta da experiência, atitude crítica (ter dúvidas sobre a realidade objetiva da vivência), compatibilidade com o grupo cultural ou religioso do paciente, ausência de comorbidades, controle sobre a experiência, crescimento pessoal ao longo do tempo e uma atitude de ajuda aos outros. A presença dessas condições sugere uma experiência espiritual não patológica, mas, por outro lado, há carência de estudos bem controlados testando esses critérios.
Conclusões: Esses critérios propostos na literatura, embora alcançando um consenso expressivo entre diferentes pesquisadores, ainda precisam ser testados empiricamente e direções metodológicas para as futuras pesquisas sobre esse tema são sugeridas.
Palavras-chave: Alucinação, dissociação, possessão, transe.
Abstract
Context: Spiritual experiences can be confused with psychotic and dissociative symptoms, providing it is frequently a challenge for the differential diagnosis. Objective: To identify criteria to allow the elaboration of a differential diagnosis between spiritual experiences and psychotic and dissociative disorders. Methods: It was made a wide revision in the literature about the theme, in which 135 articles identified in the research in PubMed were examined. Results: Nine criteria were identified for a greater agreement among the researchers that could indicate an appropriate distinction between spiritual experiences and psychotic and dissociative disorders. They are, in relation to the lived experience: lack of psychological suffering, absence of social and occupational impairments, short duration of the experience, critical attitude (to have doubts about the reality of the experience), compatibility with the patient’s cultural or religious group, no co-morbidities, control over the experience, personal growth along the time and an attitude to help the other ones. The presence of those conditions suggests a not pathological spiritual experience, but, on the other hand, there is lack of well controlled studies testing these criteria. Discussion: These criteria proposed in the literature, 76 Menezes Júnior A, Moreira-Almeida A / Rev Psiq Clín. 2009;36(2):75-82
Introdução
Historicamente, desde meados do século XIX, a Psiquiatria tem desprezado e mesmo considerado patológicas as manifestações religiosas e espirituais. Freud1 considerou a religião como uma neurose obsessiva. A experiência mística também foi vista como um episódio psicótico2 e como uma psicose borderline3. O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders III (DSM-III) faz 12 referências à religião, todas elas associadas à psicopatologia4. Outros autores, entretanto, apresentaram diferentes opiniões. Jung5 viu na experiência mística a manifestação de uma experiência psicologicamente saudável. Maslow6 considerou as “experiências culminantes” a expressão máxima da saúde e do bem-estar psicológico. Hood7 e Caird8 constataram que indivíduos que relataram ter tido experiências místicas pontuam mais em escalas de bemestar psicológico e menos em escalas de psicopatologia do que os controles. Alguns autores sugeriram a importância de se buscarem critérios diferenciadores entre o que seriam experiências espirituais não patológicas e o que seriam transtornos mentais de conteúdo religioso. As contribuições desses autores para essa importante questão foram coletadas na literatura, e procurou-se apresentar e discutir alguns critérios comuns que tenham perpassado pela maioria dessas investigações. Ao final, concluiu-se que, embora todos esses critérios apresentem certa coerência, ainda não foi feita até o presente nenhuma investigação extensiva que testasse esses critérios, e são colocadas algumas diretrizes metodológicas que alguns autores sugeriram para essa investigação.
Métodos
A base de dados buscada foi a PubMed e os descritores investigados foram dissociation, trance, possession e hallucination. Foram priorizados os artigos que apresentavam pesquisas extensivas e critérios diferenciadores entre o que poderia ser considerado uma experiência saudável e o que poderia ser considerado uma experiência patológica.
Resultados
Vários autores têm abordado a relação entre as experiências espirituais e manifestações patológicas da mente. Místicos, videntes e médiuns têm desafiado a compreensão dos profissionais de saúde mental e tornado necessária uma adequada diferenciação entre o que seria uma experiência espiritual saudável e o que seria um transtorno psicótico ou dissociativo com conteúdo religioso. Já no início do século XX, William James9, investigando as experiências de êxtase místico, verificou que essas experiências, quando saudáveis, tinham duração breve e traziam efeitos benéficos para quem as vivenciava. Buckley10 examinou relatos autobiográficos de indivíduos que viveram experiências místicas e de indivíduos que viveram experiências esquizofrênicas. Ele identificou aspectos comuns e aspectos diferenciadores em ambas as experiências. Encontrou os seguintes aspectos comuns nas duas experiências: elevação do nível de consciência, sentir-se transportado além do próprio self, perda das fronteiras entre o self e os objetos, dilatação do sentido do tempo, sentir-se envolvido em luz e um forte sentido de comunhão com o divino. É característica do êxtase místico a preservação da estrutura do pensamento e da fala, o predomínio das alucinações visuais sobre as auditivas, um grande aguçamento dos sentidos, estabilidade das emoções e a duração da experiência limitada no tempo. São características de um surto psicótico a quebra da estrutura do pensamento e da fala, o predomínio das alucinações auditivas sobre as visuais, o embotamento dos sentidos, o esvaziamento das emoções entremeadas por rompantes agressivos ou sexuais e a duração da experiência ser extensiva no tempo. Lenz11 enfatizou o grau de convicção sobre a experiência vivida como critério de saúde mental: na vivência saudável existe a dúvida sobre a realidade objetiva da experiência e no transtorno mental existe certeza sobre essa realidade. Lukoff12 e posteriormente Greyson13 investigaram a Experiência de Quase-morte (EQM), procurando diferenciá-las de outras experiências psicopatológicas. Nesta experiência, um indivíduo chega a se ver fora do corpo, encontra seres espirituais e depois retorna ao seu corpo. Assim, Lukoff percebeu na EQM nítidos e antecedentes estressores, um bom funcionamento
psicológico prévio, uma atitude exploratória em relação à experiência e a ausência de déficits interpessoais. Já Greyson, confirmando as características saudáveis da EQM, tais como já tinham sido apresentadas por Lukoff, diferenciou a EQM do transtorno do estresse pós-traumático, vendo neste último a presença de lembranças intrusivas, a diminuição geral do interesse em diversas atividades, o estranhamento dos outros, a restrição dos afetos e um senso de futuro abreviado que não se faziam presentes na EQM. Oxman et al.14 também viram aspectos comuns e diferenciados nos relatos de místicos e esquizofrênicos. Eles escolheram relatos disponíveis publicamente, que o texto tivesse sido escrito logo depois da experiência, que estivesse escrito em inglês e tivesse uma extensão suficiente. De comum entre ambas as experiências, viram a abundância das fantasias e, como fatores diferenciadores, viram que os místicos tratam de encontros com Deus e de sentimentos religiosos, enquanto esquizofrênicos tratam de doenças e de fortes sentimentos de maldade. Sims15 propõe que uma experiência espiritual saudável é compatível com uma tradição religiosa; o indivíduo compreende a incredulidade dos outros e tem reservas em discutir sua experiência com outros que acredita que não a compreenderão, é descrita com convicção e, por fim, o indivíduo sente necessidade de efetuar alguma mudança no seu comportamento depois da experiência vivida. Já a experiência patológica se revela em resultados que são compatíveis com uma história de transtorno mental e surge sempre associada a outros transtornos psiquiátricos. Grof e Grof16, com base em suas experiências clínicas, criaram o conceito de “emergências espirituais”. Esses autores apresentaram essas experiências com um duplo significado, possível pelos diferentes significados de Spiritual Emergence e Spiritual Emergency. Spiritual Emergence refere-se à eclosão de uma experiência espiritual que surge sem acarretar perturbação das funções psicológicas. Já a Spiritual Emergency é a ocorrência descontrolada da experiência espiritual com problemas dos funcionamentos psicológico, social e ocupacional. Grof e Grof16 fizeram uma ampla e detalhada diferenciação entre as manifestações de uma experiência espiritual e um transtorno mental. No primeiro caso, as experiências são suaves, não geram sensações desagradáveis, não conflitivas, são graduais, preservam a diferenciação entre o que é interno e o que é externo, geram uma atitude de expectativa positiva, favorecem uma renúncia ao controle, estimulam a aceitação de mudanças, integram-se à consciência diária, permitem uma compreensão detalhada, não geram necessidade de discutir frequentemente e possibilitam uma lenta mudança de compreensão de si mesmo e do mundo. Já as experiências ligadas a um transtorno mental são intensas, geram sensações desagradáveis, como tremores e calafrios, são conflitivas, são abruptas, não diferenciam o que é interno do que é externo, geram uma atitude ambivalente, promovem a necessidade do controle, instigam resistência às mudanças, trazem perturbações na consciência diária, sua compreensão é confusa, geram a necessidade de discutir a experiência e provocam modificações abruptas na consciência de si e do mundo. Greenberg e Witztum17 investigaram uma população de judeus ortodoxos, procurando diferenciar o que seria um sistema de crenças e práticas religiosas rigorosos, mas psicologicamente saudáveis, de um transtorno obsessivo-compulsivo com fundo religioso. Assim, as experiências pessoais saudáveis são compatíveis com as crenças aceitas pelo grupo religioso, seus detalhes não excedem as crenças aceitas, são moderadas, geram excitação e as habilidades sociais e os hábitos de higiene estão preservados. Já nas crenças obsessivas, as experiências são muito pessoais e divergem das crenças do grupo, seus detalhes excedem as crenças aceitas, são intensas, geram terror e as habilidades sociais e os hábitos de higiene estão comprometidos. Já os comportamentos saudáveis não excedem as prescrições, são gerais, não estão presentes condutas de limpeza e de verificação e não ocorre a desconsideração de outras práticas. As condutas compulsivas, diferentemente, excedem as prescrições, são muito específicas, estão associadas a rotinas de limpeza e de verificação e trazem desconsiderações para com outras práticas religiosas propostas pelo grupo religioso. Lukoff et al.18 propuseram para o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, na sua versão de 199419, uma nova categoria de problemas psicológicos, denominada por eles “problemas religiosos e espirituais”. Problemas religiosos são experiências perturbadoras, que envolvem crenças e práticas de uma igreja ou instituição religiosa, que ocorrem, por exemplo, em um momento de crise de fé ou na migração para uma nova orientação religiosa. Problemas espirituais são experiências perturbadoras, que envolvem o relacionamento do indivíduo com um ser ou força transcendente, que ocorrem, por exemplo, nas experiências místicas e nas EQM. Em uma experiência mística ocorrem uma vivência de união com um ser divino, uma grande euforia e a perda da noção de tempo e espaço, que podem ser confundidas com episódios psicóticos agudos12. Em uma EQM, uma pessoa se vê projetada fora do seu corpo, encontra seres espirituais e alcança uma nova compreensão da vida, experiência esta que pode ser confundida com um transtorno dissociativo de despersonalização20. Esse foi um importante avanço na Psiquiatria, pois se colocou a possibilidade de muitas experiências espirituais e religiosas não serem patológicas, apesar de se assemelharem a transtornos mentais. A criação dessa categoria teve como objetivos incrementar especificidade no diagnóstico dessas experiências, reduzir efeitos danosos de um diagnóstico equivocado, estimular pesquisas que gerem tratamentos mais adequados para esses problemas e estimular os centros de formação psiquiátricos a acrescentarem a compreensão e o tratamento desses problemas aos seus programas de treinamento. Jackson e Fulford21 empreenderam um estudo comparando cinco indivíduos que tinham vivenciado experiências espirituais com cinco indivíduos que estavam se recobrando de surtos psicóticos, mas que interpretavam suas experiências em termos religiosos. Eles propuseram que as experiências espirituais e psicóticas não podem ser diferenciadas apenas pelos sintomas que são muito semelhantes em um caso e outro, mas seria mais importante investigar o sistema de valores e crenças com os quais o indivíduo avalia e compreende as suas experiências. Jackson e Fulford21 conseguiram, assim, levantar sintomas diferenciadores entre as duas experiências. Assim, a experiência espiritual geralmente é: voltada para os outros, é curta, vivida intelectualmente, existe dúvida sobre ela, preserva o insight sobre a origem interna da experiência, é controlada, não leva a perder o contato com a realidade, é emocionalmente neutra ou positiva (traz satisfação), traz consciência da não compreensão dos outros, não ocorrem falhas nas ações intencionais, não leva à deterioração da vida, seu conteúdo é aceitável pelo grupo cultural de referência do indivíduo e gera crescimento pessoal. Já a experiência psicótica geralmente é voltada para a própria pessoa, é longa, é vivida corporalmente, existe a certeza sobre ela, falta insight sobre sua origem interna, leva a pessoa a ser submergida nela, leva a perder o contato com a realidade, é emocionalmente negativa (traz sofrimento), não existe consciência da não compreensão dos outros, gera falhas em ações intencionais, leva à deterioração da vida, seu conteúdo é estranho para o grupo cultural de referência do indivíduo e ocorre um prejuízo geral na vida pessoal. Koenig22, procedendo a uma revisão da literatura sobre critérios diferenciadores entre experiência espiritual e transtornos mentais, propôs que as primeiras não comprometem os desempenhos social e ocupacional, preservam a compreensão do caráter incomum da experiência, não geram rupturas na relação com um grupo sociocultural de referência, não estão associadas a outras patologias mentais e geram crescimento psicológico com o tempo.
A questão da saúde mental e da psicopatologia se torna crítica diante dos fenômenos alucinatórios, que
habitualmente são associados à esquizofrenia ou a outros quadros psicóticos. Segundo Esquirol, a alucinação é uma percepção sem objeto23. A definição do DSM-IV não se afastou muito desse significado original, ao definir alucinação como uma percepção sensorial que apresenta um forte sentido de percepção real, mas ocorre sem a estimulação externa dos órgãos de sentido pertinentes19. Pesquisas populacionais há mais de um século vêm indicando que os fenômenos alucinatórios, mais do que uma categoria de experiências restritas aos psicóticos esquizofrênicos, ocorrem de uma forma bastante disseminada na população. No final do século XIX, Sidgwick24, vinculado à Sociedade de Pesquisas Psíquicas, juntamente com um grande número de colaboradores, entrevistou 7.717 homens e 7.599 mulheres britânicos. Ele constatou que 7,8% dos homens e 12% das mulheres relataram ter tido pelo menos um episódio vívido de alucinação. West25, conduzindo uma pesquisa similar, por meio da
distribuição de questionários com 1.519 sujeitos, 50 anos depois, na mesma região anteriormente investigada por Sidgewick, confirmou a ocorrência de alucinações em 14% dos indivíduos investigados. Tien26 constatou que 10% dos homens e 15% das mulheres em uma amostra de 18.572 indivíduos, obtida em uma ampla pesquisa de sintomas psiquiátricos em uma população geral (Epidemiological Catchment Area Program), apresentavam alucinações ao longo de toda a vida sem manifestarem outros sintomas patológicos. Ohayon27 sondou 13.057 indivíduos da Grã-Bretanha, da Alemanha e da Itália por telefone e constatou que 38,7% destes relataram ter tido alucinações e, entre estes, 5,1% apresentavam esse sintoma uma ou mais vezes por semana. Além de as alucinações acontecerem extensivamente, Johns e Van Os28, Serper et al.29 e Lincoln30 propõem que elas acontecem em um continuum no qual em um extremo estão os indivíduos saudáveis e, no outro extremo, estão os esquizofrênicos. Baseados em grandes estudos populacionais, eles propõem que, tal como a esquizofrenia não é um construto categorial, mas sim dimensional, ou seja, mais do que existir uma categoria de esquizofrênicos puros, diferentes dos normais, a esquizofrenia se estende em maior ou menor grau a toda a população. O diagnóstico patológico dependerá de uma maior frequência e intensidade da experiência alucinatória, da coexistência de outros sintomas e de prejuízos na capacidade de adaptação em geral.
Strauss31 propôs serem indicadores de patologia a
convicção sobre a realidade objetiva da vivência alucinatória,
a ausência de apoio cultural para a experiência,
a grande quantidade de tempo envolvido com a experiência
e a implausibilidade da vivência em relação à
realidade socialmente compartilhada.
Slade32, investigando dois pequenos grupos de psicóticos
(alucinadores e não alucinadores) e Richardson e
Divvo33, examinando dois grupos de alcoólatras (alucinadores
e não alucinadores), utilizando testes psicológicos,
verificaram que as alucinações são geralmente disparadas
por estresse pessoal, em pessoas muito focadas em
si mesmas, que são muito imaginativas e têm um pobre
teste de realidade. Honig et al.34 compararam grupos de
não pacientes alucinadores, pacientes com transtorno
dissociativo e pacientes esquizofrênicos e concluíram
que as alucinações entre normais são tranquilas, não
geram alarme nem perturbação e existe controle sobre
elas e as alucinações dos esquizofrênicos são precedidas
por eventos traumáticas, geram perturbação e não existe
controle sobre elas. Serper et al.29 compararam três grupos
de pessoas, sendo 39 esquizofrênicos alucinadores,
49 esquizofrênicos não alucinadores e 363 universitários
normais e assinalaram algumas características dos
alucinadores esquizofrênicos: consideram que suas
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alucinações visuais e auditivas são percepções objetivas,
têm vários impedimentos na vida, apresentam outras
disfunções clínicas e têm percepções distorcidas.
Experiências dissociativas também estiveram associadas
a transtornos mentais. O termo dissociação
foi inicialmente criado por Pierre Janet, em 1880, para
significar “desagregações psicológicas”35. Segundo
esse autor, a dissociação seria a perda da unidade do
funcionamento da personalidade humana, na qual certas
funções mentais atuariam de forma independente
e fora de um controle consciente. A dissociação pode
ocorrer naturalmente, como, por exemplo, quando uma
pessoa se absorve tanto em assistir a um filme que fica
totalmente alheia a tudo o mais que esteja acontecendo
a si mesmo ou ao seu redor.
Na concepção original de Janet, a dissociação seria
um construto categorial, ou seja, é um tipo ou categoria
de experiência que só ocorreria em indivíduos
mentalmente doentes, que teriam uma deficiência em
integrar diferentes conteúdos psicológicos. Alguns contemporâneos
de Janet, como Frederic Myers, Morton
Prince e William James, apresentaram um ponto de vista
diferente, pelo qual a dissociação é entendida como um
construto dimensional, ou seja, é vivenciada em maior
ou menor grau por todas as pessoas indo de um extremo
saudável até o outro extremo patológico36.
É necessário termos uma compreensão da extensão
em que a dissociação ocorre na população em geral.
Ross et al.37 avaliaram uma amostra de 1.055 adultos
não diagnosticados, extraída do total de 650.000 habitantes
da cidade de Winnipeg, Canadá. Eles aplicaram
nesta amostra o DES (Dissociative Experience Scale),
um instrumento de autoinforme composto por 28 itens
que mede experiências dissociativas, e constataram que
13% desses indivíduos apresentaram uma pontuação
acima de 20, indicando a existência de um nível alto de
vivências dissociativas nessa amostra.
Waller et al.38 e Martinez-Taboas39 propuseram que
a dissociação não patológica envolve a capacidade de
absorção e de envolvimento imaginativo e constitui uma
experiência humana para a qual todos os indivíduos são
propensos em maior ou menor grau. Tellegen e Atkinson40
definiram a absorção como um estado de total atenção,
no qual o aparelho representacional parece estar
totalmente dedicado a experienciar o objeto percebido.
Wilson e Barber41, Rhue e Lynn42 e Rauschenberger e
Lynn43 identificaram alguns indivíduos, que denominaram
de “fantasiadores”, como sendo muito propensos à
fantasia, tendo tido na infância um maior envolvimento
com jogos de fantasia do que com brincadeiras com outras
crianças e sua capacidade de fantasiar representou
um canal de escape para sua solidão e sua raiva.
Lewis-Fernandez44 afirma que a dissociação não
patológica ocorre com o controle pleno por parte do
indivíduo, dentro de um contexto cultural que a organiza,
e é significativa para a própria pessoa e para os
outros. Butler45 acrescenta que a dissociação saudável
é útil em todo o processamento mental, facilita ações e
atitudes automáticas, ajuda a escapar mentalmente de
situações desagradáveis e a concentrar-se em atividades
absorventes, não tem sua origem associada a traumas,
ocorre em períodos curtos, é suave e não bloqueia o
funcionamento da mente.
A propensão à fantasia, entretanto, por mais inocente
que possa parecer, pode levar à dissociação patológica,
quando um evento traumático faz o indivíduo buscar, na
fantasia, a forma de escapar da realidade intolerável46.
A dissociação patológica, surgindo inicialmente como
uma forma de lidar com a situação aversiva, pode se
generalizar para as demais situações de vida, passando
a trazer prejuízos na capacidade de adaptação do indivíduo45.
É a interação entre a capacidade natural de absorção,
com as experiências traumáticas, que resultará
na dissociação patológica45.
A dissociação patológica expressa um definido mau
funcionamento psicológico, gera sofrimento e incapacitação,
é involuntária e é interpretada pelo grupo cultural de
referência do próprio indivíduo como sendo uma doença
que necessita de tratamento44. Dissociadores patológicos
mesclam as formas não patológicas com as formas patológicas
de dissociação47. A dissociação patológica está
ainda associada a experiências traumáticas do passado,
é crônica, grave e debilitadora para os funcionamentos
psicológico e social do indivíduo45.
Segundo Waller et al.38 e Martinez-Taboas39, a dissociação
patológica se expressa por meio da amnésia,
da despersonalização-desrealização, da confusão de
identidade e da alteração de identidade.
A amnésia dissociativa compreende basicamente a
perda de memória, sobretudo de eventos recentes e de
informações pessoais importantes, que não pode ser
atribuída a um esquecimento habitual, à fadiga ou a um
sintoma de origem orgânica48.
A despersonalização refere-se às alterações afetivas
e perceptuais em relação ao self, que levam o indivíduo
a estranhar a si mesmo e ao seu próprio corpo. A desrealização
refere-se às mesmas alterações em relação
ao seu meio ambiente, que fazem o indivíduo se sentir
desconfortável nesse ambiente48.
O transtorno de identidade dissociativa, antes chamado
de transtorno de identidade múltipla, manifesta-se
pela existência de duas ou mais personalidades dentro
de um mesmo indivíduo, que se alternam dentro dele,
com períodos de amnésia, eclipsando as personalidades
que foram afastadas48.
A alteração de identidade é vista mais evidentemente
no transtorno de transe dissociativo. Cardeña et al.48
definem transe como uma alteração temporária da
consciência, da identidade ou do comportamento, com
diminuição da percepção do ambiente e ocorrência de
movimentos que estejam fora do controle da própria
pessoa, sem substituição da própria consciência por
outra. Os mesmos autores definem transe de possessão
como sendo a mesma vivência, com a diferença que a
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alteração da consciência é atribuída a uma força ou entidade
espiritual externa que se apossa da consciência
daquele que vivencia a experiência.
Deve-se tomar cuidado para não considerar patológicas
todas as formas de transe e possessão, pois
Bourguignon49, em uma investigação antropológica,
constatou que, em 488 sociedades no mundo, 90% delas
possuíam formas institucionalizadas de transe e, em 52%
destas, esses estados são atribuídos à possessão por
seres espirituais. Isso nos mostra que a extensão em que
essa vivência acontece no mundo nos leva a tomar cuidado
para não reduzi-la a um mero mau funcionamento
psicológico de indivíduos mentalmente doentes.
Lewis50 propôs alguns critérios para diferenciar a
possessão saudável da patológica. A possessão não
patológica, denominada por ele como central, é episódica,
ocorre em um tempo delimitado, é organizada e
ocorre dentro de um contexto cultural que lhe confere
significado. Já a possessão patológica, denominada por
ele como periférica, tende a ser crônica, ocorre de forma
não controlada, não é organizada e não compatível com o
contexto cultural no qual o indivíduo esteja integrado.
Beng-Yeong51 propõe que estados de transe saudáveis
sejam disparados por ações definidas, sejam curtos
e gerem resultados benéficos para o indivíduo que os
vivencia e serão patológicos se forem disparados por
emoções estressantes, durarem muito e gerarem resultados
maléficos para quem os vivencia.
Cardeña et al.52, utilizando os conceitos de Lewis50,
afirmam que a possessão central (não patológica) vem
de uma predisposição provavelmente biológica, que foi
modelada por fatores socioculturais organizados, que
levaram a rituais controlados de possessão. É neste
sentido que poderemos compreender os transes de
possessão da mediunidade, que acontecem nas religiões
mediúnicas, como no Espiritismo, na Umbanda
e no Candomblé. Já a possessão periférica (patológica)
também decorreria de uma predisposição biológica,
mas que foi impactada por traumas físicos ou sexuais,
gerando alterações de identidade difíceis de controlar e
organizar. Os indivíduos passam a apresentar sofrimento
psicológico e prejuízos significativos nos seus funcionamentos
social e ocupacional.
Discussão
Será apresentado um resumo com os principais sintomas
diferenciadores entre uma experiência espiritual
e um transtorno mental propostos por esses autores.
A ordem de colocação desses critérios deve-se a uma
concordância decrescente dos autores em relação a eles,
tal como apresentados neste estudo. Esses critérios
não devem ser considerados isoladamente, mas sim
em um conjunto. Faltam, entretanto, mais estudos que
testem prospectivamente os critérios diferenciadores
do que seria uma experiência espiritual e do que seria
um transtorno dissociativo ou espiritual.
I – Ausência de sofrimento psicológico10-13,14,16,17,21,32-34,44,45,52
O sofrimento está relacionado à doença. Deve-se lembrar,
entretanto, que os estágios iniciais de uma experiência
religiosa ou espiritual podem vir acompanhados
de grande sofrimento pessoal que poderão ser superados
à medida que o indivíduo avançar na compreensão e
no controle da sua experiência. Greyson13, estudando as
EQM, afirma que os indivíduos, após essa experiência,
sentem raiva e depressão, experimentam abalos em suas
crenças religiosas, passam a duvidar de sua sanidade
mental, sentem-se incompreendidos pelos familiares e
profissionais de saúde e que 75% rompem casamentos,
e suas carreiras profissionais podem ficar gravemente
prejudicadas. Comentando quatro casos em seu artigo,
ele afirma que o atendimento psicoterapêutico e
psicofarmacológico adequado trouxe uma melhor compreensão
da experiência vivida por eles, levando esses
pacientes a retomarem e muitas vezes reestruturarem
sua vida de forma mais significativa.
II – Ausência de prejuízos sociais e
ocupacionais12,16,17,21,22,28-30,44,45,52
A saúde psicológica implica um ego estruturado gerenciando
adequadamente as relações sociais, familiares,
afetivas e atividades ocupacionais. Lukoff et al.54, entretanto,
comentam como indivíduos que tiveram uma
experiência mística podem se sentir temporariamente
desajustados em relação à sua vida cotidiana, enquanto
não conseguirem compreendê-la e retomá-la.
III – A experiência tem duração curta e ocorre
episodicamente9,10,21,28-31,45,50,51
A experiência espiritual não patológica é um acréscimo
às possibilidades vivenciais do indivíduo, não se interpondo
às demais experiências cotidianas da consciência.
Assim, espera-se que a pessoa saudável passe por uma
vivência incomum e logo retome seu estado habitual
de consciência e suas atividades cotidianas. Existem
casos, entretanto, de médiuns treinados que sustentam
experiências espirituais por mais tempo sem comprometimento
de sua saúde mental54.
IV – Existe uma atitude crítica sobre a realidade
objetiva da experiência11,15,16,21,22,29,31-33
A consciência saudável, surpreendida pela experiência
espiritual ou religiosa, precisará refletir sobre o
sentido dessa experiência para si mesmo e para sua
vida. Enquanto o indivíduo não desenvolver uma nova
compreensão sobre a experiência que esteja vivendo,
ele precisará colocar sob suspeita essa nova experiência,
até que ela possa ser compreendida. Enquanto isso, ele
poderá não conseguir avaliar adequadamente o que lhe
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sucedeu, como ocorre, por exemplo, nas experiências
místicas, como mostraram Lukoff et al.54.
V – Existe compatibilidade da experiência com algum
grupo cultural ou religioso15,17,21,22,31,44,50,52
A compatibilidade da experiência com as crenças e os
comportamentos próprios de um grupo cultural de referência
sugere o ajustamento social daquele que vive
a experiência com as práticas de um grupo, conferindo
legitimidade a essa vivência. Entretanto, a EQM13 e a
mediunidade54 podem surpreender indivíduos, seus
familiares, bem como os grupos religiosos em que eles
estejam inseridos, sem que alguém tenha qualquer
compreensão sobre o que tenha ocorrido.
VI – Ausência de comorbidades15,22,28-30
Sims15 apontou que a psicopatologia relacionada a uma
experiência espiritual pode ser observada tanto no
comportamento do indivíduo quanto na sua experiência
subjetiva, manifesta-se em todas as suas áreas de vida e
compõe um histórico de vida compatível com o histórico
de um transtorno mental, em nada lembrando uma experiência
espiritual. Quanto mais evidenciada estiver a
patologia, mais probabilidades teremos de estar diante
de um transtorno mental.
VII – A experiência é controlada21,34,44,50,51
Cabe a um ego vigilante controlar suas vivências habituais
e garantir um bom desempenho pessoal e social.
Caberá a ele, da mesma forma, controlar as experiências
espirituais e religiosas, de modo a não prejudicar suas
vivências habituais. Formas orientais de meditação, por
exemplo, tendem a atrair indivíduos com transtorno
de personalidade borderline e narcisista, que têm uma
frágil integração psicológica, podendo gerar nesses
indivíduos falsas experiências de iluminação, repletas
de visões aterradoras54.
VIII – A experiência gera crescimento pessoal15,16,21,22,51
A experiência espiritual gera significados enriquecedores
para a vida pessoal, social e profissional de um
indivíduo. Já a experiência patológica, mal estruturada
e mal estruturada desde o princípio ampliará o desequilíbrio
do indivíduo ao longo do tempo, resultando em
deterioração geral da sua qualidade de vida15.
IX – A experiência é voltada para os outros21,32,33
A experiência voltada para os outros guarda um sentido
e um objetivo social, próprios de alguém socialmente
ajustado. Já a experiência egocentrada tende a ser isolacionista
e pode, muito facilmente, levar o indivíduo a
enredar-se nos meandros de um pensamento delirante
sem que ele próprio possa se dar conta da extensão do
seu desvio da normalidade.
Conclusão
Embora os critérios diferenciadores aqui apresentados
sejam sugestivos para diferenciar uma experiência
espiritual de uma condição de transtorno mental, são
necessários estudos controlados que testem esses
critérios sugeridos.
Esses futuros estudos deverão tomar alguns cuidados
para que possam ter maior validade.
Tart55 já tinha apontado a inadequação da abordagem
científica tradicional para abordar os “Estados Alterados
de Consciência”, entendidos como alterações qualitativas
no padrão global de funcionamento mental que o
indivíduo sente serem radicalmente diferentes do seu
modo habitual de funcionamento, recomendando o uso
extensivo de observações empíricas que possam ser
replicadas por outros investigadores.
Heber et al.56 e Ross et al.37 propuseram que os estudos
sejam feitos com populações não clínicas, para que
seus resultados possam ser mais generalizáveis para a
população não diagnosticada.
Reinsel57 sugeriu que fossem utilizadas amostras
maiores e estas fossem recolhidas de ambientes onde as
experiências estudadas ocorram com maior frequência.
Almeida e Neto58 recomendam, entre outras coisas,
utilizarem-se diversos critérios de normalidade e patologia,
avaliar a experiência de modo multidimensional
e priorizar estudos longitudinais que permitam esclarecer
as complexas relações causais entre as variáveis
associadas às experiências espirituais e aos transtornos
mentais.
Levin e Steele59 também insistem em estudos longitudinais,
propõem o uso de conceitos operacionais relativos
às experiências e recomendam buscar respostas
para as seguintes perguntas: o que, quem, onde, quando,
como e por quê.
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