Dos diversos trabalhadores espíritas sob a avaliação de Bezerra e seus auxiliares, Comélia era a que estava enfrentando as maiores dores morais no testemunho de sua fé.
Comélia afastara-se do trabalho mediúnico direto havia quase um ano em decorrência da tragédia familiar que vivia, relacionada ao filho Marcelo, que lhe exigia cuidados intensos. Jamais a doutrina espírita lhe fizera tanto sentido quanto agora, envolvida pelas dobras da dor e do resgate na própria carne. Por isso, apesar de não comparecer ao centro para os trabalhos normais, mantinha-se fiel aos ensinamentos de amor e renúncia nos quais era acompanhada por seu esposo Lauro que, diferente dela, nunca se filiara a qualquer igreja ou prática religiosa formal.
A história de Marcelo e o drama familiar que o envolvia expressava o sofrimento de tantos pais e irmãos inseridos no contexto da dor sem remédio que vitima, em geral, os membros mais inexperientes no entendimento das coisas elevadas do Espírito.
Marcelo, um dos filhos do casal Comélia e Lauro, rapaz imaturo e pouco afeito às coisas espirituais, desde cedo declarara a própria independência, desejando buscar a liberdade da rua, onde daria vazão às próprias inclinações sem se sentir vigiado pelos olhares paternos nem atormentado pelos deveres familiares, notadamente o de conduzir-se de acordo com os ensinamentos recebidos.
Tratava-se de um espírito sem compromissos sérios com a vida e que trazia em seu passado diversas peregrinações pelas facilidades destruidoras do caráter sadio. A presente encarnação fora planejada de modo que a sua insana busca por aventuras desaguasse na oportunidade de reerguimento, na companhia de pais humildes e disciplinadores, conquanto amorosos e vigilantes, visando a sua própria edificação. Renascido em lar simples, sem as facilidades econômicas do passado, lar esse que dependia do trabalho de seus membros para ser abastecido dos recursos materiais indispensáveis à manutenção de seus integrantes, revoltava-o o fato de todos precisarem trabalhar com afinco e, depois, compartilhar os recursos pessoais para cooperar com o progresso comum. Comida, roupas, eletricidade, telefone, escola, tudo dependia do esforço compartilhado, não havendo espaço para a ociosidade de ninguém. De espírito fraco, Marcelo não se conformava com o que o destino lhe oferecia, no caminho áspero do trabalho, como a estrada dura e a disciplina como o meio de tornar-se melhor. Não aceitava trabalhar para todos nem privar-se das facilidades que sua alma almejava desfrutar novamente. Por isso, assim que se viu com idade suficiente e com recursos financeiros que lhe garantissem o próprio sustento, afastou-se do ambiente familiar onde era querido, onde encontrava amigos sinceros e amorosos que velavam por sua segurança e onde, fatalmente, conseguiria enfrentar a luta contra as próprias inclinações. Com a desculpa da necessidade de espaço ou almejando dar o tão sonhado “grito de liberdade”, embrenhou-se na floresta inóspita do mundo, onde o custo dessa liberdade costuma ser a dor, o sofrimento e a decepção.
Jovem, portanto, transferiu residência em companhia de Alfredo, “amigo” que o acolheu com o compromisso de dividirem despesas.
Infeliz gozador do passado, Marcelo viu, na figura do novo companheiro, a tábua de salvação que poderia livrá-lo das disciplinas da família, que ele considerava um peso, castradora de suas vontades e cheia de limitações ao exercício de sua liberdade. Agora, em companhia do amigo, garantiria para si o “espaço” que sempre pleiteara, considerado como o território para as leviandades ocultas, fora da supervisão de pai e mãe.
Então, não tardou para que, na companhia do rapaz, Marcelo se iniciasse nas facilidades perniciosas do mundo livre. Conheceu pessoas, envolveu-se com mulheres, penetrou o mundo da droga e, de degrau em degrau, foi descendo a ribanceira, envolvendo-se cada vez mais nos cipoais venenosos de vícios e aventuras impróprias, com a desculpa de que deveria provar de tudo para descobrir o sentido da vida sem a interferência de outras pessoas. E com o apoio de um viciado ou de outro pervertido, Marcelo ia reconhecendo o velho mundo, aquele ao qual já havia pertencido outrora, em vidas anteriores, onde viciara-se naquelas atitudes superficiais e perigosas. De nada lhe valeram as advertências dos pais quando de suas escassas visitas à família. Quanto mais os escutava, mais repulsa sentia contra aquele “estilinho” de vida decadente, ultrapassado, no qual dois adultos tinham de guiar os filhos escolhendo seus caminhos. Coisa do passado, forma de viver que, segundo suas idéias, havia perdido a razão de existir. Segundo Marcelo e seus amigos frustrados, a família era uma invenção da sociedade para manter seus membros alienados, onde os mais velhos dominassem os mais novos impedindo-os de se desenvolverem de acordo com suas próprias inclinações naturais. Algo como uma prisão revestida de grades de carinho para melhor controlar a vida dos outros.
Então, com toda essa “filosofia” na cabeça, Marcelo não tinha olhos para perceber o buraco onde ia se afundando. Tudo aquilo que ouvira de seus pais, os conceitos de honestidade, responsabilidade, disciplina, repudiara radicalmente, afastando tudo isso de seus comportamentos. Responsabilidade, caráter, seriedade de conduta, respeito aos semelhantes, eram conceitos da “prisão família” e, portanto, não serviam para nada. Não lhe causaram qualquer constrangimento as doses de bebidas sempre maiores que compartilhava com os “amigões”, nem o batismo nas drogas mais pesadas, que comemorava como um ritual de iniciação no grupo que o acolhera como mais um membro. Não percebia que suas condutas eram motivadas pelo desejo de ser aceito em um outro tipo de “família”. Repudiando a família que o recebera e criara com zelo e carinho, buscava, contraditoriamente, tomar-se membro de outra família, aquela que reunia criaturas despreparadas como ele, frustradas, complexadas, preguiçosas e rebeldes em um único conjunto, no meio do qual poderiam dar vazão aos seus comportamentos nocivos, fazendo tudo o que desejassem sem censuras, livres para o exercício das diversas aberrações. Não se importou quando, da droga fácil, migrou para as orgias sexuais e, junto com ambas, para a prática de delitos visando conseguir os valores para alimentar seus vícios.
Sim. Marcelo havia descido toda a escadaria da decência ao lado dos mesmos amigos, aqueles que considerava a própria família até o dia em que surgiram os primeiros sintomas da debilidade orgânica decorrente da enfermidade do sistema imunológico, demonstrando que o jovem havia antecipado o irremediável encontro com a morte.
Quando as feridas explodiram em sua epiderme, a fraqueza invadiu seus membros e a prostração colou-o à cama, a família dos desajustados expulsou o membro podre de seu seio.
Marcelo foi banido do grupo assim que a ambulância o levou ao hospital. Dali, Marcelo não teria mais para onde voltar. Seus amigos deixaram-no entregue a si mesmo, porque não tinham nenhum interesse em perder a própria liberdade para cuidarem dele.
O amigo Alfredo entregou as coisas de Marcelo na portaria do hospital e, para se livrar de qualquer responsabilidade, deixou o nome e o endereço dos pais do rapaz, como responsáveis por ele. Já havia mais de quatro anos que o filho não mandava notícias nem procurava por ninguém.
Em casa, no entanto, a dor do afastamento fustigava o coração dos pais. Durante as noites, Cornélia e o marido se angustiavam nas horas da oração, meditando no destino do filho, que sabiam não ser dos melhores. Tinham a convicção de que o rapaz era orgulhoso demais para voltar ao seu lar com a cabeça baixa, além do fato de se presumir senhor de si mesmo, para chegar derrotado.
Lauro, o genitor, possuía mais extensa a ferida no coração, porquanto doía-lhe a postura de repúdio de Marcelo perante tudo o que ele e a esposa haviam feito para ajudá-lo. A ausência, o sofrimento que seu egoísmo produzia em seus corações, a distância deliberada, as más companhias, eram estiletes no coração do pai que, apesar disso tudo, ainda o amava como antes. Por isso, incontáveis vezes o pai perambulava pela cidade, sempre pensando poder encontrar o filho por acaso.
Toda procura, no entanto, redundava num grande fracasso.
Marcelo tivera o cuidado de mentir sobre seu endereço para que não fosse encontrado, evitando ser perturbado. Haviam, pois, perdido totalmente o contato, e só quando o filho os procurava é que se reviam. Mas já se haviam passado quatro anos de silêncio. Cornélia, indo ao centro espírita para as reuniões regulares, em todas elas colocava o nome do filho na lista de orações, rogando a ajuda espiritual para a proteção do rapaz. Suas preces eram recolhidas pelos mentores da casa com a emoção dos que admiram o amor puro que brota do coração materno ou paterno, ainda que por aqueles que não se fizeram dignos de serem amados. Equiparado ao Amor de Deus por seus filhos transviados, o amor de Cornélia era exemplo para os próprios espíritos, que tudo faziam para acalmá-la tanto quanto ao esposo que, em casa, não havia amadurecido para o interesse espiritual, apesar de acompanhar Cornélia eventualmente, como ouvinte de palestras e recebedor de passes.
Ao longo dos anos, a preocupação acerca dos destinos de Marcelo haviam avassalado os pensamentos e desejos de Cornélia de tal forma que, durante a noite, seu espírito, ao invés de ir aos trabalhos da instituição onde era esperada para o desempenho das tarefas que lhe eram próprias, saía pelas ruas na busca do filho perdido.
Entidades nobres que velavam seus passos a seguiam controlando-a e protegendo-a de ataques de espíritos agressores, uma vez que desejavam impedir que, mesmo em espírito, Cornélia vislumbrasse a real condição do filho amado.
Então, as noites eram infindáveis caminhadas, de becos em becos, expondo-se aos encontros mais assustadores. Nada disso, entretanto, diminuía nela a determinação de encontrar o pobre e infeliz Marcelo.
O regresso ao corpo no dia seguinte era carregado de um sentimento de tristeza, apesar do amparo que seu protetor espiritual lhe estendia incessantemente. O Amor de Cornélia e a proteção dos Amigos Invisíveis era o escudo de sua alma contra os ataques das vibrações trevosas dos lugares onde se metia.
Algumas vezes, durante o sono, os amigos a procuravam, convocando-a para voltar ao trabalho. Apesar de aceder ao convite por alguns dias, eis que, logo depois, voltava Cornélia a ausentar-se dos deveres, demandando continuar as buscas infrutíferas.
Tudo ia nesse passo, quando um telefonema do hospital trouxe a notícia do paradeiro de Marcelo.
Ninguém se apresentava para retirar aquele trapo de gente, nem o setor de assistência social sabia .do paradeiro dos amigos a quem Marcelo, insistentemente, pedia que fossem chamados para retirá-lo daquele lugar. Não queria que os pais o vissem nem que recebessem qualquer solicitação. Aquilo seria a maior vergonha de sua vida, no orgulho gigantesco ferido pela derrocada total.
No entanto, mesmo proibidos pelo enfermo de procurarem a família, não restou outra alternativa à direção hospitalar do que comunicar-se com os pais para informá-los da condição do filho doente.
Marcelo, nessa época, já era homem feito, com seus vinte e cinco anos corroídos pelo “estilo de vida” que adotara. Porém, o destino que o esperava – A MORTE FÍSICA – iria encontrá-lo em qualquer parte em poucos meses.
As dores e feridas estavam controladas com medicamentos, mas a fraqueza persistia, e a falta de forças físicas impedia as suas reações nervosas. Então, não protestou contra o hospital quando lhe disseram que seus pais haviam sido informados tanto de seu paradeiro quanto de sua situação.
Cornélia e seu marido imediatamente correram para a casa de saúde, com o coração apertado pela dor de quem ama e pela notícia trágica do fim das forças do rapaz.
Lauro carregava no coração uma ansiedade mesclada com revolta por tudo o que o filho ingrato fizera sua mãe e ele próprio sofrerem.
– Por que ficou tanto tempo longe, sem dar qualquer notícia? Somos nós quem mais o amamos na Terra. Por que fez isso conosco? – eram os pensamentos do pai que, nesse momento, procurava calar a insatisfação para que não perturbasse o reencontro que os esperava no hospital.
Aquele momento, fatalmente, seria muito difícil para as partes, mas, tanto ela quanto Lauro estavam amparados pelo amor de Ribeiro que, acompanhando o caso desde o princípio, sabia que Marcelo precisava do sofrimento a fim de que recomeçasse o trajeto da subida espiritual.
Muitas vezes se faz necessário esgotar todo o combustível de insanidades para que a alma se declare, finalmente, cansada das leviandades, tendo bebido todo o fel do cálice de desgostos com o qual se desilude das ilusões cultivadas e das facilidades buscadas com avidez.
O quarto coletivo já intimidava os visitantes pelo volume de dor ali acumulada tanto quanto pelas condições dolorosas dos ali abrigados, todos em estado terminal.
Marcelo não sabia como se dirigir aos seus pais. Tinha consciência de que era um farrapo humano. Apesar disso, orgulho ainda existia como vestimenta defeituosa da alma, a lutar contra a renovação do espírito. Porém, chegara a hora das verdades e estava encerrado o tempo das fantasias.
Cornélia dirigiu-se ao leito do filho, no encontro doloroso do Amor com a Imaturidade.
– Marcelo, meu filho – foram as únicas palavras que conseguiu dizer, enquanto tentava conter na garganta o choro convulsivo diante do estado aflitivo do rapaz.
– Mãe… – falou a voz fraca do rapaz não parece, mas sou eu mesmo… Pai… estou morrendo…
As frases curtas do enfermo eram estiletes no coração dos que o amavam.
Ali estava a família verdadeira. Aquela que não fugia dos compromissos do Bem e que receberia os seus membros derrotados para ajudá-los a se reerguerem.
A presença de Lauro e Cornélia ao seu lado, depois que todos os seus amigos o abandonaram sem qualquer explicação, teve o condão de trazer Marcelo ao entendimento do quanto estivera errado em seus conceitos sobre o lar, ao longo de tantos anos de loucuras. Sua carência física e emocional fizeram brotar, pela primeira vez em muito tempo, as lágrimas do arrependimento. E sem palavras nem discursos, pai e mãe se inclinaram sobre o corpo do filho, juntando suas lágrimas às do moço desditoso. Não lhes incomodava nem o mau cheiro de suas feridas, nem o risco de contágio, nem a sua aparência de cadáver.
Seus pais o amavam, mesmo depois de quatro anos de fuga e indiferença, de arrogância e erros. Nenhum dos dois recordava o passado. Não era mais necessário voltar ao ontem para saber quem havia acertado e quem havia errado.
Essa era a certeza mais importante desse reencontro. Marcelo estava necessitando deles e isso era tudo. Então, depois de se recomporem e de transformar em felicidade aquele momento doloroso, Lauro saiu em busca da direção médica, responsável pelo rapaz.
Assim que o médico chegou no quarto, Lauro lhe disse:
– Doutor, eu e minha esposa desejamos autorização para levar Marcelo de volta à sua casa, à nossa casa.
Ouvindo aquelas palavras, o próprio doente se sentiu no dever de protestar:
– Mas pai, eu não tenho casa. Estou este trapo de gente apodrecendo vivo. Não é justo que vocês me levem para lá… Chorava de vergonha. Soluçava, no esforço de resgatar um mínimo de decência.
– Não, meu filho, este bendito hospital que tem cuidado de você é uma casa abençoada, mas, lar é lar, não é mesmo, doutor? – perguntou Cornélia, emocionada com a reação do próprio marido, reação que ela mesma não esperava, diante das manifestações de contrariedade que Lauro sempre demonstrava ao falar de Marcelo.
– Bem… sim. – disse o médico, um pouco relutante – a casa dos pais é o porto seguro que todos nós jamais esqueceremos. O problema são os cuidados que Marcelo exige.
– Não importa, doutor. O senhor nos explica o que é preciso fazer e a gente cuida dele como se fosse no hospital -falou Lauro, decidido.
Sabendo que o rapaz não teria muito tempo de vida mesmo, e que o hospital necessitava daquele leito para atender um outro paciente que, como Marcelo, também não teria muitos amigos para acolhê-lo, o médico se prontificou a explicar como deveriam proceder. Para isso, pediu licença ao doente, afastando-se na companhia dos visitantes para fora do quarto, onde poderia falar com franqueza.
Marcelo, por sua vez, não estava iludido quanto ao que o esperava. Havia visto aquela enfermidade vitimar o corpo de muitos rapazes e moças. Visitara alguns deles antes da morte e, por isso, sabia que seu tempo se esgotava. No entanto, jamais imaginara que poderia, um dia, morrer em casa, ao invés de perecer isolado e anônimo, no meio de estranhos num hospital qualquer do mundo.
Seu coração, emocionado, continuava a produzir as lágrimas de arrependimento. Ribeiro, em espírito ao seu lado, alisava seus poucos e desgrenhados cabelos, infundindo-lhe novas energias para o aproveitamento máximo daquele final de estágio reencarnatório.
Ao influxo do amigo espiritual, Marcelo acomodou-se em sereno repouso, como se a esperança viesse a acender a luz da paz no coração. Certamente morreria pelas próprias culpas e excessos. No entanto, morreria nos braços de sua família verdadeira. Poderia pedir desculpas, conseguiria redimir-se ao menos pelas palavras e, quem sabe, servir de exemplo para os que, jovens e irresponsáveis, se iludiam com uma falsa liberdade, aquela que era usada como arma e não como instrumento de crescimento.
Mais do que nunca, agora, sonhava em voltar para casa. Mesmo que fosse para aguentar as acusações de seus irmãos, de ouvir os juízos maus e condenadores de todos quantos não fossem capazes de perdoar-lhe a insânia.
Não se importaria com nada. Procuraria amar a todos, mesmo àqueles que não o aceitassem. Sabia que tinha culpa nisso tudo e, portanto, compreenderia com humildade e aguentaria o que tivesse de suportar. Todo sacrifício valeria a pena para poder estar, novamente, sob os cuidados de Cornélia e Lauro.
Lá fora, o diálogo com o médico foi aberto:
– Preciso informá-los de que Marcelo não deverá viver mais do que um ou dois meses. As crises serão maiores, seu corpo frágil se ressentirá de diversas infecções e, por isso, quanto menos exposição externa, menores riscos para a sua precária saúde. Poderemos colocar à disposição de vocês aparelhos que monitorem algumas funções de Marcelo e qualquer emergência a ambulância poderá trazê-lo para cá. Será necessário realizar sua higiene íntima com muito cuidado para que as fezes não contaminem as feridas abertas.
– Doutor, nós faremos tudo o que for necessário, conforme as suas orientações de que, aliás, muito necessitamos também. Queremos, sim, levar nosso Marcelo para casa.
– Pois bem, senhor Lauro e dona Cornélia. Vamos providenciar a remoção. Acho que um de vocês precisará ir com ele na ambulância enquanto seria bom que o outro fosse embora, providenciar um lugar adequado para receber o doente. Seria importante que ele ficasse em um quarto com banheiro próximo para facilitar as coisas.
Cornélia olhou para Lauro, como a lhe dizer que era no quarto do casal que o filho ficaria. A cama mais larga e o banheiro acoplado facilitariam todos os cuidados, realmente. Ela e Lauro se revezariam, um dormindo no quarto, em uma poltrona, e o outro no sofá da sala ou no outro quarto da casa, ocupado pelo irmão mais novo, o único que ainda morava com os pais.
Cornélia resolveu dirigir-se para casa a fim de organizar as coisas, preparando o ambiente e os membros da família para o retorno do filho perdido. Lauro permaneceria no hospital assinando os documentos finais e acompanhando o traslado daquele tesouro de amor que recuperaram do lodo, ainda que fosse para tê-lo em suas mãos por apenas mais trinta ou sessenta dias.
A disposição dos dois enchia o coração do filho de esperança e paz.
– Por fim, uma família de verdade – pensava o doente
a família que eu sempre tive, mas não sabia que tinha. Obrigado, meu Deus, obrigado por esta bênção que eu não mereço.
Era a oração que o jovem, descrente inveterado, agora ensaiava com o pensamento, descobrindo o poder do amor como mecanismo de recuperação da alma perdida.
Ali começava para Marcelo o reerguimento longamente planejado pelo mundo espiritual. E para Comélia, Lauro e seus familiares, o testemunho mais importante de suas vidas também era aguardado neste período de atendimento às dores daquele infeliz, que recuperava a sanidade mental graças às tragédias materiais e morais.
A partir daquele dia, todos se sacrificaram para acolher o filho pródigo que regressava ao lar. Na casa espírita, a notícia do reencontro do filho causou alegria, possibilitando a organização da visita fraterna com a aplicação de passes magnéticos e a conversação amiga a benefício do doente.
Jurandir e Alberto, acompanhado às vezes por Alfredo ou por Dalva, semanalmente se dirigiam ao lar de Cornélia para fazerem a prece e envolver Marcelo nos banhos vibratórios de esperança e força.
As primeiras semanas foram um pouco conturbadas pela dificuldade dos cuidados que seu estado de saúde exigia. No entanto, segundo as próprias orientações do mundo espiritual, Marcelo estabilizaria as funções orgânicas pelo tempo necessário ao aproveitamento das lições que lhe chegavam para limpar as chagas de sua alma.
Realmente, as coisas se passaram daquela forma prevista por Ribeiro, com a ação de Bezerra de Menezes auxiliando no reequilíbrio biológico, visando o aproveitamento das novas oportunidades.
A conversa amiga e alegre dos visitantes enchia Marcelo e bom humor. Ele sempre costumava dizer, ao final do encontro:
– Olha, gente, de um jeito ou de outro eu vou acabar baixando um dia lá nesse centro espírita de vocês, hein! Vocês é que se preparem para me receber. Quando é que voltam aqui?
– Ora, Marcelo, se você está tão decidido, a gente vai esperar você chegar lá primeiro – respondiam os amigos, sorrindo.
– Ah!, não… isso vai demorar um pouco ainda. Preciso da energia de vocês para me recuperar. E como é que pensam que vão conseguir entrar no céu se não for fazendo a caridade para com um miserável como eu?
– A gente não vem aqui por caridade não, Marcelo. A gente vem porque gosta muito de você.
Todos sorriam para disfarçar a emoção e a vontade de chorar, enquanto o doente não conseguia guardar as lágrimas no cofre dos olhos, pensando em quanta coisa boa havia perdido em sua vida.
Os passes magnéticos e o carinho dos que o circundavam fizeram o vaticínio dos médicos cair por terra. Marcelo ganhara peso, se reequilibrara fisicamente, já conseguia sair da cama e andar até a sala. Olhava o sofá onde seu pai dormia todas as noites para lhe deixar a própria cama. Sentia o calor humano dos irmãos, que vinham lhe trazer presentinhos todos os dias, lembranças, fotografias, cds com músicas agradáveis, docinhos e alguns outros agrados.
Nenhum deles lhe dirigiu qualquer palavra de censura ou reprimenda, sobretudo porque se deixaram tocar pela compaixão que o seu estado de saúde impunha por si mesmo.
Era o próprio Marcelo quem tomara a iniciativa de usar-se como exemplo para que os sobrinhos e o irmão mais novo nunca fizessem o que ele havia feito.
HERDEIROS DO NOVO MUNDO
Quando se reuniam à sua volta, Marcelo recomendava, como quem ensina com suas próprias quedas:
– Não se iludam com as coisas do mundo, por mais sedutoras que possam parecer. Vejam meu estado. Tenho vinte e cinco anos e pareço um velho. Vou viver mais alguns meses quando, em verdade, se tivesse escutado o pai e a mãe, estaria aqui com vocês, sem dar tanto trabalho, por muito tempo. Que a vida que me resta possa servir para alguma coisa. Estou como estou por minha culpa, minha leviandade, porque pensava que a família era a prisão de minha liberdade, castradora de minha personalidade. Precisei chegar a isso para entender que a família é o único lugar onde se encontra quem ama a gente de verdade.
E suas palavras eram tão sinceras, que não havia quem o escutasse e não se emocionasse até o mais profundo de sua alma.
Ali estava um derrotado moral que se esforçava para erguer os outros, tomando a si mesmo como demonstração de equívoco a não ser imitado.
Era um exemplo vivo, não palavras ou teorias.
Marcelo estava refundindo os próprios valores.
Jerônimo e Adelino acompanharam atentos todo o processo de reencontro do filho perdido, sua volta para casa e os meses que levaram o tratamento de seu espírito com vistas ao aproveitamento da experiência final, a mais importante de sua vida, encaminhando-se para a desencarnação.
Assim, no dia em que o falecimento ocorreu, na serenidade do lar, Marcelo e os membros de sua família estavam reunidos. Nos momentos que antecederam o desenlace, pressentindo a chegada da hora final, o rapaz pediu que todos estivessem com ele naquele quarto que se fizera pequeno e, com lágrimas de emoção, pediu que o perdoassem não só pelo sofrimento do passado, mas pelas dificuldades que criara no presente, pelos transtornos que causara na família, pelos gastos que impusera, sem nunca ter cooperado com nada.
Suas palavras, nascidas de um coração agora humilde, eram o atestado da transformação daquele ser, que deixara para trás o charco lodoso da queda moral e se reconstruíra passo a passo, no rumo da autolibertação. Descobrira, por fim, no que consistia a verdadeira liberdade.
– Orem por mim, meus irmãos, orem como quem ora por um insano que acordou a tempo de reconhecer suas loucuras. No entanto, estejam certos de que eu só consegui reconhecê-las porque recebi o Amor de vocês. Se não fosse isso, talvez ainda restasse em meu interior alucinado a ideia de que o egoísmo e o orgulho são capazes de fazer algo de bom por alguém. Graças a vocês e ao pessoal do centro, vou partir da vida como um devedor feliz, um condenado que se arrependeu sinceramente de seus crimes e que sabe que deverá responder por cada um deles.
Emocionando a todos os que lá se encontravam, pelo esforço com que buscava proferir as derradeiras palavras, por fim, completou:
– Não sei… para onde vou… mas, quando estiver bem, … quero que saibam que… trabalharei muito… para… um dia… poder recebê-los… do lado de lá… de uma forma que… vocês tenham orgulho de mim… tanto quanto… hoje, eu tenho orgulho de pertencer à família…
E encerrando o desligamento definitivo, encontrou forças para dizer:
– Desculpa, mãe, desculpa, pai… obrigado… por tudo…
E, sob a comoção geral, entregou a alma aos amigos espirituais que o estavam sustentando até aquele momento, nos ajustes finais do desenlace do pobre rapaz que se recuperava como espírito.
No dia de sua desencarnação, completavam-se onze meses que Marcelo havia deixado o hospital.
Termminada a jornada de Marcelo, Doutor Bezerra nos esclarece o destino do rapaz tendo em vista o momento de transição que atravessa a Terra…
– Marcelo foi considerado um aluno rebelde que, arrependido dos equívocos e suportando com resignação a dor dos meses finais de seu corpo, pôde ser, finalmente, resgatado de si mesmo e encaminhado à recuperação. Seus sofrimentos finais foram consideradas como etapas depuradoras, uma espécie de depuração dos males praticados e, apesar de não terem tido o mesmo volume de seus erros pretéritos, foram aceitos com paciência e humildade e, graças a isso, foram tão produtivos e vantajosos que lhe facultaram a permanência na Terra, ainda que em situação de enfermo do mal sob observação da enfermagem do Bem, a caminho da saúde plena. Ficará em nosso orbe, como um aluno que, ainda que com notas baixas, atingiu o limite mínimo para a aprovação. Certamente que não contará com regalias reservadas aos alunos aplicados. No entanto, poderá continuar seu crescimento espiritual em reencarnações de aprendizado e disciplina em ambientes menos favoráveis, no seio de povos menos desenvolvidos, onde a carência de recursos e meios o auxilie a não mais se iludir com facilidades materiais, valorizando cada conquista como um recurso de crescimento e não como arma de destruição.
E se estas novas experiências forem bem aproveitadas por um Marcelo renovado, quem sabe venha a renascer um dia no seio da família que o ajudou nesta hora tão amarga de seu destino, graças a cujo apoio e carinho reordenou a trajetória evolutiva ao invés de seguir para o triste exílio em planeta inferior à Terra.
Nesta etapa evolutiva, Lauro e Cornélia foram os seus Maiores benfeitores. Pela forma como ambos se conduziram nesse transe doloroso, demonstraram ser bons alunos, capacitados para para o entendimento das diretrizes planetárias,
construtores de uma nova humanidade e enfermeiros do Bem. Apesar de lutarem contra as próprias deficiências, souberam vencer os obstáculos que carregavam no coração e, pela força de suas deliberações amorosas vividas na forma de renúncia, compreensão, tolerância, compaixão, passaram no exame com louvores dignos de excelentes e aplicados estudantes.
Livro Herdeiros do Novo Mundo, caps. 29 e 30, Espírito Lúcius – psicografia de André Luiz Ruiz.
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