Livre-Arbítrio e Fatalidade
Resumo teórico da motivação das ações humanas
Este tem sido um tema de primordial importância desde o alvorecer da razão humana e que permanece atual ainda hoje em todas as discussões filosóficas e religiosas. Se nós possuímos livre-arbítrio, como poderia Deus saber antecipadamente o que vai acontecer, ou, se Deus sabe o nosso destino, como podemos ter livre-arbítrio? O texto abaixo, de Allan Kardec em "O Livro dos Espíritos", trata a questão de forma magistral embora sua compreensão seja de difícil leitura, motivo pelo qual tentei reescrevê-lo em linguagem mais próxima à de nossos dias, procurando não deformar seu estilo original.
"A questão do livre-arbítrio pode ser assim resumida: O homem não é levado, fatalmente, ao mal; os atos que pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação, escolher uma existência em que, seja pelo meio em que se encontra, seja pelas circunstâncias que lhe sobrevenham, esteja sujeito a ser arrastado ao crime, mas será sempre livre de agir ou deixar de agir. Assim, o livre-arbítrio existe, para ele, tanto ao fazer a escolha da existência e das provas, no estado de Espírito, quanto depois, como encarnado, na faculdade de ceder ou de resistir aos arrastamentos a que voluntariamente se submeteu. Cabe à educação combater suas más tendências e isso se fará de modo mais eficiente quando estiver baseada em um estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la, como se modifica a inteligência pela instrução e o temperamento pela higiene mental.
Desprendido da matéria, na erraticidade, o Espírito procede à escolha de suas existências corporais futuras, de acordo com o grau de perfeição a que haja chegado e, como foi dito, é nisto, sobretudo, que consiste o livre-arbítrio. Esta liberdade não fica anulada pela encarnação. Se cede à influência da matéria, é porque sucumbe nas provas por si mesmo escolhidas. E, para ser ajudado a vencê-las, ainda lhe é possível invocar a assistência de Deus e dos bons Espíritos.
Sem o livre-arbítrio, o homem não teria culpa ao praticar o mal, nem mérito em praticar o bem. E isto está a tal ponto reconhecido que, neste mundo, somos sempre responsabilizados ou glorificados pela intenção ou vontade com que nossos atos foram praticados. Ora, quem diz vontade diz liberdade. Portanto, o homem não poderia buscar na sua organização física nenhuma desculpa para os seus delitos sem abdicar da sua razão e da sua condição humana, equiparando-se assim aos animais. Supondo que assim fosse, relativamente ao mal, seríamos levados a admitir que teria de ser da mesma forma em relação ao bem. Mas, quando o homem pratica o bem, tem grande cuidado em buscar o mérito só para si, não cogitando de prestar as honras ao seu organismo, o que prova que, por instinto e a despeito da opinião de alguns sistemáticos, não renuncia ao mais belo privilégio de sua espécie: a liberdade de pensar.
A fatalidade, como vulgarmente é entendida, supõe a decisão prévia e irrevogável de todos os eventos da vida, qualquer que seja sua importância. Se fosse essa a realidade dos fatos, o homem seria tal qual uma máquina sem vontade. De que lhe serviria a inteligência, desde que houvesse de estar invariavelmente dominado, em todos os seus atos, pela força do destino? Se verdadeira, semelhante doutrina conteria a destruição de toda liberdade moral; O homem não teria mais responsabilidade e, por conseguinte, não haveria bem, nem mal, nem crimes, nem virtudes. Não seria possível que Deus, soberanamente justo, castigasse suas criaturas por faltas cujo cometimento não dependeria delas, nem que as recompensasse por virtudes pelas quais nenhum mérito teria. Ademais, tal lei seria a negação do progresso, porquanto o homem, tudo esperando da sorte, nada tentaria para mudar a sua posição, pois que não conseguiria mesmo melhorar ou piorar aquilo que já estivesse determinado.
Contudo, a fatalidade não é uma palavra vã. Ela existe, uma vez que a posição que o homem ocupa na Terra e as funções que aí desempenha são decorrência do gênero de vida que seu Espírito escolheu como prova, expiação ou missão. Fatalmente ele sofre todas as vicissitudes desta existência e todas as tendências boas ou más, que lhe são inerentes. Acaba, porém, aí a fatalidade, pois depende da sua vontade ceder ou não a essas tendências. Os pormenores dos acontecimentos ficam subordinados às circunstâncias que são criadas por seus próprios atos, embora possam ser influenciados pelos pensamentos sugeridos pelos Espíritos.
Há fatalidade, portanto, nos acontecimentos que se apresentam, por serem estes o resultado da escolha feita pelo Espírito quanto à sua futura existência como encarnado. Porém, na conseqüência de tais acontecimentos, pode não existir fatalidade, visto ser possível ao homem, por suas ações prudentes, modificar-lhes o curso. Jamais haverá fatalidade nos atos da vida moral.
É na morte que o homem se submete, de maneira absoluta, à inexorável lei da fatalidade, pois não pode escapar ao decreto que lhe fixa o termo da existência, nem ao gênero de morte que lhe deve interromper o curso".
Outro dia ouvi de uma pessoa que ela tinha se afastado do Espiritismo porque este a deixava livre demais ao lhe dar o livre-arbítrio e por isso teria preferido uma seita onde lhe diziam exatamente aquilo que devia e o que lhe era proibido fazer (cada um tem o seu ritmo de aprendizado que devemos respeitar e aceitar). Mas o próprio ato de sair do Espiritismo para abraçar uma nova seita constitui uma demonstração cabal do seu livre-arbítrio, mesmo que tenha sido influenciada para fazê-lo. Além do mais, não foi o Espiritismo quem inventou o livro arbítrio, nem jamais disse que todos temos liberdade para fazer o que bem entendermos. O Espiritismo apenas nos mostra e demonstra que somos dotados de livre-arbítrio e não é saindo do Espiritismo que podemos alterar este fato. Por isso tomei a liberdade de substituir as palavras "segundo a Doutrina Espírita" que tem uma conotação dogmática, para "como mostra a Doutrina Espírita", na seqüência deste texto:
Segundo a crença comum, todos os instintos do homem estariam em sua própria organização física, pela qual ele não seria responsável, ou em sua própria natureza mental, caso em que lhe seria lícito procurar desculpar-se, dizendo-se isento de culpa por ter sido criado assim. Evidentemente, a doutrina espírita é mais moral: admite o livre-arbítrio do homem em toda a sua plenitude. E lhe diz que, ao praticar o mal, cede a uma sugestão má estranha, deixando-lhe toda a responsabilidade do ato, pois reconhece o seu poder de resistir. Isto, sem dúvida, é muito mais fácil do que lutar contra a sua própria natureza. Assim, como mostra a Doutrina Espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre cerrar os ouvidos à voz oculta que lhe fala no íntimo, induzindo-o ao mal, do mesmo modo que os costuma cerrar a uma voz material que lhe fale. Pode fazê-lo pela ação da sua vontade, pedindo a Deus a força necessária e suplicando, para tanto, a assistência dos bons Espíritos. É o que nos ensinou Jesus na sublime prece que é a Oração Dominical, quando nos recomenda dizer: “Não nos deixeis sucumbir à tentação, mas livrai-nos do mal”.
Essa teoria da causa determinante dos nossos atos ressalta de forma evidente em todo o ensino dado pelos Espíritos. Não só é sublime em moralidade, como também eleva o homem aos próprios olhos. Mostra-o livre para se subtrair ao jugo de um obsessor, do mesmo modo que é livre quando fecha sua porta para as pessoas importunas. Ele deixa de ser simples máquina, que age por impulso independente de sua vontade, para ser um ente racional que ouve, julga e escolhe livremente entre dois conselhos. Acrescentemos que, mesmo quando aconselhado, o homem não se acha privado de iniciativa, não deixa de agir por impulso próprio, de vez que ele é um Espírito encarnado que conserva, sob o envoltório corporal, as qualidades e os defeitos que tinha como Espírito.
Conseqüentemente, as faltas que cometemos têm sua origem na imperfeição do nosso próprio Espírito, que ainda não conquistou a superioridade moral que um dia alcançará, mas que, nem por isso, carece de livre-arbítrio. A vida corpórea lhe é dada para se purgar das imperfeições, mediante as provas por que passa, imperfeições estas que, precisamente, o tornam mais fraco e mais acessível às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, que delas se aproveitam para tentar fazê-lo sucumbir na luta em que se empenhou. Se dessa luta sair vencedor, ele se elevará; se fracassar, permanecerá como era, nem pior, nem melhor. Neste caso será uma prova que terá de recomeçar, podendo acontecer de ter de passar ainda muito tempo nessa repetência. Quanto mais se depura, quanto mais diminuam os seus pontos fracos, e menos acesso ofereça aos que procuram atraí-lo para o mal, tanto mais crescerá em sua força moral, fazendo com que dele se afastem os maus Espíritos.
Todos os Espíritos, melhores ou piores, quando encarnados, constituem a espécie humana. E como o nosso mundo é um dos menos adiantados, nele se conta maior número de Espíritos maus do que de bons. Esta é a razão de vermos por aqui tanta perversidade. Façamos, pois, todos os esforços para não regressarmos a este planeta, após a presente encarnação, e para merecermos repousar em mundos melhores, num desses mundos privilegiados, onde não nos lembraremos de nossa passagem por aqui, senão como de um exílio temporário".1
O que o Espiritismo ensina a respeito dos esforços que o homem encarnado deva fazer para se libertar deste planeta? Esta recomendação se encontra no "Ensaio teórico da sensação nos Espíritos" 2:
"Vimos que seu sofrer resulta dos laços que ainda o prendem à matéria; que quanto mais livre estiver da influência desta, ou, por outra, quanto mais desmaterializado se achar, menos sensações dolorosas experimentará. Ora, está nas suas mãos libertar-se de tal influência desde a vida atual. Ele tem o livre-arbítrio, tem, por conseguinte, a faculdade de escolha entre o fazer e o não fazer. Dome suas paixões animais; não alimente ódio, nem inveja, nem ciúme, nem orgulho; não se deixe dominar pelo egoísmo; purifique-se, nutrindo bons sentimentos; pratique o bem; não ligue às coisas deste mundo uma importância que não merecem; e, então, embora revestido do invólucro corporal, já estará depurado, já estará liberto do jugo da matéria e, quando deixar esse invólucro, não mais lhe sofrerá a influência. nenhuma recordação dolorosa lhe advirá dos sofrimentos físicos que haja padecido; nenhuma impressão desagradável eles lhe deixarão, porque apenas terão atingido o corpo e não a alma. Sentir-se-á feliz por se haver libertado deles e a paz da sua consciência o isentará de qualquer sofrimento moral".
Portanto a resposta à pergunta inicial: - "Se Deus sabe o nosso destino, como podemos ter livre-arbítrio?" - ressalta naturalmente no texto acima. Escolhemos nosso estilo de vida e algumas ocorrências importantes antes de reencarnar, e assim Deus sabe qual será nosso destino durante a presente vida na Terra. Os videntes também podem ver no futuro alguns fatos predeterminados por Deus.
Porém, o modo como reagimos às circunstâncias, as ações que fazemos, praticando o bem ou nos omitindo em fazê-lo ou praticando o mal, o inconformismo ou a resignação com que enfrentamos os embates da vida por nós mesmos escolhida ou como conseqüência de nossos próprios atos atuais e passados, o tipo de lutas que criamos em torno de nós por nosso apego aos bens deste mundo, o amor ou o ódio que alimentamos em nossos dias, é que serão levados em conta quando do juízo que nosso Espírito fará do sucesso ou fracasso no uso do seu livre-arbítrio na missão e aprendizado a que se submeteu quando escolheu renascer para evoluir.
Poder-se-ia argumentar que Deus sabe exatamente como vamos reagir em cada situação. Mas Ele nos deu o livre-arbítrio para permitir a mudança em nosso modo de ser. Sempre agiremos da maneira correspondente ao estado atual de nosso Espírito, muitas vezes até com automatismo, a não ser que usemos o nosso livre-arbítrio para mudar. E Deus quer que mudemos para melhor, mas deixa a nós a decisão de quando fazê-lo. Podemos mudar já nesta vida ou daqui a milhares de anos, neste caso passando sempre pelo arrependimento, pela angústia do recomeço e pela repetição dos sofrimentos deste mundo.
Referências:
1 - O Livro dos Espíritos - Allan Kardec - Cap. X, Item 872, p. 283 a 286.
2 - O Livro dos Espíritos - Allan Kardec - Cap. VI Parte 2, Item 257 p.170.
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