E Disse-lhes naquele dia, ao cair da tarde: passemos para a outra margem. Deixando a multidão, eles o levaram, do modo como estava, no barco; e com ele havia outros barcos. (Marcos, 4: 35 e 36)
E Disse-lhes naquele dia, ao cair da tarde: passemos para a outra margem.
A julgar pela cronologia de Marcos, a passagem da “Tempestade Acalmada”, da qual retiramos estes versículos em epígrafe, se deu após um ensino público de Jesus em que o Mestre narrava algumas parábolas.
Em Mateus temos a mesma passagem após uma série, também pública, de curas.
Seja lá como for, o certo é que Jesus estava atuando em meio ao povo e convidou seus discípulos mais íntimos a afastar um pouco da multidão e passar para a outra margem.
Marcos, mais detalhista, ainda nos informa que tal acontecimento se deu ao cair da tarde.
Tudo no Evangelho tem a sua razão de ser, Jesus após um trabalho público, onde a sua abordagem tinha de estar ao alcance de todos, viu que era hora de dar um ensinamento mais profundo àqueles que estavam mais amadurecidos para as questões do espírito, que naquele momento eram seus discípulos mais próximos. Isto porque estes, em matéria evolucional, já estavam ao cair da tarde.
É importante que aqui façamos uma análise mais cuidadosa das expressões.
Tudo na vida se dá em etapas ou ciclos, que se fecham e se abrem em períodos maiores formando um todo cada vez mais completo. É uma manifestação da Lei das Unidades Coletivas.
Assim podemos dividir o dia em quatro ciclos que são: madrugada, manhã, tarde e noite; períodos que se ampliam nas semanas, nos meses, anos, e assim por diante.
Se na madrugada temos o início do processo caracterizado pelas trevas da ignorância, porém, uma ignorância devido à simplicidade e ao desconhecimento, na manhã temos a chegada da claridade e a possibilidade de iniciarmos o trabalho edificante; todavia este é um trabalho ainda em fase infantil que chegará ao amadurecimento justamente na tarde, que é o momento que nos interessa para o estudo que ora realizamos.
Assim, após o trabalho inicial com a multidão, que representa os que ainda estavam na manhã da infância espiritual, Jesus convida aqueles que já estavam mais maduros para um ensinamento de maior complexidade. E isto só poderia acontecer ao cair da tarde.
Deste modo, faz o Mestre mais um convite significativo: passemos para a outra margem.
Que outra margem seria esta?
Geograficamente poderia ser a margem oriental do lago de Tiberíades, todavia espiritualmente sua localização nos leva a meditações mais profundas…
A grande missão de Jesus era educar o nosso espírito, e assim nos conduzir a um porto mais seguro; desta forma, nos convoca a avançar e passar para uma margem diferente da que nos situamos atualmente. Uma margem onde cultivaremos os valores eternos, imutáveis, menos sujeitos às instabilidades ocasionadas pelos interesses imediatistas.
Esta margem é o campo operacional daquele que deseja realizar-se como uma criatura a integrar-se no serviço do Senhor Supremo em favor de todos.
Sempre que terminamos uma etapa de nossa vida, passamos para uma outra margem.
Para aquele que terminou o ensino médio a universidade é a outra margem, que no futuro poderá ser a pós-graduação, o mestrado, etc.. Na repartição de trabalho uma chefia pode ser esta margem significando promoção e mais responsabilidade.
Porém, a outra margem caracterizada pelo nosso amadurecimento com o Cristo é sem dúvida o momento mais sublime de nossa realização espiritual, e nós que já meditamos sobre estas considerações anotadas neste que é o Livro da Libertação não podemos fugir às nossas responsabilidades; já nos situamos na boa margem da nossa redenção, basta para isso conscientizarmo-nos e realizarmos sob o aval de nossa consciência.
Muitos podem pensar que estamos divagando em cima dos textos evangélicos, todavia podemos com segurança afirmar que não estamos. É preciso compreender que Jesus é um Espírito Perfeito, e suas possibilidades estão “séculos-luz” à nossa frente. Por termos uma psicologia ainda materialista, não conseguimos alcançar o que Ele pode realizar. Ele há bilhões de anos, quando o nosso Orbe estava no início de sua gênese, já era o Cristo Planetário, supervisionando, assim, todos os processos de formação tanto da matéria quanto dos seres que viriam no momento oportuno aqui habitar. Deste modo, não podemos reduzir suas possibilidades. Ele é um educador com uma pedagogia avançadíssima; escolhia lugares e momentos didaticamente perfeitos para os ensinamentos que queria levar aos seus educandos. Portanto, tudo e todas as sua ações devem ser consideradas quando tratamos de nossa auto-educação.
Levemos então, Ele, em nosso barco, e todas as tempestades que por necessidade ainda ocorrerem no mar de nossa vida, serão acalmadas na medida de nossa capacidade de colocá-Lo na direção.
Todavia é preciso termos fé e perseverar, pois a outra margem que já intuímos ainda não pode ser plenamente visualizada, e a fé é justamente o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem.[1]
Deixando a multidão…
Ao comentar o versículo anterior chamamos a atenção para o significado do convite do Mestre quanto ao “passar para a outra margem”. Dando continuidades às anotações, o autor de Marcos, foi intuído pelos evangelistas da espiritualidade a informar-nos como deveria se dar esta passagem: deixando a multidão.
O que podemos entender por deixar a multidão? Será mesmo necessário este afastamento em vistas de ser o Evangelho a maior mensagem de inclusão de que já tivemos notícia?
Reflitamos sobre o significado do termo multidão sob dois aspectos: o exterior, e o íntimo.
Do ponto de vista exterior, podemos entender como multidão todos os elementos vinculados à proposta do mundo. São os que sem ter noção ou intuição de que existe algo para além da matéria, cuidam somente dos interesses ligados a esta. Aqui podemos incluir até mesmo muitos dos que se dizem espiritualistas, pois não são poucos os que se enquadram nesta condição, mas que vivem em função de mamom[2].
Deixar a multidão quer dizer fazer novas opções de encaminhamento de nosso livre arbítrio, é deixar hábitos passados que dizem respeito simplesmente aos interesses imediatistas. Quantas vezes em nosso dia a dia somos convidados a nos manifestar, seja no ambiente de família, seja no campo profissional, ou mesmo entre desconhecidos, e simplesmente repetimos atos passados mostrando que ainda estamos presos à retaguarda?
Devemos lembrar que segundo a orientação do Mestre, o cristão deve ser o “sal da terra”, a “luz do mundo”, devendo deste modo se diferenciar da maioria, ser incomum no meio em que convive.
Não estamos com isto querendo dizer que devemos ser elitistas, não é isso. Devemos conviver com todos, servir sem fazer acepção de pessoas, sermos inclusivos; todavia não podemos seguir a orientação da massa e nos fazer simplesmente mais um no meio da multidão.
Muitas vezes este distanciamento se dá até mesmo em relação aos nossos familiares, pois nem tudo os que estes desejam, nem todos os caminhos tomados por estes, podem ser adotados por nós como direção de conduta; vivemos em um mundo onde impera a dualidade, onde as forças do Sistema e do Anti-Sistema convivem lado a lado, cabendo deste modo, discernirmos e adotarmos a conduta que mais nos diz respeito quanto ao que desejamos em matéria de conquista.
Não devemos nos iludir, nem nos queixarmos, mas o sentimento de solidão é muito comum entre cristãos e não pode ser de outro modo. Quando falamos de solidão não estamos dizendo da falta de pessoas no convívio, pois disto até que não podemos nos queixar, visto que, se muito trabalhamos, muitas pessoas existem ao nosso redor, seja na condição de atendidos seja na de colaboradores; porém, falamos de uma solidão profunda, a que sentimos na intimidade por não sermos compreendidos em nossos anseios e em nossa busca.
Aquele que verdadeiramente adota a mensagem do Cordeiro naturalmente se deixa imolar em favor do outro, e esta postura, em desacordo com o sentimento da maioria, só pode nos levar a sermos incompreendidos e até sermos chamados de loucos. Porém não esqueçamos da orientação do apóstolo Paulo de que aquilo que é loucura para os homens é poder de Deus, enquanto que o que é sabedoria neste mundo é loucura para Deus.[3]
Não foi outro o motivo que levou Jesus a exemplificar quanto à necessidade de estarmos sós; é o que depreendemos do abandono sofrido por Ele no momento final de sua missão entre nós, justamente no ponto culminante da crucificação.
Mas nem tudo são dores, a Misericórdia do Pai é sempre maior, após a crucificação vem a ressurreição, e esta sim, é que é definitiva; para sempre com o Criador no Reino original.
Entendido a necessidade de avançarmos, de deixar a multidão no plano exterior de nossas adesões, é preciso termos cautela e tolerância conosco mesmo, pois o processo de autoconhecimento que deve ser o norteador deste avanço, nos conduz com toda certeza à identificação da multidão mais difícil, a que existe dentro de nós mesmos, aquela que segundo o apóstolo Tiago nos leva a ser tentado, quando atraído e engodado pela própria concupiscência.[4]
Não podemos esquecer que não nascemos ontem, ou seja, somos espíritos milenares que há muito tempo optamos por evoluirmos numa linha de ascensões e quedas, construindo, assim, um “Zé ninguém” herdeiro de um passado terrível. Portanto, se hoje queremos ter uma atitude diferente mais condizente com nossas necessidades espirituais, ainda somos influenciados por nossas próprias atitudes passadas que estão mais próximas do erro e das paixões.
Este conflito íntimo foi magistralmente percebido por Paulo de Tarso quando em sua carta aos Romanos nos alerta:
Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado.
Porque o que faço, não o aprovo, pois o que quero, isso não faço; mas o que aborreço, isso faço.
E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa.
De maneira que, agora, já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim.
Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e, com efeito, o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem.
Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço.
Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim.
Acho, então, esta lei em mim: que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo.
Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus.
Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros.
Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?[5]
Todavia não desanimemos, a multidão que nos impede de deixar a multidão é transitória por não ser criação divina nem ser herança natural; quando a vida nos propõe um esforço no sentido do progresso, é sempre uma oportunidade de criarmos uma nova história, hábitos novos que vão sendo pouco a pouco incorporados em nosso modus vivendi e que vão substituindo nosso estado anterior.
Quando em nossa angustia pedimos aos Céus um guia e modelo, os habitantes das esferas superiores nos disseram ser Jesus o maior entre todos os outros. Temos em nossas mãos Sua Boa Nova repleta de consolo, de alegria, e de exemplos. Por que então não seguirmos aqueles que à nossa frente perceberam a maravilhosa oportunidade de redenção e de reencontro contida em sua mensagem?
Ouçamos, deste modo, o Mestre a falar na acústica de nossa alma:
Eu sou Jesus… não recalcitre contra os aguilhões.
[1] Cf. Paulo aos Hebreus, 11: 1)
[2] Palavra aramaica que significa "riquezas", as quais podem tornar-se um deus para as pessoas (cf. Mt 6,.24).
[3] Ver 1 Coríntios, cap.1: 18 e 19.
[4] Cf. Tiago, 1: 14
[5] Romanos, 7: 14 a 24
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