Estudando o Espiritismo

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domingo, 31 de julho de 2011

Visão Espírita dos Transtornos Mentais

Alexander Moreira de Almeida

Francisco Lotufo Neto

Resumo

Como a visão espírita dos transtornos mentais tem exercido uma grande influência no Brasil, buscamos revisar os  textos dos principais autores espíritas sobre o tema: Allan Kardec, Bezerra  de Menezes, Inácio Ferreira e Joanna de Ângelis. O Espiritismo desenvolveu uma abrangente teoria sobre as relações mentecorpo e os transtornos mentais. Defende um dualismo interacionista, a sobrevivência após a morte e a possibilidade de intercâmbio entre encarnados e desencarnados. Sem negar as causas biológicas, sociais e psicológicas dos transtornos mentais, os espíritas acrescentam a etiologia espiritual. Esta poderia se dever à influência negativa de espíritos desencarnados (o que denominam obsessão) ou de vivências traumáticas de existências passadas. Para a terapêutica, além das intervenções médicas e psicológicas convencionais, são recomendadas as reuniões de desobsessão, passes, oração e a busca da vivência de uma conduta ética. Devido à importância alcançada por estes princípios no Brasil e à quase total ausência de estudos nos meio acadêmico sobre o tema, diversas linhas de pesquisa são sugeridas pelos autores. 

Palavras-chave: Espiritismo, mediunidade, transtornos mentais, etiologia, tratamento, espiritualismo, espírito

1) Introdução

O Espiritismo teve origem na França quando um intelectual de nome HippolyteLéon Denizard Rivail, sob o pseudônimo de Allan Kardec, se propôs a realizar uma investigação científica sobre as supostas  manifestações dos espíritos. Após se convencer da veracidade dos fenômenos,  buscou desenvolver  um método para obter um conhecimento válido a partir das  comunicações dos espíritos. Após comparar e analisar as respostas obtidas através de médiuns de diversos países, em 1857 organizou essas informações num  corpo teórico único. Para dar nome à filosofia daí resultante, ele cunhou o termo “Espiritismo” ou “Doutrina Espírita” (Kardec, 1994), que foi definido como “uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal” (Kardec, 1995). A reencarnação distingue o Espiritismo de seu correspondente anglo-saxão, o Espiritualismo, para o qual a reencarnação é um tema controverso (Hess, 1991). Para Kardec, o Espiritismo seria essencialmente uma ciência  e uma filosofia com implicações morais, não se constituindo numa religião segundo a concepção usual da palavra. De acordo com Hess (1991), o Espiritismo implica numa reificação do mundo espiritual no sentido de que espíritos seriam cientificamente reais, o que teria duas conseqüências: dessacralizar o mundo espiritual ao torná-lo um objeto de investigação científica e representar uma visão alternativa ao pensamento científico ortodoxo. No entanto, os cientistas habitualmente consideram as teorias espíritas como “pseudocientíficas”.
                                                         
1
 Trabalho apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Goiânia, 15-18 out. 2003.
 
2
 Pode-se encontrar as obras de Kardec e informações sobre a doutrina espírita em diversos idiomas nas
seguintes homepages: www.febrasil.org.br e www.geocities.com/Athens/Cyprus/1579/Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais

Alguns pesquisadores argumentam que o Espiritismo foi um evento de grande importância como uma fonte de fenômenos inexplicados na história da psiquaitria e psicologia  (Janet, 1889; Ellenberger, 1970). O Espiritismo teria proporcionado um novo fenômeno psicológico para estudo da medicina. Ellenberger e Janet  também afirmaram haver evidências que as teorias  dinâmicas do inconsciente do final do século XIX seriam, ao menos parcialmente, um resultado da tradução da doutrina da comunicação do espírito para a linguagem da medicina ortodoxa. Hess (1991) identifica sinais mais diretos dessa tradução no “self subliminal” de Myers e nas obras de Pierre Janet, William James e Jung. Koss Chioino (2003) recentemente traçou diversos paralelos entre as visões junguianas e espíritas sobre a estrutura e conteúdo da consciência humana.

No final do século XIX, o Espiritismo chega ao Brasil, onde passou a ter uma
presença marcante, sob uma feição essencialmente religiosa. Se disseminou
principalmente entre a classe média urbana, mas a influência de suas práticas e
visões de mundo vai muito além do número declarado de adeptos. Hoje, o Brasil,
apesar de ser majoritariamente católico, é o país no mundo onde o Espiritismo
alcançou sua maior dimensão (Aubrée  & Laplantine, 1990; Machado, 1993;
Damazio, 1994; Santos, 1997).
Também em Porto Rico e na comunidade porto-riquenha dos EUA o Espiritismo
possui um importante papel na sociedade (Harwood, 1977; Hohmann, 1990).
No cenário da saúde mental no Brasil, o Espiritismo constitui-se num importante
mas pouco conhecido ator. Além de defenderem uma etiologia espiritual para
diversos transtornos mentais, construíram quase meia centena de hospitais
psiquiátricos espíritas pelo país entre o início da década de 1930 até o final da de
1970 (Souza & Deitos, 1980). Num levantamento feito por Figueiredo e Ferraz
(1998), a maior parte dos hospitais psiquiátricos filantrópicos no estado de São
Paulo eram espíritas. Junte-se a isso  o fato de que as concepções e tratamentos
espíritas abrangem uma grande parcela da nossa população, inclusive profissionais
de saúde. Existem em funcionamento a ABRAPE (Associação Brasileira de
Psicólogos Espíritas) e a AME (Associação Médico Espírita) que estudam e praticam
em suas atividades profissionais esses preceitos. Tendo em vista a importância que
a visão espírita dos transtornos mentais assumiu no Brasil, procurou-se realizar uma
revisão dos principais autores espíritas que abordam o tema
3
2) Allan Kardec
 Por diversas vezes, durante a formação da doutrina espírita, Allan Kardec se
ocupou dos transtornos do comportamento, suicídio e alterações da sensopercepção. Durante 12 dos 15 anos que lidou com o Espiritismo, publicou a “Revista
Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos”. Tinha por objetivo levantar fatos e testar
hipóteses sobre os fenômenos espirituais. Buscava constituir uma nova ciência e
evitar “os exageros da credulidade e do cepticismo”. Utilizou o subtítulo “jornal de
estudos psicológicos”, pois  “estudar a natureza dos espíritos é estudar o homem”.
(Kardec, 1858). A Revista Espírita se constitui numa valiosa fonte para quem deseja
investigar o nascimento do Espiritismo e o desenvolver de suas hipóteses. Ela é rica
em relatos de casos que ilustram a teoria, por isso será freqüentemente citada nesta
revisão
4
                                                         
3
 Importante enfatizar que se  buscou apresentar as idéias de um modo descritivo, sem julgamento quanto à sua
validade ontológica e terapêutica. Para evitar o uso excessivo e cansativo do futuro do pretérito e de expressões
como “suposto”, “hipotético” quando são descritas as teorias espíritas, foi utilizado, na maior parte das vezes, o
presente do indicativo, mas este uso não implica na aceitação destas hipóteses pelos autores do presente trabalho.
4
 Neste artigo foi utilizada a tradução para o português realizada por Júlio Abreu Filho, mas a versão original em
francês da Revue Spirite pode ser acessada na internet no endereço: www.perso.wanadoo.fr/charles.kempf/rs140. Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   3
2.1) Causas
 Já na introdução de sua primeira obra, Allan Kardec (1994) discute as causas
da loucura. Defende que a etiologia básica é orgânica, podendo ser desencadeada
por preocupações excessivas. Afirma que:
“Todas as grandes preocupações do espírito podem ocasionar a loucura: as
ciências, as artes e até a religião lhe fornecem contingentes. A loucura provém
de um certo estado patológico do cérebro, instrumento do pensamento;
estando o instrumento desorganizado, o pensamento fica alterado.
A loucura é, pois, um efeito consecutivo, cuja causa primária é uma
predisposição orgânica, que torna o cérebro mais ou menos acessível a certas
impressões; e isto é tão real  que encontrareis pessoas que pensam
excessivamente e não ficam loucas, ao passo que outras enlouquecem sob o
influxo da menor excitação.” (Kardec, 1995)
A própria mediunidade poderia ser um fator desencadeante em predispostos,
pois seria um fator de sobreexcitação mental. Devido a isso, dever-se-ia afastar as
pessoas “que apresentem sintomas, ainda que mínimos, de excentricidade nas idéias,
ou de enfraquecimento das faculdades mentais, porquanto, nessas pessoas, há
predisposição evidente para a loucura, que pode se manifestar por efeito de qualquer
sobreexcitação” (Kardec, 1993, it.221-2).  Essa recomendação de Kardec difere da
prática que se disseminou posteriormente  em grande parte dos centros espíritas
brasileiros: a recomendação de “desenvolver a mediunidade” para o alívio de diversos
transtornos físicos e mentais, pois estes seriam sintomas de uma mediunidade latente.
Considerando a relação mente-corpo, o Espiritismo adota uma posição dualista
interacionista. Ou seja, a origem da mente é um espírito independente do corpo, mas
para se manifestar, enquanto encarnado, necessita se utilizar deste. O corpo e a alma
se influenciariam mutuamente, havendo, no entanto, uma  supremacia da vontade do
espírito, pois o Espiritismo valoriza muito  o livre-arbítrio. O corpo, principalmente o
cérebro, seria em grande parte moldado por influência do espírito encarnado. Áreas
cerebrais mais desenvolvidas, ligadas a  alguma habilidade, seriam conseqüência da
ação do espírito com habilidades naquela área. Da mesma forma, os humores
corporais seriam alterados de acordo com as tendências do espírito:
“(...) um homem não é colérico porque seja bilioso, mas é bilioso porque é
colérico. Assim com todas as outras disposições instintivas (...) se for ativo e
enérgico, dará ao seu sangue, aos seus nervos, qualidades bem diferentes. (...)
O que pode alterar o sangue, senão as disposições morais do Espírito?”
(Kardec, 1869)
Entretanto, reconhece-se que, em parte, o temperamento pode derivar de
alterações orgânicas. Estas poderiam afetar o próprio espírito. 
Como o espírito encarnado se utiliza  do corpo para se manifestar, pode ter
dificuldades caso este instrumento esteja com problemas. Tal seria o caso da loucura
com origem orgânica:
“Imagina agora que seja o órgão que preside às manifestações da inteligência
o atacado ou modificado, parcial ou inteiramente, e fácil te será compreender
que, só tendo o Espírito a seu serviço órgãos incompletos ou alterados, uma
perturbação resultará de que  ele, por si mesmo e no seu foro íntimo, tem
perfeita consciência, mas cujo curso não  lhe está nas mãos deter.”(Kardec,
1994, it.375)
São explicadas as diferenças entre a loucura e o retardo mental: 
“(...) a diferença entre o louco e o cretino é que o primeiro, ao nascimento do
corpo, é provido de órgãos cerebrais constituídos normalmente, mas que mais
tarde se desorganizam; ao passo que  no segundo; é um Espírito encarnado
num corpo, cujos órgãos, atrofiados desde  o princípio, jamais lhe permitiram
manifestar livremente o pensamento(...)”(Kardec, 1864a)
Qualquer limitação corporal, prejudica a manifestação do espírito, podendo
mesmo causar uma perturbação ao próprio espírito, perdurando algum tempo após o
desencarne: 
“(...) convém não perder de vista que, assim como o Espírito atua sobre a
matéria, também esta reage sobre ele, dentro de certos limites, e que pode
acontecer impressionar-se o Espírito  temporariamente com a alteração dos
órgãos pelos quais se manifesta e  recebe as impressões. Pode mesmo
suceder que, com a continuação, durando longo tempo a loucura, a repetição
dos mesmos atos acabe por exercer sobre o Espírito uma influência, de que ele
não se libertará senão depois de se  haver desligado de toda impressão
material.”(Kardec, 1994, it.375a)
(...)Por isso é que, quanto mais durar a loucura no curso da vida terrena, tanto
mais lhe durará a perturbação, o constrangimento, depois da morte. Liberto do
corpo, o Espírito se ressente, por certo tempo, da impressão dos laços que
àquele o prendiam.” .”(Kardec, 1994, it.378)
O Espiritismo não nega as causas sociais e biológicas dos transtornos mentais,
entretanto ele acrescenta uma outra origem: as obsessões, ou seja, “a ação
persistente que um Espírito mau exerce sobre um indivíduo”(Kardec, 1992. Cap.XIV
it.45):
“Um dia a obsessão será colocada entre as causas patológicas, como o é hoje
a ação de animais microscópicos, de cuja existência não se suspeitava antes
da invenção do microscópio.”(Kardec, 1863b)
 Ao analisar os tipos de obsessão a  que estão sujeitos os médiuns, são
apresentados três graus progressivos de gravidade. Essa classificação pode ser útil
para analisar as obsessões em geral e não apenas em médiuns:
•  Obsessão simples: a influência através de pensamentos e intuições
perniciosas, sem alterar o juízo ou o livre-arbítrio do indivíduo.
•  Fascinação: uma “ilusão produzida pela  ação direta do Espírito sobre o
pensamento (..) de certa maneira, lhe paralisa o raciocínio (...) pode levá-
lo a aceitar as doutrinas mais estranhas, as teorias mais falsas, como se
fossem a única expressão da verdade.”
•  Subjugação ou Possessão: “é uma constrição que paralisa a vontade
daquele que sofre e o faz agir a seu mau grado. A subjugação pode ser
moral ou corporal. No primeiro caso, o subjugado é constrangido a tomar
resoluções muitas vezes absurdas  e comprometedoras (...). No segundo
caso, o Espírito atua sobre os órgãos materiais e provoca movimentos
involuntários.(...) pode levar aos mais ridículos atos.”(Kardec, 1993, it.237-
40). 
A obsessão tem como causa as imperfeições morais do indivíduo, que o torna
suscetível a receber e aceitar as influências maléficas do obsessor, tornando o
quadro progressivamente mais grave. O obsessor, em grande parte das vezes, seria
movido por um sentimento de vingança contra sua vítima.
Kardec, então, separa a loucura de  causa orgânica daquela decorrente da
obsessão: Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   5
“Não confundamos a loucura patológica com a obsessão; esta não provém
de lesão alguma cerebral, mas da subjugação que Espíritos malévolos
exercem sobre certos indivíduos, e que, muitas vezes, têm as aparências
da loucura propriamente dita. Esta afecção, muito freqüente, é
independente de qualquer crença no Espiritismo e existiu em todos os
tempos.”(Kardec, 1995)
“Entre os que são tidos por loucos, muitos há que são apenas subjugados
(...) Quando os médicos conhecerem bem o Espiritismo, saberão fazer bem
essa distinção e curarão mais doentes que com as duchas.”(Kardec, 1993,
it.254)
 Mas a separação entre esses dois tipos pode não ser muito simples, pois as
obsessões podem agravar afecções orgânicas já existentes ou ocasioná-las
(Kardec, 1992, cap.15 it.32). Há também  uma advertência sobre o erro de se
considerar excessivamente a etiologia espiritual:
“Muitos epilépticos ou loucos, que mais necessitavam de médico que de
exorcismo, têm sido tomados por possessos.” (Kardec, 1994. Questão 474)
 Também é levantada a hipótese de que  a obsessão teria algum papel nos
fenômenos histéricos (Kardec, 1863b).
 Quando muitos espíritos malévolos se lancem sobre uma coletividade,
haveria as epidemias de possessão (Kardec, 1992, cap.14 it.49). Kardec se dedicou
com especial cuidado ao famoso episódio em sua época da epidemia de possessão
da aldeia de Morzine, nos alpes franceses, que durou vários anos. Em 1861, o
governo francês enviou o médico Constans (1862) para realizar um estudo no local.
Ele concluiu por uma “histero-demonopatia” contagiosa, desencadeada pela
insalubridade da região, desnutrição, pouca cultura e superstição dos aldeões.
Contra ela, haviam falhado os exorcismos e tratamentos  médicos, melhorando
apenas com a dispersão dos acometidos  por várias cidades (Kardec, 1863 fev).
Kardec, durante um ano, faz uma minuciosa discussão em sua Revista Espírita
sobre os “possessos de Morzine”, freqüentemente citando e contestando o Dr.
Constans (Kardec, 1862a, b; 1863a,b,c,d) por atribuir toda etiologia a causas físicas.
Através de observação pessoal e de citações de outros médicos, questiona o
suposto estado de desnutrição e insalubridade dos aldeões. Interroga que, se
fossem esses fatores físicos as causas, por que não havia epidemias semelhantes
em outras regiões próximas com condições idênticas? Além do mais, teriam caráter
endêmico e não epidêmico (Kardec, 1863b). 
 “Seria absurdo supor a priori uma influência oculta a todo efeito cuja causa é
desconhecida(...)”(Kardec, 1863d)
“Se formulamos tal opinião, não é com  o propósito de ver por toda a parte a
ação dos Espíritos, porque ninguém  admite sua intervenção com mais
circunspecção do que nós; mas, por uma analogia que notamos entre certos
efeitos e os que nos são demonstrados como resultado evidente de uma causa
oculta.” (Kardec, 1863c)
São descritas várias evidências que indicariam uma causa espiritual para as
possessões de Morzine: expressar habilidades não adquiridas (falar francês fluente
e responder a perguntas em outras línguas, como alemão e latim), conhecimento de
fatos distantes (clarividência) e do pensamento de outros (telepatia), transfiguração
da fisionomia, referir a si na terceira pessoa (ela, a filha, etc.) e a personalidade
manifestante afirmar ser o demônio, o paciente referir que sente uma força externa Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   6
controlando-o, normalidade de comportamento entre as crises, freqüência cardíaca
normal apesar da intensa agitação, ódio  à religião e amnésia para as crises.
(Kardec, 1863c,d)
2.2) Manifestações
 Na segunda metade do século XIX o  Espiritismo era considerado como
causador de loucura, uma das evidências apontadas era o  conteúdo místico e
espírita de muitas psicoses. (Almeida et  al). Ao se defender contra os ataques a
respeito das loucuras de conteúdo espírita, Kardec enfatiza a patoplastia cultural dos
quadros psiquiátricos:
“Dada a predisposição para a loucura, esta tomará o caráter da preocupação
principal, que então se muda em idéia fixa, podendo tanto ser a dos Espíritos,
em quem com eles se ocupou, como  a de Deus, dos anjos, do diabo, da
fortuna, do poder, de uma arte, de uma ciência, da maternidade, de um sistema
político ou social. Provavelmente, o louco religioso se houvera tornado um
louco espírita, se o Espiritismo fora a sua preocupação dominante, do mesmo
modo que o louco espírita o seria  sob outra forma, de acordo com as
circunstâncias.” (Kardec, 1994)
 Quanto ao conteúdo dos delírios, é ainda levantada a hipótese que eles, em
parte, podem se dever a vagas lembranças de vidas passadas. No caso de
transtornos mentais, devido ao desarranjo orgânico, essas lembranças não seriam
muito lúcidas, confundindo-se com memórias da vida atual (Kardec, 1861b; 1866a).
Nos casos de possessão, o comportamento seria determinado pelo espírito
obsessor. Este, tomaria posse momentânea do corpo do encarnado, agindo como se
também estivesse encarnado. Quem o houvesse “conhecido em vida reconhece-lhe
a linguagem, a voz, os gestos e até a fisionomia.(...) blasfema, injuria e maltrata os
que o cercam; entrega-se a excentricidades e a atos que apresentam todos os
caracteres da loucura furiosa”(Kardec, 1992, cap14 it.47-8). 
Kardec (1861a) faz um detalhado estudo sobre as alterações da
sensopercepção, propondo, a título de hipótese, três tipos:
•  Imaginação: seria o que atualmente denominamos ilusões, distorções de
um percepto real, muitas vezes causadas por fadiga, pouca iluminação e
sugestionabilidade
•  Alucinação: percepção sensorial de  origem interna, “é a visão
retrospectiva, pela alma, de uma imagem impressa no cérebro” e que
“muitas vezes se produz no estado de doença” . Seria desencadeado por
um afastamento parcial da alma de seu corpo físico o que facilitaria a
percepção dessas impressões cerebrais.
•  Aparições ou visões verdadeiras:  seria fruto de uma real percepção
espiritual. Poderia ocorrer de duas  maneiras: “ou é o Espírito que vem
encontrar a pessoa que vê; ou é o Espírito desta que se transporta e vai
encontrar a outra”. O grande diferencial em relação às duas percepções
acima, seria que as aparições trazem informações desconhecidas pelo
indivíduo e que são confirmadas a posteriori.
São descritos exemplos das aparições verdadeiras, sendo freqüentes por
ocasião da morte. Situações em que se tem uma visão de alguém previamente
hígido dizer que morreu de uma acidente, descrevendo detalhes do ocorrido que
foram confirmados posteriormente. Na diferenciação, Kardec dá o benefício da
dúvida para a alucinação: ”toda aparição que não dá qualquer sinal inteligente pode
decididamente ser posta no rol das ilusões”.  Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   7
2.3)Tratamento
 É enfatizada a necessidade de considerar  também a etiologia espiritual nos
transtornos mentais, sem negar as causas orgânicas. Tal diferenciação seria
fundamental, pois “não é com duchas, cautérios e sangrias que podem ser
remediados” os casos de causa espiritual (Kardec, 1861b). O essencial para o
tratamento das obsessões seria a mudança de conduta do paciente, buscando
aperfeiçoar-se moralmente. Tal atitude impediria que sintonizasse com os
pensamentos maléficos do obsessor. Além disso, seriam úteis os passes e a prece,
que também visariam ao reequilíbrio do  obsediado. Quanto ao obsessor, deve-se
buscar demovê-lo de seu intento através  de diálogos em reuniões mediúnicas em
que ele seria evocado para tal fim (Kardec,  1992, cap.14 it.46). Kardec publicou
vários relatos de casos descrevendo curas através destas evocações (Kardec
1864b; 1865a;). Ele nega que sejam curas  espontâneas, pois os casos seriam
numerosos. Além do mais, descreve diversas situações em que a melhora do
paciente começa a se dar (às vezes  instantaneamente) no momento em que o
obsessor é convencido numa reunião mediúnica a desistir de sua perseguição.
Essas reuniões geralmente ocorriam sem o conhecimento do paciente e, muitas
vezes, num momento desconhecido pelos familiares do enfermo. Tais curas seriam
uma das provas da existência da “loucura obsessional” (Kardec, 1866b). 
“A prova da participação de uma inteligência oculta, em tal caso, ressalta de
um fato material: são as múltiplas  curas radicais obtidas, nalguns centros
espíritas, pela só evocação e doutrinação dos Espíritos obsessores, sem
magnetização, nem medicamentos e, muitas vezes, na ausência do paciente e
a grande distância deste.” (Kardec, 1992, cap.15 it.33)
Como outros exemplos de curas obtidas pelo afastamento de espíritos
inferiores, são citadas passagens evangélicas em que Jesus expulsava os demônios
(Mc 1:21-7 e 9:13-28; Mt 9:32-4 e 12:22-8). 
2.4) Profilaxia
 Kardec defende que o ponto de vista espírita ajudaria no enfrentamento das
dificuldades da vida, funcionando como um amortecedor contra os eventos vitais
estressantes: 
“o Espiritismo (...) bem compreendido,(...) é um preservativo contra a loucura. 
Entre as causas mais comuns de sobreexcitação cerebral, devem contar-se as
decepções, os infortúnios, as afeições contrariadas, que, ao mesmo tempo, são
as causas mais freqüentes de suicídio. Ora, o verdadeiro espírita vê as coisas
deste mundo de um ponto de vista tão  elevado; elas lhe parecem tão
pequenas, tão mesquinhas, diante do futuro que o aguarda; a vida se lhe
mostra tão curta, tão fugaz, que, aos seus olhos, as tribulações não passam de
incidentes desagradáveis, no curso  de uma viagem. O que, em outro,
produziria violenta emoção, mediocremente o afeta. Demais, ele sabe que as
amarguras da vida são provas úteis ao  seu adiantamento, se as sofrer sem
murmurar, porque será recompensado na medida da coragem com que as
houver suportado. Suas convicções  lhe dão, assim, uma resignação que o
preserva do desespero e, por conseguinte, de uma causa permanente de
loucura e suicídio.” (Kardec, 1994)
  
Ao demonstrar com clareza o objetivo da vida, ao motivar o ser humano para se
aprimorar cada vez mais, o Espiritismo preveniria o desgosto com a vida e a
melancolia, apesar de se reconhecer a existência de predisposições orgânicas para
esta (Kardec, 1862c). O Espiritismo também diminuiria os casos de loucura ao
prevenir o uso abusivo do álcool (Kardec, 1865b). Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   8
A doutrina espírita seria um grande agente profilático contra o suicídio, pois,
além do ponto de vista que daria maior “coragem moral”, o espírita teria vários outros
motivos para evitar o suicídio:
“(...)  a certeza de uma vida futura, (...)  a certeza de que, abreviando a vida,
chega a um resultado absolutamente oposto ao que esperava; que se liberta de
um mal para chegar a outro pior, (...) que não poderá rever no outro mundo os
objetos de suas afeições, aos quais queria unir-se. Daí a conseqüência que o
suicídio é contra seus interesses.” (Kardec, 1862c)
Por diversas vezes Kardec enfatiza que a admissão da “realidade espiritual”
seria um grande avanço para as ciências, especialmente para a medicina:
 “Abrindo novos horizontes a todas as  ciências, o Espiritismo vem, também,
esclarecer a questão muito obscura  das doenças mentais, assinalando uma
causa até agora não levada em conta: causa real, evidente, provada pela
experiência e cuja verdade mais tarde  será reconhecida.(...) a parte de ação
mundo invisível nos fenômenos da natureza. Uma vez entrando neste caminho,
a ciência possuirá a chave dos mistérios e verá cair a mais formidável barreira
que detém o progresso: o materialismo, que restringe o círculo da observação,
em vez de ampliá-lo ”  (Kardec 1862a) 
3) Bezerra de Menezes
Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti é considerado um dos personagens mais
importantes da história do Espiritismo no Brasil. Cearense nascido em 1831, médico,
eleito vereador da cidade do Rio de Janeiro (capital do país à época) quatro vezes e
deputado federal três vezes. Era abolicionista e membro do partido liberal. Em 1886
assumiu publicamente a adesão ao Espiritismo, para o qual trabalhou intensamente
até seu falecimento em 1900. Foi presidente da Federação Espírita Brasileira por
duas vezes e por dez anos escreveu, sob o pseudônimo de Max, uma coluna
semanal sobre o Espiritismo nos principais  jornais da capital (O Paiz e Jornal do
Brasil).(Abreu, 1991; Wantuil, 1990; Nobre, 1986).
Publicou um livro que tem influenciado  muito a visão espírita sobre os
transtornos mentais,  “A Loucura sob Novo Prisma” (Menezes, 1988). Apesar de,
basicamente, reafirmar a posição de Kardec, esta obra é que geralmente é
considerada o grande marco na “visão espírita da loucura”, sendo muito mais
conhecida e citada que os textos de Kardec sobre o tema.
A obra pode ser dividida em três partes: uma crítica filosófica e científica ao
materialismo, discussão de alguns princípios espíritas e a tentativa de demonstrar
que a obsessão pode ser uma causa de loucura. Nos deteremos no último item. Era
uma época de acentuado organicismo na psiquiatria, as publicações médicas se
ocupavam intensamente da paralisia geral progressiva, de tumores e lesões
traumáticas do sistema nervoso central, além dos variados quadros decorrentes de
déficits nutricionais. O que preocupava Bezerra era o fato, citando Esquirol, de se
verificarem inúmeros casos de loucura sem uma lesão cerebral identificável.
Apontava que havia loucura com e sem lesão cerebral, configurando duas espécies
distintas de insanidade. A psiquiatria seria capaz de explicar apenas o primeiro tipo.
Assim define os objetivos de sua obra:
“(...) eu vou tentar (...) resolver o problema da loucura em sua nova face, isto é,
da loucura sem lesão cerebral.
Compreende-se quanto importa à prática diferençar uma espécie da outra, para
não confundi-las no mesmo tratamento, sendo elas de naturezas diferentes.
Meu plano é determinar a natureza especial da loucura sem lesão cerebral –
estabelecer as bases de um diagnóstico diferencial de uma para outra espécie
– e oferecer os meios curativos deste gênero desconhecido de loucura.” (p.13) 
Os primeiros ¾ do livro são dedicados a demonstrar a existência da alma, como
sede do pensamento, independentemente do corpo físico. Sendo este apenas o
instrumento daquela, a loucura poderia advir de problemas no corpo (loucura com
lesão) ou fora dele (loucura sem lesão). A parte final da obra é dedicada às
obsessões. O autor reconhece que a “perseguição movida por Espíritos
desencarnados aos encarnados é “o ponto  mais difícil de aceitar da nova
cosmogonia (espírita)”. Entretanto, afirma ser possível obter provas inconcussas de
sua existência através de métodos “rigorosamente científicos”. Para tanto, cita casos
por ele tratados e que seriam “capazes  de firmarem inabalável convicção em
espíritos livres de preconceitos sistemáticos e de obcecação por fanatismo” (p.141).
Descreve que as melhoras dos quadros  dos pacientes coincidiam com o
convencimento do obsessor de que deveria abandonar a perseguição. 
Um dos pacientes era um estudante de medicina que havia abandonado a
faculdade há dois anos “por ter sido subitamente acometido de loucura, com a idéia
fixa de suicídio, pelo que a família o  guardava em um quarto, com todas as
precauções”. Após semanas de sessões, Bezerra conseguiu convencer o espírito
obsessor. Assim relata:
“Na sexta-feira, pouco mais ou menos à hora em que o Espírito inimigo desistiu
sinceramente da perseguição, Raul, em sua casa, à distância (...) talvez uns
quinze quilômetros, despertava como de um longo pesadelo; chamou a mãe e
mais pessoas da família, por quem se tornara indiferente; saiu do isolamento, e
tão bem se achou que na semana seguinte voltou aos seus estudos.(...)
A coincidência da renúncia do perseguidor com o reerguimento das faculdades
mentais, é fato digno da maior atenção, e nós asseguramos que mais ou
menos rápida, mais ou menos lenta, temos sempre observado esse fenômeno,
desde que o perseguidor se converte.”(p.141-3)
Acompanhou o paciente por mais três anos, não havendo qualquer recorrência
do quadro, tendo se diplomado em medicina. O autor cita diversas testemunhas que
acompanharam a evolução do tratamento deste e de outros pacientes “obsediados”. 
Como dito previamente, Bezerra repete em grande parte as idéias expostas por
Kardec. Entretanto, avança um pouco mais na teoria. Afirma que o obsessor é capaz
de subjugar a vontade do paciente e prejudicar a transmissão do pensamento da
alma do paciente para seu corpo. Seria  como se houvesse “ruídos” na mensagem
transmitida ao corpo, daí as alterações evidenciadas pelos obsediados, confundidoas com as da loucura orgânica. É dito que as obsessões graves seriam um tipo de
loucura:
“É loucura, porque há efetivamente uma perturbação das faculdades mentais,
mas não é a loucura por tal conhecida, porque esta depende da lesão orgânica
do cérebro, e no caso não se dá semelhante coisa.
É a loucura em que Esquirol não encontrou lesão cerebral, é a loucura
psíquica.
Conhecida a dupla causa da moléstia  que apresenta os mesmos sintomas,
embora tenha origens muito diversas(...)”.(p.162)
Bezerra afirma que lesões cerebrais podem  facilitar a instalação do processo
obsessivo (p.173,178-9) e que as obsessões duradouras podem ocasionar lesões
cerebrais, havendo necessidade de um tratamento misto: físico e espiritual. As
descrições do que seriam as alterações residuais, decorrentes de lesão cerebral
secundária às obsessões, se parecem  muito com os sintomas negativos da
esquizofrenia: Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   10
“(...) em vez da excitação, fica da obsessão debelada uma depressão cerebral.
(p.182)
(...) que leva o indivíduo a uma indiferença desesperadora.” (p.184)
O diagnóstico diferencial em bases clínicas dos dois tipos de loucura seria muito
difícil, pois os sintomas seriam os mesmos(p.162, 171-2). Dever-se-ia recorrer aos
recursos espíritas. Há três possibilidades:
•  Hipnotizar o paciente para  que seu espírito se manifeste mais livremente.
Refere que, nesses experimentos, o paciente se expressa com lucidez e
pode dizer a causa de sua insanidade. Entretanto, esse método teria dois
inconvenientes: nem todas as pessoas são hipnotizáveis e o espírito do
doente pode não saber da origem de seu mal.
•  Evocar o obsessor em uma reunião mediúnica. Caso seja uma obsessão, ele
se manifestará num médium, caso contrário, nada ocorrerá.
•  Consultar mediunicamente um espírito que informa a natureza da alienação
mental. Após a definição por ser uma  obsessão, evoca-se o obsessor para
moralizá-lo. Esse era o método preferido pelo autor.(p.176-8)
No caso de um diagnóstico de obsessão, a melhor prova de sua exatidão seria
“a cura pelos meios morais”.
Devido à dupla causa das insanidades, os  tratamentos também deveriam ser
diferenciados. Entretanto, muitas vezes seria preconizado o tratamento misto, pois
as lesões orgânicas podem facilitar as obsessões e estas podem desencadear
danos físicos.
“(...) é de rigor curar-se a lesão de qualquer órgão doente dos obsediados.
Conjuntamente com este esforço, devem-se empregar todos os meios de
moralizar o Espírito do obsediado(...)”(p.179)
Apesar de ter sido o pioneiro na visão espírita da loucura no Brasil, Bezerra não
era  um alienista, nem se arrogava tal título. Não teve uma prática de psiquiatra
espírita, que avaliava e tratava os aspectos físicos e espirituais dos transtornos
mentais. Deixando a parte física para os psiquiatras, sua atuação se concentrava na
desobsessão (Menezes, 1988; p.9, 178). No item seguinte discutiremos aquele que
talvez tenha sido o primeiro psiquiatra espírita.
4) Inácio Ferreira
Inácio Ferreira foi provavelmente o primeiro a institucionalizar as idéias de
tratamento propostas por Bezerra (Hess,  1991, p.187-8), embora seja bem menos
conhecido que este. De 1934 a 1988 dirigiu o  “Sanatório Espírita de Uberaba”, onde
fazia um tratamento psiquiátrico convencional mesclado à terapia espírita de passes,
orações e reuniões de desobsessão. 
A principal tese defendida pelo autor é que a medicina se condenou a uma
enorme restrição investigativa e terapêutica ao se negar a estudar o fator espiritual
nos transtornos mentais. A causa de tal resistência seria o dogmatismo materialista
e o autoritarismo dos meios acadêmicos, presos ao magister dixit. Apesar de elogiar
os esforços dos psiquiatras ao longo dos anos, enfatiza a frustração na busca das
etiologias e a ineficácia em grande parte dos casos tratados (Ferreira, 1993; 1995).
Demonstrando conhecimento dos principais autores da psiquiatria, desenvolve uma
série de críticas epistemológicas à psiquiatria. Aponta as divergências entre as
diversas classificações psiquiátricas, diagnósticos confusos e basicamente
descritivos, pouco informativos sobre prognóstico e terapêutica. A teoria psiquiátrica
periodicamente se via envolta por modismos que usualmente se mostravam
inconsistentes, pois se basearia em especulações muito frágeis. (Ferreira, 1993, p.22-44, 126,). Inferências baseadas num número restrito de observações, exclusão
daquelas que contrariam a hipótese e aceitação acrítica das idéias do “mestres da
psiquiatria” explicariam a movediça teoria psiquiátrica. Todas essas limitações
gerariam uma terapêutica muitas vezes ineficaz, deixando a psiquiatria “a caminhar
na retaguarda dos demais ramos da medicina” (Ferreira, 1995, 13-32; 1946, p:221-
46)
O Espiritismo, ao lado dos fatores sociais e biológicos, seria uma ferramenta
imprescindível para que a Psiquiatria pudesse dar um salto qualitativo, ajudando-a a
melhor compreender e tratar os transtornos mentais. Aos que respondiam com ironia
a esta afirmação, Ferreira relatava que suas observações eram baseadas em “noites
e dias de sacrifícios, longas horas consagradas às pesquisas e às investigações.
Lembrarem-se de que elas partem de um médico cônscio das suas
responsabilidades e que só resolveu publicá-las, após milhares de provas com
milhares de resultados!” (Ferreira, 1995, p.68).
Ele faz uma comparação entre o Espiritismo e a Microbiologia. Os
microorganismos, apesar de invisíveis a olho nu e desconhecidos no meio científico,
durante muitos séculos afligiram  a humanidade. Somente com o advento do
microscópio,  foi possível a identificação e tratamento de inúmeras patologias de
causas antes ignoradas. Assim:
“O Espiritismo, saiba a Ciência oficial, será a lente poderosa desse novo
microscópio, através da qual se poderá devassar esse mundo invisível aos
nossos olhos materializados.” (Ferreira, 1993, p.105)
Os pressupostos teóricos de Ferreira se baseavam nos de Bezerra de Menezes,
mas suas obras relatam inúmeros casos  de pacientes tratados pela via espírita.
Seus livros foram escritos numa linguagem pouco técnica, parecem se dirigir
também para o público não médico. O estilo  é muitas vezes emotivo e grandioso,
anunciando uma nova era para a medicina. Os abundantes relatos de casos, apesar
de não serem descritos com minúcias psicopatológicas, ilustram bem e buscam
comprovar a teoria espírita para os transtornos mentais. São descritos pacientes
com variados tipos de delírios, alucinações, agitações psicomotoras, torpor,
convulsões não epilépticas, tentativas de  suicídio, jogadores patológicos etc. que
apresentaram melhoras importantes após a terapêutica espírita. 
O alto índice de curas obtidas com  uma grande restrição de recursos é
apresentado como uma das evidências a  favor da teoria espírita. Segundo um
relatório com as atividades de 1934 a  1944 do Sanatório, 1352 pacientes deram
entrada, 554 (41%) saíram curados, 210 (16%) melhorados, 163 (12%) transferidos,
341 (25%) foram retirados e 51 (4%) evoluíram para óbito. Neste período, 423 casos
foram catalogados como obsessão, sendo a  classe diagnóstica que permitia maior
percentual de cura, próximo a 100%. Dentre os outros diagnósticos, temos variados
tipos de psicoses (infecciosas, auto-tóxicas, hetero-tóxicas, maníaco depressivas, de
decadência e por afecções cerebrais), esquizofrenias, parafrenias, paranóias, neurosífilis, paralisia geral,  epilepsias,  psiconeuroses, personalidade psicopática e
oligofrenia. (Ferreira, 1993, p:200-8)
O autor não negava as causas materiais, pelo contrário, dizia que “mais da
metade dos pacientes encaminhados ao Sanatório, como obsediados, nada mais
eram do que portadores de doenças orgânicas ou funcionais, mas de âmbito
médico” (Ferreira, 1996, p:8-9). 
Uma mudança teórica importante sobre os autores  espíritas anteriormente
citados é o papel da mediunidade no desencadeamento de quadros obsessivos.
Enquanto Kardec desaconselha a prática  mediúnica por pessoas com sinais de
problemas mentais, Ferreira recomendava que seus doentes freqüentassem
sessões desenvolvimento mediúnico após se recuperarem da crise. Asseverava que 
a mediunidade funcionaria como um imã atraindo influências dos espíritos e que se
não fosse adequadamente treinada e utilizada, estaria muito vulnerável a novas
influenciações espirituais perniciosas, portanto, a novas crises. A prática mediúnica
regular em um centro espírita adequado permitiria a educação da mediunidade e a
sintonia com espíritos superiores, “único recurso para não se ver sujeito, de quando
em vez, a esses distúrbios desagradáveis que o levarão ao hospício” (Ferreira, 1993,
p:189-90). Essa é uma crença freqüente no meio espírita brasileiro atual.
Um fato interessante é que em 2001 foi publicado um livro (Baccelli, 2001),
psicografado pelo espírito de Inácio Ferreira, contando outros casos tratados por ele
enquanto encarnado.
Apesar de Ferreira ter dirigido o Sanatório até 1988, só identificamos
publicações com  relatos de casos da década de 1940, quando ainda não havia sido
desenvolvida a moderna psicofarmacologia. 
5) Joanna de Ângelis
Divaldo Pereira Franco é um médium baiano com mais de 150 livros
psicografados (5 milhões  de exemplares, traduzidos para 15 idiomas) e orador
espírita que realiza palestras pelo Brasil e  no exterior (cerca de 60 países). Afirma
que sua mentora espiritual, uma espécie de anjo da guarda, chama-se Joanna de
Ângelis, que teria escrito 55 livros através dele. Desde 1990 ela tem escrito diversas
obras abordando saúde mental, que ficaram conhecidas como “série psicológica”
(Franco, 2002). 
Os escritos de Joanna ilustram bem uma corrente psicológica espírita atual, pois
têm atingido uma boa tiragem e considerável repercussão no meio espírita brasileiro.
Descrevem uma abordagem complementar às anteriormente descritas, voltadas
principalmente para transtornos “neuróticos” e com amplas pontes tendo sido feitas
com a psicologia transpessoal e junguiana. Na introdução da primeira obra da série,
explica:
“O Espiritismo, sintetizando diversas  correntes de pensamento psicológico e
estudando o homem na sua condição de Espírito eterno, apresenta a proposta
de um comportamento filosófico idealista, imortalista, auxiliando-o na equação
dos seus problemas, sem violência e com base na reencarnação, apontandolhe os rumos felizes que deve seguir.” (Franco, 1990, p:9)
O espírito de cada indivíduo seria a totalidade da consciência, o Self, composto
por uma parte consciente e um inconsciente ampliado, ao incluir as experiências da
vida atual e passadas.
“O Self não é apenas um arquétipo-padrão, mas o Espírito com as experiências
iniciais e profundas de processos anteriores (...). É natural, portanto, que
possua heranças, atavismos, reminiscências,  inconsciente coletivo e pessoal,
face ao largo trânsito do seu psiquismo no processo evolutivo ao largo dos
milênios. Herdeiro de si mesmo, o  Self é mais que um  arquétipo, sendo o
próprio ser espiritual precedente ao berço e sobrevivente ao túmulo.” (Franco,
2002a, p.70)
“Esse  inconsciente coletivo seria o registro mnemônico das reencarnações
anteriores de cada ser(...)”. (Franco, 1995, p:63)
Esse inconsciente teria uma influência marcante em nossos pensamentos,
ações e tendências. Seu conteúdo poderia ser parcialmente acessado através dos
sonhos, orações, meditações e transes, que muitas vezes seriam, erroneamente,
tomados como mediúnicos. Os transes em que se manifestaria o inconsciente do
indivíduo e não um outro espírito são chamados de “anímicos”.(Franco, 1997, p:86) 
O sistema nervoso central seria o instrumento de ação do espírito sobre o corpo
ao regular o funcionamento do sistema neuroendocrinoimunológico. Os
desequilíbrios deste sistema nos diversos  transtornos mentais usualmente seriam
conseqüentes a desarmonias do espírito, que  seria o fator causal fundamental do
psiquismo (Franco, 1997, p:24; 1999, p.35, 42; 2000a, p:101). É destacada a intensa
relação mente-corpo, as influências do  espírito sobre o corpo gerariam um
funcionamento corporal harmônico ou enfermiço ao induzir mutações e diversas
alterações na fisiologia. 
Além dos fatores orgânicos e sociais, as vidas passadas teriam um importante
papel nos desajustes psíquicos atuais. Fobias podem decorrer de eventos
traumáticos, assim como depressões de uma consciência de culpa sobre ações
pretéritas infelizes (Franco, 1997, p:32). Os complexos de culpa quanto a ações
desta ou de outras vidas, atuando de modo muitas vezes inconsciente, seriam
significativos fatores de desajuste psíquico (Franco, 2000b, p:31). Por isso há uma
valorização da conduta ética e, ao invés da culpa perturbadora, enfatiza-se o
conceito de responsabilidade, mediante o qual  “a colheita se deriva da semeadura,
sem qualquer expressão fatalista do sofrimento” (2000a, p.:43).
As obsessões também são incluídas entre as etiologias dos transtornos mentais,
por outro lado é informado que aquelas podem ser conseqüências destes.
“(...) os estados depressivos que proporcionam pensamentos pessimistas e
nefastos (...) abrem brechas para a instalação de obsessões danosas, quando
não de fenômenos que deterioram a máquina celular, propiciando a instalação
de doenças variadas”.(Franco, 1999, p:59)
Na busca do reequilíbrio, há uma grande ênfase numa conduta e pensamentos
éticos como geradores de uma ascendência salutar do espírito sobre o corpo
(Franco, 1999, p:57-62). Mas essa busca da virtude se daria por um real desejo de
aprimoramento e não por mecanismos de repressão que seriam fomentadores de
“dissimulação e indignidade disfarçada de virtude” (Franco, 2000c, p:7). A cura real e
definitiva se daria pelo aprimoramento intelecto-moral do espírito ao longo das
diversas encarnações (Franco, 1999, p:65-9).
“A saúde mental somente é possível quando o  Self, estruturado em valores
éticos nobres, compreende a finalidade  precípua da existência humana,
direcionando os seus sentimentos e conhecimentos em favor da ordem, do
progresso, do bem-estar de toda a sociedade”. (Franco, 2002a, p:113)
São valorizados o desenvolvimento de objetivos existenciais transcendentes e a
busca constante, mas sem ansiedade, destas metas. “Sem uma visão espiritual da
existência física, a própria vida permaneceria sem sentido ou significado”(Franco,
1995, p:9). Há uma valorização da religião que liberta do medo e da ansiedade e
“proporciona a coragem natural para o auto-enfrentamento, tornando-se terapêutica
e geradora de saúde”. Por outro lado, destaca-se que a religião não deve servir de
“fuga psicológica para o indivíduo poupar-se  ao enfrentamento dos seus conflitos,
dos processos de libertação do sofrimento” (Franco, 2002a, p:178)
 O maior modelo de “Homem Integral” seria Jesus, um “exemplo da perfeita
identificação da  anima com o  animus”, tendo “desenvolvido todas as aptidões
herdadas de Deus” (Franco,  1990, p:8; 2000, p:9-10). Apesar de existirem tipos
paradigmáticos, cada ser deve se empenhar na busca de si mesmo, num processo
de individuação, que seria a caminhada para se tornar um ser “total, original e único
que liberta a consciência das constrições mais vigorosas do Inconsciente dominador,
(...) integrando-o à consciência atual”. (Franco, 1997, p:92-4) 
“Ninguém se encontraria reencarnado na Terra não tivesse a existência física
uma finalidade superior.(...) Etapa a etapa, são realizados progressos que se
fixam mediante os hábitos que se incorporam à individualidade(...)
Erros e acertos constituem recurso de desdobramento da consciência para
logros mais grandiosos (...) (Franco, 1997, p:27)
O homem saudável não é aquele que se  encontra extático, aparentemente
triunfador sobre as situações enfrentadas, mas quem permanece lutando,
sempre disposto a avançar com os olhos postos no futuro para onde
avança.”(Franco, 1999, p:38)
A busca do autoconhecimento seria uma  etapa fundamental na transformação
evolutiva do espírito pois favoreceria “a recuperação, quando em estado de
desarmonia, ou o crescimento, se portador de valores intrínsecos latentes”. Para que
seja logrado o autodescobrimento, iluminando  a sombra, alguns requisitos seriam
imprescindíveis: “insatisfação pelo que se é ou como se encontra; desejo sincero de
mudança; persistência no tentame; disposição para aceitar-se e vencer-se;
capacidade para crescer emocionalmente” (Franco, 1995, p:9-13). 
A autoconquista, somente possível ao longo de diversas encarnações, permitiria
a superação dos mecanismos de fuga,  de transferência de responsabilidade, de
rejeição e o enfrentar-se sem acusação (Franco, 1993, p:151-2). 
“O homem maduro psicologicamente vive a amplidão infinita das aspirações do
bom, do belo, do verdadeiro, e, esvaído do ego, atinge o  self, tornando-se
homem integral, ideal, no rumo do infinito.(Franco, 1993, p:28)
6) Discussão
Os quatro autores acima descritos  fornecem um panorama razoavelmente
abrangente da perspectiva pela qual o Espiritismo lida com os transtornos mentais.
Há várias outras obras espíritas de outros autores que abordam o tema (Mundin,
1984; Santos, 1991; Balduíno, 1994; Facure, 1996; Oliveira, 1996; Diversos, 1997;
Palhano Jr & Oliveira, 1997; Claro, 2000), mas que, ou são menos aceitas, ou não
trazem muitas novidades sobre o já exposto. 
As pesquisas ligadas à comunicação de espíritos e telepatia eram freqüentes na
transição entre os séculos XIX e XX, tendo envolvido muitos nomes de destaque no
meio científico internacional (Ross & Joshi, 1992; Stevenson, 1977). Infelizmente,
publicações na área da “pesquisa psíquica” realizadas por alguns pioneiros da
psiquiatria e psicologia como Pierre  Janet, William James, Cesare Lombroso e
Federic Myers permanecem amplamente desconhecidas pela comunidade
psiquiátrica e psicológica contemporânea  (Lombroso, 1983; Almeida & Lotufo Neto,
2004). São necessários mais estudos sobre a ascensão e queda do interesse em
temas ligados à “paranormalidade” pelos psiquiatras e psicólogos há um século. Um
outro ponto a ser investigado seria o impacto que estes estudos tiveram na teoria e
prática psiquiátrica por nós herdada.
Do mesmo modo, há poucos trabalhos  analisando os médicos espíritas no
Brasil. Bezerra de Menezes foi analisado por dois pesquisadores norte-americanos,
que chegaram a conclusões bastante diferentes. O historiador Donald Warren (1984)
tem uma visão bastante negativa e, por vezes distorcida, de “A Loucura Sob um
Novo Prisma”, considerando-o “um sofrível registro do que um médico pensa estar
fazendo”. Interpreta que Bezerra, inconscientemente influenciado por sua origem
nordestina (região mais pobre do Brasil), apenas deu uma precária roupagem
científico-racional para rituais indígenas e africanos da ”tradicional arte brasileira de
cura”. Por outro lado, o antropólogo David Hess (1991, p.94-8) compara o trabalho
de Bezerra ao de Freud e Janet na busca pela compreensão de quais seriam as 
causas da insanidade sem lesão cerebral. Eles buscavam preencher uma lacuna no
conhecimento e prática médicas e acreditavam terem descoberto um novo tipo de
doença mental. No entanto,  o brasileiro não encontrou receptividade entre seus
pares na tentativa de trazer legitimidade científica ao que era visto como religião
popular e magia. Afirma que, assim como  a psiquiatria dinâmica, o Espiritismo
procurou fazer um ponte entre o exorcismo e a neurologia:
“Like Freud’s psychoanalytic method, which borrowed from the Catholic
confessional even it used a biomedical idiom, Menezes’ disobsession therapy
borrowed from Catholic exorcism but instead used the spirit idiom. Like Freud,
Menezes challenged the accepted dogmas  of both the Catholic church and
biomedicine. Yet, instead of mapping  out an unconscious, Menezes mapped
out a spirit world – one that was real  to most Brazilians as the world of
repressions, automatisms, and psychic  energies was to the psychological
reformers of Europe.
Menezes’ disobsession therapy was similar to the new dynamic psychiatries in
a second way: the triad of spirit of light/client/errant spirit is in many ways similar
to that of superego/ego/id.(...) 
(...) the passive figure of medium plays a role similar to that of the silence of the
analyst: both are empty stages on which  the drama of unconscious conflict
plays itself out.(p.97-8)
Uma das diferenças em relação à psicanálise seria que o doente não precisa
estar presente à sessão, que é um dos argumentos dos espíritas para negar que o
efeito terapêutico seja apenas por catarse ou sugestão.
Essa semelhança entre os idiomas da terapia espírita e da psicanálise também
já foi notado por Bastide (1967) e Garrison (1977) e levou Hess a chamar Bezerra de
“Freud Brasileiro”. 
À parte a questão dualismo versus monismo, ao analisar a obra de Bezerra com
o olhar de um psiquiatra do século XXI,  o seu ponto mais frágil parece ser o seu
conceito de “loucura sem lesão cerebral”. Apesar de não ter afirmado explicitamente,
pareceu ter assumido que o fato de não haver lesões macroscópicas no cérebro
seria sinônimo de cérebro “sem a mínima lesão” ou no “mais perfeito estado
fisiológico” (Menezes, 1988; p.11-2). Nas  últimas décadas têm sido evidenciadas
alterações dos circuitos neurais e  neurofuncionais que poderiam explicar a
existência de graves transtornos mentais sem a presença de lesões cerebrais
macroscópicas (Gur & Gur, 2000).
Conforme já descrito, Ferreira procurou  integrar a teoria de Bezerra à prática
psiquiátrica convencional. Sua maior importância está em ser provavelmente o
pioneiro a unir de modo sistemático as duas abordagens, atuando desta forma por
mais de meio século. Importante destacar que Kardec, Bezerra e Ferreira
escreveram suas obras num período onde não havia antipsicóticos e antidepressivos
e a psiquiatria lidava basicamente com transtornos mentais graves, tendo sua prática
em grande parte circunscrita aos “hospitais de alienados”. Os transtornos mentais
que atualmente são o dia a dia da prática psiquiátrica (transtornos ansiosos e de
humor) eram muitas vezes da alçada dos  clínicos e neurologistas, ou nem eram
considerados transtornos mentais (Marx, 1992). Estas afecções somente ganharam
maior espaço na literatura espírita, assim como na sociedade como um todo, nas
últimas décadas.
Como não havia nenhum das atuais psicofármacos, a ineficácia dos alienistas
em grande parte dos casos tratados pareceu  ser um importante fator a permitir o
desenvolvimento da abordagem espírita. Lamentavelmente, não foram identificadas
publicações de Ferreira da segunda metade do século XX. Seria muito valiosa uma Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   16
investigação do impacto da moderna psicofarmacologia sobre a terapêutica do
Sanatório de Uberaba.
Os autores discutidos descrevem inúmeros casos de “curas espetaculares”
obtidas pela terapia espírita. Infelizmente, o rigor metodológico dos ensaios clínicos
contemporâneos não havia sido desenvolvido naquela época. Três grandes
problemas são a falta de aleatorização, de um tratamento controle e de medidas
objetivas da evolução clínica. A ausência desses cuidados deixa os relatos sujeitos a
diversos viéses como o efeito placebo,  o retorno à média, a  evolução natural da
doença e a tendenciosidade do paciente e  do examinador na avaliação dos
resultados (Guyatt et al, 1986; Sackett,  1985). No entanto, não é adequado exigir
uma severidade científica extemporânea. Muito da teoria e prática psiquiátrica surgiu
da “experiência clínica” e da autoridade pessoal dos “mestres da psiquiatria”, sem
grandes preocupações metodológicas.  Crichton (1996), em editorial do  British
Journal of Psychiatry, chega a afirmar que o seminal trabalho de Kurt Schneider
(1980) sobre sintomas de primeira ordem em esquizofrenia tem tantos problemas
metodológicos que não seria nem mesmo considerado para publicação pelos
pareceristas de um moderno periódico médico. A primeira edição deste livro surgiu
em 1946 na Alemanha, década de publicação das obras de Ferreira.
Apesar das diversas limitações metodológicas de relatos de séries de casos, são
muito úteis como interface entre a medicina clínica e a pesquisa e para formulação
de hipóteses a serem testadas em estudos com desenhos mais elaborados.
Diversas descobertas médicas tiveram início com a publicação desses relatos
(Hennekens & Buring, 1987, p:106-7). Dados intrigantes nas descrições feitas pelos
pesquisadores espíritas dizem respeito ao grande número de casos, sincronia entre
acontecimentos nas reuniões  mediúnicas e evolução clínica de pacientes que não
tinham conhecimento destas reuniões, além do relato pelos médiuns de fatos sobre
os pacientes desconhecidos daqueles. A descrição por três autores de situações
similares, ocorridas na França e no Brasil e ao longo de um século, sugerem que o
assunto necessitaria ser melhor pesquisado  a fim de determinar se os resultados
descritos são frutos de um artefato comum a estes autores ou se há algo que
mereça maiores considerações. O NEPER (Núcleo de Estudos de Problemas
Religiosos e Espirituais) tem desenvolvido investigações históricas (Morei-Almeida,
2005) antropológicas (Puttini, 2004) e um  ensaio clínico (Leão, 2004) sobre a
terapêutica espírita integrada à psiquiátrica convencional. Apesar de “terapias
espirituais” como imposição das mãos e orações serem  freqüentes em todo o
mundo, o tratamento através de reuniões mediúnicas de desobsessão realizadas por
médicos parece ser uma peculiaridade brasileira neste último século. Essa
singularidade seria mais um motivo para que se investigue melhor tais práticas.
Em 2004, Puttini concluiu uma tese de doutorado que pesquisou 26 hospitais
psiquiátricos espíritas no estado de São Paulo, o mais rico e povoado do Brasil. Os
hospitais pesquisados empregavam aproximadamente 4.300 profissionais de saúde,
muitos dos quais não espíritas. Em todos eles eram empregados os recursos
médicos e psicológicos convencionais e, de modo complementar, eram
desenvolvidos os trabalhos de terapia espírita. Há um amplo espectro na importância
dada a esta abordagem complementar pelas instituições estudadas. Variando desde
uma atividade residual e quase indesejada  pelo corpo clínico, até uma total
integração onde as avaliações e intervenções espirituais são registradas nos
prontuários dos pacientes.
Numa recente dissertação de mestrado, Leão (2004) investigou, num ensaio
clínico controlado duplo-cego, o impacto das terapias mediúnicas na evolução clínica
e comportamental de pacientes portadores de deficiência mental internados num
hospital espírita. Todos os pacientes recebiam tratamento psiquiátrico convencional, Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   17
mas o grupo experimental teve sessões  mediúnicas realizadas como terapia
complementar. Ao final dos seis meses do estudo, o grupo experimental apresentou
uma melhora clínica e comportamental estatisticamente superior ao grupo controle.
Este foi um primeiro estudo que necessita de ser replicado em outras populações e
com métodos aprimorados.
Ian Stevenson é um psiquiatra que tem realizado pesquisas rigorosas sobre
algumas questões levantadas neste artigo e publicado seus resultados em
publicações médicas de impacto. Apesar de sua maior área de interesse ser
crianças com relatos sugestivos de vidas passadas (Stevenson, 1983; 1999),
também tem investigado experiências de quase morte (Stevenson & Greyson, 1979;
Greyson & Stevenson, 1980; Owens, Cook  & Stevenson, 1990) e comunicações
mediúnicas (Stevenson, 1977). Em 1983 ele apresentou uma proposta de um novo
termo para complementar a palavra “alucinação”, no caso de experiências sensoriais
não compartilhadas de conteúdo obtido por via paranormal em pessoas sem
psicopatologia (Stevenson, 1983). Essa proposta de classificação das alterações da
senso-percepção é muito semelhante a apresentada por Kardec  (1861a). Um outro
ponto em comum com as descrições dos três autores discutidos neste artigo, diz
respeito à possível explicação de certos padrões de comportamento através da
hipótese da reencarnação. Segundo as pesquisas de Stevenson (1977a), fobias,
filias, habilidades não aprendidas,  problemas nas relações pais-filhos e alterações
de identidade de gênero sexual poderiam ter origens, em alguns casos, em vidas
passadas. O que merece ser frisado é que a realização de estudos sérios sobre
estes temas tão controversos não implica na aceitação de seus pressupostos
teóricos nem no abandono do rigor científico (Cardeña, 2000; Dossey, 2000).
Uma visão espírita mais recente sobre os transtornos mentais tem sido
fornecida por Joanna de Ângelis. Na realidade, ela assume os pressupostos dos
autores anteriores e os complementa com  uma visão mais psicológica, voltada
predominantemente para os transtornos “neuróticos” e para problemas existenciais.
Apesar de algumas resistências localizadas, suas obras têm tido uma grande
aceitação nos meios espíritas: leigos e profissionais em saúde mental. Vale a pena
ressaltar que os temas psicológicos são um assunto crescente também na literatura
mediúnica norte-americana recente (Hastings, 1991; p:196). Na década de 1970
surgiram os livros de maior repercussão: “A Course in Miracles” (Schuman, 1975) e
as obras de uma entidade chamada “Seth” (Roberts, 1970, 1972, 1974), que
venderam milhões de cópias (Hastings, 1991; Klimo, 1998). Há diversos paralelos
entre os conteúdos destas publicações norte-americanas com a brasileira, e todas
elas têm gerado grupos de estudos, seminários e conferências, além de serem
utilizadas como fonte de auto-ajuda por  milhões de pessoas pelo mundo. Estas
obras também merecem um estudo acadêmico para que possamos compreender
melhor o conteúdo e o impacto dessas teorias psicológicas sobre a população. A
Course in Miracles tem sido analisado  por alguns autores  do mundo acadêmico
(Hastings, 1991; p:111-3).  Visão Esp¡rita dos Transtornos Mentais   18
Alem da possibilidade de investigação sobre a realidade objetiva, empírica,
destes preceitos espíritas, um outro  aspecto que merece ser investigado é a
importância cultural destas crenças. As dimensões religiosas e espirituais da cultura
estão entre os mais importantes fatores que estruturam as crenças, valores,
comportamentos e padrões de adoecimento humanos, ou seja, a experiência
humana (Lukoff, Lu & Turner,  1992). A cultura pode influenciar a prática clínica de
diversas formas: como instrumento explicativo, agente patogênico ou patoplástico,
fator diagnóstico e como elemento terapêutico e protetor (Alarcón et al., 1999).
Conhecer o universo cultural de uma grande parte de nossa população é um
imperativo para uma prática clínica adequada.
 Muitos de nós, psiquiatras e psicólogos, em nossa prática clínica, temos
encontrado resistências de grupos religiosos (espíritas inclusive) aos tratamentos
propostos, tendo em vista crerem numa etiologia espiritual para seus males.
Importante considerar que os próprios espíritas reconhecem serem freqüentes os
abusos neste sentido. Teixeira (1990; p:86-7), um destacado médium brasileiro,
afirmou ser comum se considerar erroneamente quadros psiquiátricos como
mediunidade. Da mesma opinião compartilhavam Ferreira (1996;  p:8-9) e Kardec
(1994, questão 474). Apesar de alguns espíritas julgarem que todos os transtornos
mentais decorreriam de mediunidade ou obsessões, dispensando, portanto, o
tratamento psiquiátrico ou psicológico  convencional, esta não é a opinião dos
principais autores espíritas. O fato destes terem preconizado muitas vezes o uso
concomitante das duas abordagens, pode ser um argumento decisivo na aceitação
por parte da família e do paciente de um tratamento psiquiátrico. A recomendação
disseminada no meio espírita brasileiro de “desenvolver a mediunidade” como
terapia para problemas psiquiátricos também não embasamento nos dois principais
autores espíritas: Kardec e Bezerra.
7) Conclusões
 O Espiritismo tem desenvolvido uma complexa teoria sobre os transtornos
mentais que tem influenciado pacientes  e profissionais de saúde, notadamente no
Brasil. É proposta uma etiologia complementar aos fatores sociais, biológicos e
psicológicos: a causa  espiritual. Esta proviria de encarnações passadas e de
influenciações espirituais, as chamadas obsessões. Os espíritas argumentam que a
aceitação deste outro fator teria  um enorme poder heurístico, facilitando
excepcionalmente o desenvolvimento da medicina e da psicologia. Asseguram que o
dogmatismo materialista e o autoritarismo acadêmico impedem a aceitação de seus
pressupostos. Importante destacar que o próprio meio espírita desconhece muito
desta teoria e tem desenvolvido práticas conflitantes com a preconizada pelos
principais autores espíritas.
 O estudo acadêmico deste tema tem um grande importância devido à
relevância que assumiu em nossa cultura e pelas implicações práticas. Dois campos
se abrem para esta investigação: a pesquisa sobre a realidade  objetiva e eficácia
das práticas espíritas e o impacto cultural que tais visões de mundo têm na
população. Este artigo é apenas um levantamento inicial do assunto, ao longo deste
trabalho delinearam-se diversas linhas possíveis de investigação, algumas delas já
em andamento. Espera-se ter colaborado  para chamar a atenção da comunidade
científica para a relevância deste tema.
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