A medicina e a religião
Um tema antigo, e igualmente polêmico, o qual nem o tempo foi capaz de solucionar como questão peculiar, na qual os direitos e deveres são contrapostos e a fé e a medicina se enfrentam. No dia a dia das entidades hospitalares, nas quais as decisões devem ser tomadas em segundos, a ausência de uma definição pela doutrina jurídica e na jurisprudência pátria dificulta a decisão de médicos e pacientes.
Assim, em determinados casos, impõe-se desvendar quais os direitos constitucionais devem ser resguardados: o direito à vida ou a liberdade religiosa, ambos direitos fundamentais imutáveis. As normas vigentes trazem ainda conflitos entre deveres dos médicos e direitos dos pacientes — a qual se deve atender?
Sem dúvida, um dos principais conflitos entre a medicina e a religião dá-se pelo procedimento da transfusão de sangue. Os seguidores da religião Testemunhas de Jeová têm como crença a impossibilidade da realização da transfusão de sangue; para eles o sangue de outrem é impuro, moralmente contaminado. Uma das justificativas está nas citações bíblicas como Gênesis (9,3 a5), Levitico (17,10) e em Atos (15,20), nas quais se afirma que “é um princípio cristão não consumir sangue, não havendo diferença entre consumi-lo por via oral ou intravenosa”.
Com o avanço da medicina, apresentam-se inúmeras alternativas de tratamento àqueles que se recusam a realizar a transfusão de sangue. No entanto, em alguns casos os médicos têm como única forma para salvaguardar o paciente: realizar a transfusão de sangue, sob pena de sequelas ou mesmo de óbito.
Entra-se, então, no referido conflito aparente de direitos constitucionais: seria a vida mais importante do que a liberdade religiosa? Partindo do pressuposto de que nenhum direito é absoluto, a doutrina e a jurisprudência apontam que ambos os direitos devem ser cotejados e colocados na balança da proporcionalidade. Assim, o conflito será sempre aparente, pois o direito de maior valor se sobreporá ao de menor valor, segundo o princípio da convivência harmônica das liberdades públicas.
Em determinados casos, é mais fácil a aferição do direito considerado de maior valor. Veja o caso de determinadas seitas religiosas que pregam um suicídio coletivo de seus fiéis quando de determinado acontecimento, como a seita americana Heaven's Gate, na qual dezenas de fiéis cometeram suicídio coletivo esperando ir embora da terra na cauda do cometa Halley, em 1997. Neste caso, claramente o direito à vida se sobrepõe ao direito à liberdade religiosa, que cai por terra, sendo possível e legítimo todo e qualquer ato para se evitar as dezenas de mortes.
Em outros casos, pode não ser tão fácil se aferir qual o direito de maior valor. No caso da transfusão de sangue, para a maioria da população, em especial aqueles que não são seguidores das Testemunhas de Jeová, a resposta seria unânime: a vida deve se sobrepor a tudo. Porém, a crença religiosa, a fé daqueles que optaram pela não realização do procedimento, gera um conflito moral interno, em que o descumprimento das regras religiosas é pior do que a morte.
Difícil julgar quando não se tem a crença naquilo que se sobrepõe a vida. No entanto, algumas normas jurídicas devem ser observadas, seja pelos médicos, seja pelos seguidores das Testemunhas de Jeová. A lei é igual para todos, independentemente da crença.
O Código de Ética Médica prevê a autonomia do paciente em decidir, após esclarecimentos dos riscos e consequências, que pode optar por determinado tratamento médico. Por outro lado, o mesmo ordenamento legal determina que é dever do médico utilizar-se de todos os meios para curar a enfermidade e salvar a vida de seu paciente.
Parte da jurisprudência entende pela desnecessidade de previamente se recorrer ao Judiciário para solicitação da realização do procedimento de transfusão de sangue. Todavia, não raro temem os médicos sofrer processos judiciais, com pedidos de indenização por descumprimento da autonomia do paciente. Desta forma, inclusive em determinados casos de urgência, havendo tempo, alguns médicos optam por terem um respaldo judicial para a realização do procedimento.
Diante das normas legais, dos deveres das partes e do aparente conflito de direitos, devem ser feitas algumas distinções principais nas quais é possível aos pacientes ter sua autonomia assegurada. Em um primeiro plano, temos que distinguir as hipóteses em que determinado paciente é considerado “hipossuficiente” pela legislação, como por exemplo, as crianças e adolescentes. Neste caso, as normas que regem a Constituição federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90) adotaram a doutrina da proteção integral, pondo a salvo as crianças e adolescentes de qualquer situação prejudicial a seus interesses (ECA, artigos 1º, 3º, 4º e 6º), sendo “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde...” (CF, artigo 227, e ECA, artigo 4º); bem como “dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (ECA, artigo 70). Assim, reforça-se a imposição ao profissional da saúde de salvaguardar a vida e a integridade física do infante, caso sua avaliação conclua pela necessidade da transfusão de sangue, não havendo outra alternativa.
Igual raciocínio deve ser aplicado aos idosos, por exemplo, com fulcro no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03).
Já quanto aos demais pacientes que se encontram em condições de manifestar sua vontade, embora deva ser respeitada a sua autonomia, deve o profissional da saúde analisar a urgência do procedimento e a capacidade do paciente de se expressar, diante de determinada enfermidade. Nesses casos, será o médico quem deverá decidir o melhor procedimento a fim de dar cumprimento ao seu dever de salvaguardar vida, buscando conciliar o mencionado princípio constitucional da proporcionalidade e outras normas que impõe este dever (Código de Ética Médica e artigo 146, § 3º, I, do Código Penal, entre outros). Tarefa complexa e ainda sujeita a consequências ao profissional de saúde, nas esferas cível, criminal e administrativa, independente da decisão que tomar.
Por tudo, assenta-se que nenhum direito pode ser considerado absoluto.
* Sandra Franco, sócia-diretora da Sfranco Consultoria Jurídica em Direito Médico e da Saúde, do Vale do Paraíba (SP), é presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde. – drasandra@sfranconsultoria.com.br
**Nina Neubarth, advogada na Sfranco Consultoria Jurídica em Direito Médico e da Saúde, é especialista em Direito Público – nneubarth@sfranconsultoria.com.br
***Fabio Rodrigues F. Lima é promotor de Justiça em São José dos Campos/SP – faropj@uol.com.br
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