Escrito por Ricardo Madeira
Depois de aproximadamente 40 anos do início da era cristã, Fílon, um eminente filósofo judeu, que defendeu os interesses judaicos junto à corte de Nero, escreveu sobre os hábitos de vida e o pensamento do que teriam sido as primeiras comunidades cristãs.
Eles viviam no Egito, nas imediações de Alexandria, uma das cidades mais importantes dos primeiros tempos do movimento cristão, bem antes da constituição, em Roma, de uma religião dita cristã, com pretensões a ser universal.
Nessa comunidade, homens e mulheres acorriam para se preparar para uma vida mais verdadeira, mais elevada, sendo tratados da mesma forma, embora houvesse um muro que os separasse. Todos ouviam as mesmas palestras, podiam estudar os mesmos textos e procuravam ter os mesmos hábitos de comportamento. Para os padrões judaicos de então, isso era algo impensável, mesmo porque praticamente até o século 20, as mulheres não eram admitidas, conjuntamente com os homens, ao estudo e discussão dos temas mais pungentes da vida, recebendo educação exclusivamente no lar e para o lar.
Esses terapeutas, como se chamavam, também liam textos judeus, além de outros que Fílon não reconheceu, pois não os conhecia na verdade – tudo indica fossem textos cristãos. Buscavam ser comedidos no falar, no comer e no beber. Prezavam as virtudes do coração e da mente. Contudo, o que mais os distinguia era a preocupação com o ser, para o quê isolavam-se na comunidade para melhor aprimorarem-se nesse mister.
E o que seria cuidar do ser? Cuidar de si, do próprio corpo, dos outros? Seriam eles devotados a alguma forma de medicina alternativa da época? Sim e não. Se por medicina entendermos o cuidado com a saúde do corpo, buscando nele mesmo a origem das doenças, os terapeutas de Alexandria não eram médicos, enfermeiros. Entretanto, se por medicina entendermos a preocupação com a saúde do corpo, entendendo-a como efeito da saúde da alma, então eles exerciam sim uma forma de medicina, identificando a origem dos males físicos nos hábitos de comportamento e valores morais. Viam as doenças orgânicas como consequências dos desequilíbrios da alma. A ira, o ódio, a inveja, a cobiça, as fobias, a tristeza, a desorientação do desejo, o apego ao prazer, a inconformação e a ignorância, entre outras coisas, eram tidos como a origem das doenças em geral, procurando-se orientar o comportamento, tendo em vista a manutenção da saúde integral, de corpo e de alma.
O que distinguia ainda mais os terapeutas era o exercício de vida que continuamente buscavam. Adestravam-se para ver em cada um, fosse quem fosse, uma manifestação do Ser, a presença divina, em tantas formas de existência. Esmeravam-se em procurar as necessidades relativas, não propriamente à personalidade de cada um, mas ao que de fato necessitava o ser universal para se desenvolver plenamente.
Outros dados curiosos podem ser encontrados pelo leitor na tradução que Jeans-Yves Leloup, fez da obra de Fílon (Editora Vozes), cujo título em português é Cuidar do ser.
Os terapeutas no Evangelho
Na introdução de O evangelho segundo o espiritismo (1863), no item Notícias Históricas, Kardec destaca que para bem compreender certas passagens dos evangelhos é necessário conhecer o valor de muitas palavras que são frequentemente empregadas nos textos, e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia daquela época. É assim que lá estão os comentários sobre os samaritanos, os nazarenos, os publicanos, os peageiros, os fariseus, os escribas, os saduceus, os essênios e os terapeutas. Esclarece Kardec:
Terapeutas (do grego therapeutai, formado de therapeuein, servir, cuidar, isto é: servidores de Deus, ou curadores). Eram sectários judeus contemporâneos do Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação com os essênios, cujos princípios adotavam, aplicando-se, como esses últimos, à prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na alimentação. Também celibatários, votados à contemplação e vivendo vida solitária, constituíam uma verdadeira ordem religiosa. Fílon, filósofo judeu platônico, de Alexandria, foi o primeiro a falar dos terapeutas, considerando-os uma seita do judaísmo. Eusébio, S. Jerônimo e outros Pais da Igreja pensam que eles eram cristãos. Fossem tais, ou fossem judeus, o que é evidente é que, do mesmo modo que os essênios, eles representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.
Ricardo Madeira tem formação em Semiótica e Linguística Geral e doutorado em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.
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