A - A DAMA DA FÉ.
Grande multidão o seguia, comprimindo-o. Certa mulher, que havia doze anos tinha uma hemorragia, e que havia padecido muito à mão de vários médicos, e despendido tudo o que tinha, sem contudo nada aproveitar, pelo contrário, indo a pior, ouvindo falar de Jesus, veio por detrás, entre a multidão, e tocou na sua veste. Dizia ela: Se tão somente tocar nas suas vestes, sararei. Imediatamente se lhe estancou a hemorragia, e sentiu no seu corpo estar curada do flagelo. Jesus, conhecendo que de si mesmo saíra poder voltou-se na multidão, e perguntou: Quem tocou nas minhas vestes? Responderam-lhe os discípulos: Vês que a multidão te aperta, e dizes: Quem me tocou? Porém ele olhava em redor, para ver a que isto fizera. Então a mulher, que sabia o que lhe tinha acontecido, temendo e tremendo, aproximou-se, prostrou-se diante dele, e declarou-lhe toda a verdade. Ele lhe disse: Filha, a tua fé te salvou. Vai em paz, e sê sarada deste teu mal. MARCOS 5:24-34
Sua história foi uma história de sofrimento e de provações. Desde a adolescência, acostumou-se com as dores freqüentes que sentia e os incômodos de sua saúde frágil.
Sob a tutela de abnegada dama, ela soube enfrentar dolorosamente a falta da mãe, que perdera a vida anos atrás, deixando-a órfã. O pai, homem trabalhador e honesto, dedicava-se ao seu ofício, provendo assim o sustento para o lar. Após o luto e a viuvez, contraíra novas núpcias, e a filha fora adotada pela madrasta como se fora fruto de seu próprio ventre.
Desde cedo aquela jovem aprendeu o manejo do tear, fabricando belas peças de fazenda. Do linho puro, tecia mantos formosos, que vendia para auxiliar a família quanto pudesse.
Em determinada ocasião, o pai terminou por perder a vida, dando assim vitória à doença que o consumiu durante longo período. Restava-lhe agora somente as bênçãos de um casamento, que desejava fosse feliz.
Donzela, viu seus sonhos se esvaírem quando a saúde tornou-se-lhe mais delicada. Estranha hemorragia se manifestou, requerendo maiores cuidados por parte dela e da madrasta. Não podia mais trabalhar como antes, o que comprometeu severamente o orçamento doméstico. Viram-se então obrigadas a racionar os alimentos e se adaptar a uma vida ainda mais austera do que o cotidiano simples e despojado de requintes que já conheciam. Os tempos eram difíceis, e a falta de uma presença masculina, paternal, tornava as coisas bastante delicadas, em especial na sociedade machista e patriarcal em que viviam. A jovem moça era obrigada a sacrifícios extremos.
A estranha hemorragia transformou-se também em motivo de angústia, de pesar. De acordo com as leis religiosas vigentes, que pautavam toda a convivência social, a mulher com fluxo menstrual era tida como imunda. O homem era proibido até mesmo de tocar qualquer mulher em tais condições. No caso daquela jovem, a situação era ainda mais grave, pois seu fluxo de sangue era ininterrupto. O tempo havia transcorrido vagarosamente, e o sangue lhe fluía mais constante, acompanhado de dor.
O ser humano, por natureza, teme o desconhecido.
Num misto de fascinação que encanta e horror que amedronta, o desconhecido geralmente expõe a fragilidade dos conceitos humanos. Distante ou sem conexão estreita com as leis divinas, apavora-o a possibilidade de entrar em contato com o que lhe demova a aparente segurança e o faça confrontar-se com a realidade nua das verdades espirituais. A simples menção da incógnita assusta, causa temor, pavor e, dependendo do nível de desequilíbrio íntimo, pânico. Reações de violência e brutalidade são esperadas por parte do ser na infância do espírito. Advêm daí as atitudes de preconceito, discriminação e segregação, como se, banindo o desconhecido ou o diferente, o homem pudesse eximir-se dele. Vítimas das mais diversas enfermidades físicas ou psíquicas, nas mais variadas épocas e culturas, experimentaram a rejeição e o repúdio social e enfrentaram a reclusão em inúmeras circunstâncias.
Por interferência de amigos, a jovem hemorroíssa procurou por longo tempo os facultativos da época, não logrando resultados. Médicos foram consultados, porém a ciência ou a sabedoria de seu tempo não detinha condições de solucionar esse mal.
Andou a companheira desafortunada por várias cidades e vilas: se houvesse a informação da presença de algum médico ou curandeiro aqui ou ali, onde quer que fosse, lá estava a jovem. Tudo em vão. Os anos passaram, e as tentativas frustradas de socorro e tratamento esgotaram o viço de sua juventude, restando-lhe apenas a opção da convivência pacífica com a enfermidade e o seu resguardo na fé viva que alimentava dentro do peito.
Mesmo ante tantos fracassos na tentativa de curar-se, não desanimava. Sua vida transformara-se num exemplo de perseverança e fé viva. Ainda abatida, a mulher não se entregava à enfermidade nem deixava de trabalhar para seu sustento.
Passou pela vida com o desejo mal contido de ser mãe. Seus sonhos de menina-moça e, agora, de mulher não poderiam ainda ser realizados. A hemorragia persistia por longos anos, como a esgotar-lhe lentamente as forças vitais, provando-lhe a resistência espiritual. Diante da provação dolorosa, respondia como podia com a sua dedicação ao trabalho e, agora, com o cuidado extremado com a sua segunda mãe, para a qual soavam os lamentos próprios do inverno da existência.
Não desistiria jamais. Lutaria quanto pudesse; faria a sua parte. Embora por tantos e longos anos não encontrasse cura através da medicina humana, alimentava a idéia de que Deus colocaria diante dela o facultativo de que necessitasse para debelar o seu mal.
O exemplo é de persistência, de perseverança, de esperança. Quando muitos se entregavam ao desespero e ao desânimo, diante das moléstias consideradas incuráveis, ela, mesmo ciente das dificuldades da época, insistia na procura pela solução para os seus males. Desejava ardentemente a superação de si mesma e de seus próprios limites. Não se entregou à depressão ou ao azedume. Trabalhou.
Talvez, desconhecedora ainda de certas leis da vida, da reencarnação, não atinava com a origem distante de seus males. Quem sabe num passado distante não atentara contra a vida própria ou a alheia, na tentativa de aborto ou no desprezo pela vida?
São tantas as possibilidades que não convém, na hora da dor, procurar pelos motivos do mal. Isso só trará mais contrariedades. O certo é que esta mulher valorosa transformou sua vida num exemplo dignificante de trabalho e de fé no futuro.
O processo que desencadeou a sua enfermidade, no passado longínquo, perdia importância diante de sua fé num futuro em que sua alma brilharia, graças à fé viva que trazia consigo.
Foi assim que 12 anos se passaram, e aquela sombra de mulher arrastava-se pelas ruas de sua cidade, na qual ficou conhecida como a Dama da Fé.
Ouvira falar de um certo Jesus da Galiléia, filho de José, e que Ele, o galileu, era um profeta, um enviado de Deus.
O ânimo aumentou-lhe, e a fé, de uma simples chama bruxuleante, transformou-se numa claridade imorredoura, ante as novas perspectivas que se abriam diiante da existência.
Já não tinha a força da mocidade, e a fraqueza generalizada dominava seu organismo físico, minando-lhe as derradeiras reservas de vitalidade. Um dos médicos consultados não aconselhava maiores esforços, pois, segundo o conhecimento que detinham, não lhe restava muito tempo de vida.
Como enfrentar a estranha situação? E esse Jesus do qual tanto falavam? Será que não estará nele a sua esperança de melhores dias? Orou fervorosamente ao Deus de seu país. Confiava que, talvez, somente de ouvir as palavras do rabi encontraria forças para suportar o momento crítico que se avizinhava. Já estava quase desfalecendo.
No entanto, à medida que o corpo fragilizava-se, aumentava-lhe a confiança no futuro e a certeza de que fios invisíveis a conduziam, orientando o seu destino. Andava pensativa pelas ruas quando ouviu um murmúrio que aumentava lentamente. Ao longe avistou uma multidão que se aproximava. O coração palpitava, e parecia que estranha emoção a dominava. Era tarde. A tarde da história sofrida da humanidade .
A dor muitas vezes atua como grande impulso à evolução dos seres. Desejando a felicidade plena, o homem empreende recursos e luta para debelar a dor, alargando os horizontes da consciência.
Aproximava-se cada vez mais a multidão que envolvia o rabi por todos os lados. Num ímpeto de fé, a mulher arroja-se em meio ao povo, tentando abrir passagem para atingir o Mestre. Seu caminho é obstruído, no entanto, pela gente que procurava beneficiar-se com a presença de Jesus. Não conseguia romper o cerco de pessoas que acompanhavam o Senhor.
Sua fé, porém, alcançava forças desconhecidas pela multidão. O coração daquele que crê caminha bem mais longe que seus pés.
Novo impulso empreende a mulher hemorroíssa rumo a seu objetivo. "Não sou merecedora de seu olhar" pensava ela. "Contudo, sei que dele emana poder, força curadora." Neste momento a aura do Mestre expande-se, e seu pensamento entra em sintonia com o pensamento da mulher enferma. Ele continua seus passsos sem ignorar-lhe as necessidades.
Ela aproxima-se cansada, aflita, cheia de esperanças e movida por intensa fé. Num dado momento, a multidão dá-lhe passagem, e ela tenta a todo custo chegar até o profeta galileu.
Apenas um minuto a separa de seu objetivo. A hemorragia, neste exato instante, parecia aumentar em intensidade; esvaindo-se em sangue, ela se lança em direção ao Mestre, ajuntando todo o resto das forças que possuía num esforço hercúleo. Consegue apenas tocar-lhe as vestes.
É o suficiente. Imediatamente a virtude do Senhor é canalizada até ela, e uma onda de vitalidade percorre-lhe o ser.
O magnetismo divino reestrutura órgãos e células e reequilibra corpo e alma da atormentada criatura. Ela pára por um momento, pensativa. Apenas por um momento. Volta para dentro de si e faz silêncio em sua alma.
O Mestre, detendo seus passos, confabula com os seguidores mais próximos:
- Sinto que alguém me tocou.
- Mas. Senhor, são tantos os que o tocam em meio a esta multidão ... - respondem os discípulos, sem compreender as palavras do Mestre.
- Sim, mas alguém tocou-me de modo especial.
Sinto que de mim saiu virtude.
Jesus, voltando-se para a mulher, dirige a ela seu olhar.
Neste momento parece haver se realizado o casamento do Céu com a Terra. Ninguém resiste ao doce e meigo olhar de Jesus.
Naquele olhar, o Nazareno devassa-lhe a alma e esquadrinha-lhe o coração. É a hora da verdade. A verdade que jamais poderia ser declarada; em vez disso, vivida.
- Mulher, a tua fé te salvou !" - são as palavras pronunciadas pelo Senhor.
Aquele fora o momento da redenção para aquela alma valorosa. Sua vida ilibada, sua fé ardorosa e sua conformação com a vontade do Eterno a faziam merecedora das bênçãos divinas. Onde a medicina humana falhara, porque limitada, manifestava todo o seu poder a ciência divina, e o embaixador das estrelas, o divino médico das almas, mostrava-se soberano aos problemas humanos."A hemorragia cedera ante a atuação do amor. A prova da mulher cessara, e ali, no encontro com Jesus, iniciara uma nova etapa para aquela alma que provara a sua fé, cheia de esperança, na fonte divina de todo o bem. Era a vitória da luz.
O tempo escoou-se vagarosamente. O cenário agora era uma pequena cidade, uma aldeia dos samaritanos. Via-se de longe um burburinho, algumas pessoas que envolviam uma figura singela de uma madona. O lugar, um pequeno albergue erguido à beira de um riacho, com pequeno campo de flores que vicejavam formosas, como expressão da bondade soberana.
A mulher valorosa fundara um abrigo que amparasse os órfãos de qualquer procedência. Em nome do amor, ela ministrava os conceitos de vida e luz para aquelas almas em provação. O encontro com Jesus, anos antes, transformara sua vida de tal maneira que a força do amor contida em seu ser explodiu em obras de caridade e benemerência, por onde quer que passasse.
Ninguém permanece o mesmo depois de encontrar-se com Jesus. Todos que ali passavam, moços, velhos e crianças, encontravam sempre um prato de sopa e uma réstia de pão para aplacar a fome. Ensinando as donzelas a manejar o tear, provia recursos para a manutenção do lar dos necessitados. Ali, à sombra de formosa árvore, ouviam da boca da nobre senhora a velha e feliz história de um homem chamado Jesus.
Estevão
Gostaria de saber qual foi a fonte de pesquisa em que foi tirada essa história, gostei muito e gostaria de utilizá-la para um estudo. Obrigada
ResponderExcluirChirles
Do livro "As mulheres do Evangelho"
ExcluirAnonimo. Parabéns!!! Muito linda sua explanação desta passagem do Evangelho.
ResponderExcluirPara o meu momento de persistencia na Doutrina Espírita, essa passagem me caiu como uma luva...a docilidade dela perante as provas da vida, e a grandeza de Nosso Senhor Jesus Cristo me enxeram os olhos de lagrimas e o coração de esperança e alegria...um dia serei eu a dar o meu testemunho. Louvado seja Deus. Agradecida ^_^
ResponderExcluir