Estudando o Espiritismo

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sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

O MOMENTO DA MORTE


Como o ser humano atravessa essa passagem difícil, de um para o outro mundo? Como se processa o fenômeno da desencarnação? Como atuam os Espíritos para livrar o Espírito desencarnante dos laços do corpo físico, e como este se comporta, de modo geral, nesse episódio decisivo?

Vamos, pois, com a ajuda do que os Espíritos já nos revelaram, estudar o ato da desencarnação, esse momento tão temido e incompreendido da morte do corpo físico.

O Espírito de Frederico Fígner, que se identificou sob o pseudônimo de Irmão Jacob em seu livro Voltei, psicografado por Francisco Cândido Xavier, 6 edição FEB, nos deixou um extraordinário relato de sua passagem para o mundo espiritual, enfrentando a contingência da morte, e é dessa obra monumental que vamos retirar os maiores subsídios para a informação de nossos queridos leitores. Conta ele:

“Todos nós, que estudamos o Espiritismo, consagrando-lhe as forças do coração, somos comumente assediados pela idéia da morte.

“ Como se opera a desencarnação? Que forças atuam no grande momento? De vez em quando, abordamos a experiência de pessoas respeitáveis e concluímos pela expectativa indagadora.

“Por minha vez, lera descrições e teses preciosas, relativamente ao assunto, inclusive Bozzano e André Luiz. Desse último, recolhera informações que me sensibilizaram profundamente. Pouco antes de abrigar-me no leito de morte, meditara-lhe as narrativas acerca da desencarnação de alguns companheiros (Obreiros da Vida Eterna) e, perante os sintomas que me assaltavam, não tive qualquer dúvida. Aproximava-se o fim do corpo.”

“Entrara nas vésperas da total exoneração, quanto aos deveres terrestres. Via-me prestes a deixar o ninho planetário que me abrigara por dilatados anos...

“A que porto demandaria?

“Recordando as experiências do investigador De Rochas, identificava-me em singulares processos de desdobramento.

“Recluso, na impossibilidade de receber os amigos para conversações e entendimentos mais demorados, em várias ocasiões me vi fora do corpo exausto, buscando aproximar-me deles.

“Nas últimas trinta horas, reconheci-me em posição mais estranha. Tive a idéia de que dois corações me batiam no peito. Um deles, o de carne, em ritmo descompassado, quase a parar, como relógio sob indefinível perturbação, e o outro pulsava, mais equilibrado, mais profundo...

“A visão comum alterava-se. Em determinados instantes, a luz invadia-me em clarões subtâneos, mas, por minutos de prolongada duração, cercava-me densa neblina.

“O conforto da câmara de oxigênio não me subtraía as sensações de estranheza.

“Observei que frio intenso veio ferir-me as extremidades. Não seria a integral extinção da vida corpórea?

“Procurei acalmar-me, orar intimamente e esperar. Após sincera rogativa a Jesus para que me não desamparasse, comecei a divisar à esquerda a formação de um depósito de substância prateada, semelhante a gaze tenuíssima...

“Não poderia dizer se era dia ou se era noite em torno de mim, tal o nevoeiro em que me sentia mergulhado, quando notei que duas mãos caridosas me submetiam a passes de grande corrente. À medida que se desdobravam, de alto a baixo, detendo-se com particularidade no tórax, diminuíam-se-me as impressões de angústia. Lembrei, com força, o Irmão Andrade, atribuindo-lhe o benefício, e implorei-lhe mentalmente se fizesse ouvir, ajudando-me.

“Qual se estivesse sofrendo melindrosa intervenção cirúrgica, sob máscara pesada, ouvi alguém a confortar-me: “Não se mexa! Silêncio! Silêncio!...”

“Concluí que o término da resistência orgânica era questão de minutos.

“Não se estendeu o alívio, por muito tempo.

“Passei a registrar sensações de esmagamento no peito.

“As mãos do passista espiritual concentravam-se-me agora no cérebro. Demoraram-se, quase duas horas, sobre os contornos da cabeça. Suave sensação de bem-estar voltou a dominar-me, quando experimentei abalo indescritível na parte posterior do crânio. Não era uma pancada. Semelhava-se a um choque elétrico, de vastas proporções, no íntimo da substância cerebral. Aquelas mãos amorosas, por certo, haviam desfeito algum laço forte que me retinha ao corpo de carne...

“Senti-me, no mesmo instante, subjugado por energias devastadoras.

“A que comparar o fenômeno?

“A imagem mais aproximada é a de uma represa, cujas comportas fossem arrancadas repentinamente.

“Vi-me diante de tudo o que eu havia sonhado, arquitetado e realizado na vida. Insignificantes idéias que emitira, tanto quanto meus atos mínimos, desfilavam, absolutamente precisos, ante meus olhos aflitos, como se me fossem revelados de roldão, por estranho poder, numa câmara ultra-rápida instalada dentro de mim. Transformara-se-me o pensamento num filme cinematográfico misteriosa e inopinadamente desenrolado, a desdobrar-se, com espantosa elasticidade, para seu criador assombrado, que era eu mesmo.

“No trabalho comparativo a que era constrangido pelas circunstâncias, tive a idéia de que, até aquele momento, havia sido o construtor de um lago cujas águas crescentes se constituíam de meus pensamentos, palavras e atos e a cuja tona minha alma conduzia a seu talante o barco do desejo; agora, que as águas se transportavam comigo de uma região para outra, via-me no fundo, cercado de minhas próprias criações.

“Não tenho, por enquanto, outro recurso verbal para definir a situação. Recordei o livro de Bozzano (A Crise da Morte), em que ele analisa o comportamento dos moribundos; entretanto, sou forçado a asseverar que todas as narrações que possuímos, nesse sentido, comentam palidamente a realidade.

“Observando-me relegado às próprias obras, senti-me sozinho e amedrontado. Esforcei-me por gritar, implorando socorro, porém os músculos não mais me obedeceram.

“Busquei abrigar-me na prece, mas o poder de coordenação escapava-me.

“Não conseguiria precisar se eu era um homem a morrer ou um náufrago a debater-se em substância desconhecida sob extenso nevoeiro.

“Naquele intraduzível conflito, lembrei mais insistentemente o dever de orar nas circunstâncias mais duras... Rememorei a passagem evangélica em que Jesus acalma a tempestade, perante os companheiros espavoridos, rogando ao Céu salvação e piedade...

“Forças de auxílio dos nossos protetores espirituais, irmanados à minha confiança, sustaram as perturbações. Braços vigorosos, não obstante invisíveis para mim, como que me reajustavam no leito. Aflição asfixiante, contudo, oprimia-me o íntimo. Ansiava por libertar-me. Chorava conturbado, jungido ao corpo desfalecente, quando tênue luz se fez perceptível ao meu olhar. Em meio do suor copioso lobriguei minha filha amada a estender-me os braços. Estava linda como nunca. Intensa alegria transbordava-lhe do semblante calmo. Avançou, carinhosa, enlaçou-me o busto e falou-me, terna, aos ouvidos:
“– “Agora, paizinho, é necessário descansar.”

“Tentei movimentar os braços de modo a retribuir-lhe o gesto de amor, mas não pude erguê-los. Pareciam guardados sob uma tonelada de chumbo.

“O pranto de júbilo e reconhecimento, porém, correu-me abundante dos olhos. Quem era Marta, naquela hora, para mim? Minha filha ou minha mãe? Difícil responder. Sabia apenas que a presença dela representava o mundo diferente, em nova revelação. E entreguei-me, confiado, aos seus carinhos, experimentando felicidade impossível de descrever.”

“Amparado à Marta, intentei proclamar o júbilo que me dominava, fazendo-me ouvido em alta voz. Todavia, os membros jaziam inteiriçados e os órgãos da fala em descontrole.

“Não tinha perfeito conhecimento da posição em que os familiares se moviam. Meus olhos demoravam-se perturbados. Sensação de esmagamento percorria-me todo; no entanto, que pedir além daquela infinita ventura que o devotamento filial me proporcionava?

“Tentei alinhar idéias a fim de agradecer a intervenção da filha querida; contudo, não consegui.

“Percebendo-me as dificuldades, Marta afagou-me a fronte e falou, meiga:

“– “Os nossos benfeitores desatam os últimos elos. Enquanto isto façamos nossa oração.”

“Não me seria possível, naqueles minutos, enfileirar pensamentos e muito menos enunciar qualquer frase. Tinha a respiração apressa, como nos derradeiros dias de luta no corpo físico. Com alegria, no entanto, via a filha elevar-se ao alto, repetindo em voz pausada e comovedora as expressões do salmo 23, ampliando-lhes o sentido:

“(....) À medida que sua voz pronunciava o texto antigo multiplicando-me as lágrimas abundante e espontâneas, dores cruéis me assaltavam a região toráxica.

“Vim saber, mais tarde, que aqueles sofrimentos provinham da extração de resíduos fluídicos que ainda me enlaçavam à zona do coração.

Perdoe-nos o amigo leitor cortar o fluxo de tão importante depoimento, mas é preciso destacar essa circunstância da ocorrência de dor no processo de desencarnação, ou melhor, no desligamento do Espírito, pois nos parece ser crença geral de que o processo é indolor, já que o corpo físico, estando em completo aniquilamento, não tem mais condições de levar sensações ao cérebro onde realmente a dor se reflete.

Seria o caso de que a dor mencionada pelo autor era sentida no corpo espiritual? Pensamos ser o mais provável, pois sendo o perispírito um organismo de igual estrutura do corpo físico deve padecer dessas sensações doloridas.

Mas prossigamos no conhecimento dessa experiência fantástica do autor espiritual que veio, assim, nos dar subsídios valiosíssimos para o nosso entendimento acerca do fenômeno da morte.

“Finda a prece, que ouvi sob indizível angústia, percebendo a manifesta intenção da filha que assim procedia buscando isolar-me o pensamento da intervenção a que me achava submetido, notei que as dores se faziam menos rudes. Ela permaneceu amorosamente inclinada para mim, por mais de uma hora, em silêncio.

“Temia falar, provocando fenômenos desagradáveis, e, ao que me pareceu, Marta me partilhava os receios.

“Um momento chegou, entretanto, no qual a respiração se fez equilibrada e verifiquei que o coração me batia, uniforme e regular, no peito.

“ Através do olhar, supliquei à filha, sem palavras, reforças-se o socorro que minha situação estava exigindo.

"Vi-a movimentar cuidadosamente o braço direito e, em seguida, passar a destra repetidamente sobre minha cabeça exausta. Reparei que me aplicava forças espirituais que eu ainda não podia compreender.

“Mais alguns minutos decorridos e percebi que o poder de orar me felicitava de novo. Encadeava os pensamentos sem maiores dificuldades e, na convicção de que poderia tentar a prece com êxito, improvisei sincera súplica.

“O trabalho foi bem sucedido. A harmonia geral começou a refazer-me, embora a fraqueza extrema que me possuía.

“Notei que, de Marta para mim, vinham fagulhas minúsculas de luz, em porção imensa, a envolverem-me todo, ao passo que me vi agora cercado de atmosfera francamente iluminada em tom de laranja.

“A respiração processava-se normalmente. A carência de ar desaparecera.

eus pulmões revelavam-se robustecidos, como por encanto, e tanto bem me faziam as inalações prolongadas de oxigênio que tive a impressão de haurir alimento invisível, do ar leve e puro.

“Restabelecendo-se-me a força orgânica, fortificava-se a potência visual.

“A claridade alaranjada que me revestia casava-se à luz comum.

"A melhora experimentada, porém, não ia ao ponto de restaurar-me a disposição de falar. O abatimento era ainda insuperável.

“Assombrado, vi-me em duplicata.

“Eu, que tantas vezes exortara os desencarnados a contemplarem os despojos de que já se haviam desvencilhado, fixei meu corpo a enrijecer-se, num misto de espanto e de amargura.

Vamos abrir mais um parêntese para anotarmos o modo espontâneo que o corpo espiritual do morto desligou-se do corpo físico, e a rapidez desse desligamento, que, em certos casos, como o que vamos relatar adiante, exigem um processo muito diferente.

“Fitei minha filha, com suplicante humildade, imitando o gesto da criança medrosa. Encontrava-me prostrado, vencido. Não me assistia qualquer razão de revolta; contudo, se possível, desejaria afastar-me. A contemplação do corpo imóvel, não obstante aguçar-me o propósito de observar e aprender, era-me aflitiva. O cadáver perturbava-me com as sugestões da morte, impunha reflexões desagradáveis e amargas. A distância dele, provavelmente a idéia de vida e eternidade prevaleceria dentro de mim.

“Marta entendeu o que eu não podia dizer. Fez-se mais terna e explicou-me:

"– Tenha calma, papai. Os laços não se desfizeram totalmente. Precisamos paciência por mais algumas horas.”

“Alongando o raio de meu olhar, verifiquei a existência de prateado fio, ligando-me o novo organismo à cabeça imobilizada.

“Torturante emoção apossou-se de mim.

“Eu seria o cadáver ou o cadáver seria eu? Por intermédio de que boca pretendia falar? da que se fechara no corpo ou da que me serviria agora? Através de que ouvidos assinalava as palavras de Marta?

“Intentando ver pelos olhos mortos, senti-me atirado novamente a espesso nevoeiro.

“Assustado, soergui-me mentalmente.

“Aquele grilhão tênue a unir-me com os despojos era bem um fio de forças vivas, jungindo-me à matéria densa, semelhando-se ao cordão umbilical que liga o nascituro ao seio feminino. Fitando, então, o corpo repousado e inerte, simbolizando o templo materno ao meu ser que ressurgia na espiritualidade, recordei, certamente inspirado pelos amigos que ali me socorriam, a enormidade de meus débitos para com a carcaça que me retivera no Planeta por extensos e abençoados anos. Devia-lhe à cooperação precioso amontoado de conhecimentos, cujo valor inestimável naquela hora reconhecia. Cabia-me vencer o mal-estar e a repugnância.

“Tranquilizei-me. Comecei a considerar o corpo, mirrado e frio, como valioso companheiro do qual me afastaria em definitivo. Enquanto perdurou a nossa entrosagem, beneficiara-me ao contato da luta humana. Junto dele, recolhera benções inextinguíveis. Sem ele, por que processo continuaria o aprendizado? Fixei-o, enternecido, mas, aumentando o meu interesse pela organização de carne, imóvel, incapaz de separar emoções e selecioná-Ias, afundei-me nas impressões de angústia. Minhas energias pareciam retransferir-se, aceleradamente, ao envoltório abandonado. Insuportável constrangimento martirizava-me. Percebi os conflitos da carne desgovernada. A diferença apresentada pelos órgãos impunha-me terrível desagrado.

“Registrando-me as dificuldades, Marta informou bondosamente:

“– “Lembre-se, paizinho, da necessidade de concentração na prece. Não divague. Esqueça a experiência que terminou, sustentando a mente em oração.”

“A custo, retornei a mim mesmo e me mantive no recolhimento necessário.

“Meu objetivo, agora, era não pensar.

“Se avançava no futuro, estranhas vertigens me assediavam; se me demorava analisando o veículo físico, vigoroso e inesperado impulso me reconduzia para ele.

“Que fazer de mim, reduzido a minúsculo ponto sensível entre duas esferas?

“Aquietei-me e orei.

“Rogando a Jesus me auxiliasse a encontrar o melhor caminho, observei que minha capacidade visual se dilatava. Curiosos fenômenos de óptica afetavam-me a retina hesitante. Alterara-se-me a noção de perspectiva. A imagem do ambiente parecia penetrar-me. Objetos e luzes permaneciam dentro de mim ou jaziam em derredor? Dentro de semelhante indecisão, divisei duas figuras ladeando a filha dedicada.

“Centralizei quanto possível o propósito de ver, mais exatamente, e tive o esforço compensado.

“Ambos os presentes se destacaram nítidos. “Que alegria me banhou o ser!

“Num deles, identifiquei, sem obstáculos, o venerável Bezerra de Menezes e, no outro, adivinhei o benemérito Irmão Andrade. Pelo sorriso de compreensão que me endereçaram, reconheci que os dois me haviam notado a surpresa indescritível. “Todavia, meu júbilo do primeiro instante foi substituído pela timidez. Enquanto nos debatemos na lida material, quase nunca nos recordamos de que somos seguidos pelo testemunho do plano espiritual, nos mínimos atos da existência. Falamos, com referência aos Espíritos, com a desenvoltura das crianças que se reportam aos pais a propósito de insignificantes brinquedos. Senti-me repentinamente envergonhado.

“Quantos sacrifícios exigira daqueles abnegados amigos?

“Apesar do natural acanhamento que a presença deles me infligia, tudo fiz por levantar-me, de modo a recebê-los com a veneração que mereciam. Tentei, porém, debalde erguer-me.

“Percebendo-me a intenção, abeiraram-se de mim.

“Cumprimentaram-me com palavras confortadoras de boas-vindas.

“Com gentileza, explicou-me Bezerra que o processo liberatório corria normal, que me não preocupasse com as delongas, porque a existência que eu desfrutara fora dilatada e ativa. Não era possível - disse, bondoso - efetuar a separação do organismo espiritual com maior rapidez. Esclareceu também que o ambiente estava impregnado de certa substância que classificou por “fluidos gravitantes”, desfavorecendo-me a libertação.

“Mais tarde, vim a perceber que os objetos de nosso uso pessoal emitem radiações que se casam às nossas ondas magnéticas, criando elementos de ligação entre eles e nós, reclamando-se muito desapego de nossa parte, a fim de que não nos prendam ou perturbem.

“ Após instruir-me, benévolo, recomendou-me Bezerra esquecesse o retraimento em que me refugiara, confiando-me a pensamentos mais elevados, de maneira a colaborar com ele para que me subtraísse ao decúbito dorsal.

“Pus-me a refletir na infinita bondade de Jesus, enquanto o dedicado amigo me aplicava passes, projetando sobre mim, com as mãos dadivosas, abundantes jatos de luz.

“Ao término da operação, acentuara-se-me a resistência.

“A rigor, não pude levantar-me, nem falar. Ambos os benfeitores, porém, seguidos de Marta, que nos observava com visíveis mostras de contentamento, retiraram-me do leito, determinando que me amparasse a eles para uma jornada de repouso.

“– “É necessário sair de algum modo - acentuou Bezerra, em tom grave -, conduzi-lo-emos à praia. As vibrações marítimas serão portadoras de grande bem ao reajustamento geral.”

“Abracei-me aos devotados obreiros da caridade, com esforço e, não obstante verificar que o derradeiro laço ainda me atava às vísceras em descontrole, afastei-me da zona doméstica, reparando que eu era por eles rapidamente conduzido à beira-mar.

“A excursão, embora de alguns passos somente, apesar de realizada com o auxílio de energias alheias, agravou-me o abatimento. Contudo, não perdera o gosto de observar, tamanhas as surpresas que se sucediam.

Recordando a ansiedade com que sempre aguardara na Terra as descrições do momento da morte, por parte de companheiros que me haviam antecedido, buscava fixar todas as particularidades da situação, na esperança de transmitir notícias aos irmãos da retaguarda.

“Aquele contacto inesperado com a Natureza impunha-me, porém, singular renovação. Os remanescentes das dores físicas desapareceram. A ausência de certas impressões desagradáveis ampliava-me a apatia. Achava-me intensamente aliviado, conquanto mais fraco.

“Irresistível desejo de dormir assaltou-me.

“Bezerra, Andrade e Marta eram benfeitores e expressavam a vida diversa em que eu penetraria doravante. Com certeza, guardariam mil informações preciosas que eu esperava, curioso e feliz, mas, como vencer o sono a pesar-me no cérebro?

Extenuado, vacilante, notei que não envergava as mesmas peças que usava habitualmente no leito. Envolvia-me vasto roupão claro, de convalescente.

“Tentei indagar; entretanto, a fraqueza dos órgãos vocais prosseguia sem variações. Era preciso aceitar os recursos quais se me ofereciam. Não adiantava qualquer interrogação. Indispensáveis a serenidade e a paciência.

“Perante o mar, diferençava-se-me a posição orgânica. Aquelas bafagens de ar fresco, que eu recebia encantado, regeneravam-me as forças. Pareciam portadoras de alimento invisível. Inalando-as, permanecia singularmente sustentado, como se houvera sorvido caldo substanciosa.

“Marta, agora sentada, oferecera-me o regaço acolhedor, acariciando-me a fronte.

“Notei que o irmão Andrade comentava as virtudes do mar no reerguimento das energias do perispírito. Referia-se a casos repetidos de socorro a irmãos recém-desencarnados, conduzidos com êxito à frente das águas.

“Desenvolvia o máximo esforço para registrar-lhe as impressões, quando o benemérito amigo me dirigiu a palavra, cuidadoso, aconselhando-me o sono pacifico e restaurador.

“Não deveria reagir contra o repouso – disse-me fraternal –, e acrescentou que não convinha sacrificar necessidades da alma à curiosidade, embora nobre. Teria tempo para observar e aprender muito e, pelo menos durante algumas horas, não poderia furtar-me ao descanso imprescindível.

“Compreendi o alcance do conselho e obedeci. Entreguei-me sem resistência e perdi a noção de espaço e tempo no sono abençoado e reparador.

“Despertando, dia alto, não podia precisar o tempo curto em que repousara.

Continuava a filha ao meu lado, mas de ambos os benfeitores não havia sinal. Notificou-me Marta que se haviam ausentado, porém não tardariam. Confiaram-me a ela, enquanto me aquietara; contudo estariam junto de mim, em breves minutos.

“Sentia-me outro homem. Movimentei os braços e ergui-me sem dificuldade. Tentei falar, e que alegria experimentei! Entendi-me com a filha querida, à vontade. Explicou-me que eu não havia repousado quanto seria de desejar e que voltaria ao descanso na primeira oportunidade. Indagou, em seguida, se me achava amedrontado, e, como lhe demonstrasse a firmeza de ânimo que me possuía, cientificou-me de que Bezerra, em breves minutos, cortaria os derradeiros laços que me retinham ainda, de certa forma, aos envoltórios carnais, consultando-me, ao mesmo tempo, se me não inspiraria temor assistir, de algum modo, ao enterramento dos meus despojos.

“Respondi-lhe com o meu interesse. Tudo o que eu pudesse aprender de novo representaria enriquecimento de observação.

“Em verdade, animavam-me outras disposições. Guardava a idéia de haver rejuvenescido. Toquei meu veículo novo. Eu era o mesmo, dos pés à cabeça. Coração e pulmões funcionavam regulares. Fascinava-me, porém, acima de tudo, o novo aspecto da paisagem. Casas, vegetação e o próprio oceano pareciam coroados de substância colorida. Que sugestões surpreendentes em torno! A claridade solar, em derredor, revelava maravilhosos cambiantes.

“Informou-me Marta de que enquanto a nossa mente funciona, sob determinadas condições, vemos somente alguns aspectos do mundo; e porque eu interrogasse se todos os desencarnados se surpreendiam com as visões que me encantavam os olhos, respondeu negativamente. Muitos libertos da disciplina física – esclareceu – conservam tão fortes ligações com os interesses humanos que a visão não se lhes modifica, de pronto, e prosseguem vendo a Terra, nas mesmas expressões em que a deixaram.

“Era prodigioso o quadro!

“Senti forte impulso de prosternar-me, em sinal de reconhecimento à Majestade Divina.

“Tão grande leveza caracterizava agora o meu organismo que, contemplando, enlevado, as águas próximas, nelas adivinhei pesadíssimo elemento. Pensei concomitantemente que, se eu tentasse, talvez conseguisse caminhar sobre as ondas líquidas, aureoladas, ao meu olhar, de sublime coloração.

“Registrando-me o ânimo, a querida filha mostrou-se satisfeita. Desde o primeiro momento de nosso reencontro, Marta revelava ansiedade de ver-me tranquilo e contente.

“Dispúnhamo-nos a deixar o abrigo a que nos refugiáramos, quando percebi que me encontrava em trajes impróprios. Arraigado à idéia de que seria visto por amigos encarnados, não ocultei um gesto de aborrecimento.

“À distância do leito, aquele roupão alvo não deixava de ser escandaloso.

“Marta que me seguia as reflexões, sorridente, vestia-se com apurado gosto.

“Ia expor-lhe os receios que me assaltavam, quando se adiantou, asseverando que as preocupações do momento me atestavam as melhoras.

“– Um homem desalentado não pensa em roupa – disse-me alegremente.

“Acrescentou que Bezerra e o Irmão Andrade não se demorariam e que a solução do problema fora prevista na véspera.

“De fato, transcorridos alguns minutos, chegaram, atenciosos. A possibilidade de endereçar-lhes a palavra encheu-me de imenso júbilo. Abracei-os reconhecidamente.

“Trouxeram-me um costume cinza, muito semelhante aos que eu aí preferia no verão.

“O Irmão Andrade ajudou-me a vesti-lo.

“Mais alguns instantes e, entre os dois benfeitores que me amparavam lado a lado, oferecendo-me os braços, afastamo-nos da praia.

“Enorme o movimento nas vias públicas. A mesma diferença que assinalara no mar, nas plantas e no casario, notava nas pessoas. Cada qual se revestia de halo diferente. Não me sentia, contudo, disposto a formular indagações. Assombrava-me com a locomoção própria e esse problema naturalmente solucionado bastava, por enquanto, à minha capacidade de analisar. Andava, sem grande desenvoltura; todavia, a lentidão de meus passos obedecia à inexperiência e não a qualquer impedimento por parte do corpo, que reconhecia leve e ágil.

“Aproveitaria o momento para acentuar observações nesse sentido, quando apressada senhora, sobraçando embrulho de vastas proporções, investiu indiferentemente contra nós.

“Grande foi o abalo para mim. Recuei, num movimento instintivo, temendo o atrito, mas não houve tempo. A dama atravessou-nos o grupo, sem dar conta de nossa presença.

“Assustado, procurei o olhar dos companheiros. Todos me fitavam sorridentes.

“– Este, meu caro Jacob – falou Bezerra, bem-humorado –, é o novo plano de matéria, que vibra em graduação diferente.

“– Passou por nós, sem perturbar-nos – exclamei.

“– Por nossa vez, não a perturbamos também – acentuou o irmão Andrade, satisfeito.

“O incidente chocara-me. Via-me perfeitamente integrado no antigo patrimônio orgânico.
“– Não estaremos num corpo de ilusão? – ousei interrogar. Bezerra esclareceu, delicado:

“– O poder da vida, na ilimitada Criação de Deus, é infinito, e a mulher que passou despercebidamente por nós, cujo veículo de carne caminha para a morte, poderia fazer a mesma pergunta.

“A pequena ocorrência dava-me bastante material à reflexão. Gostaria de trocar comentários e propor questões diversas; todavia, o meu abatimento ainda era grande.

“Deixei-me, pois, conduzir sem relutância, de imprevisto a imprevisto.”

“(....) Em muitas ocasiões colaborei nos serviços de socorro aos recém-desencarnados, mormente nas preces memorativas, mas estava longe de calcular as lutas de um “morto”.

“Amargurado e aflito, qual me achava, ponderei os sofrimentos dos que abandonaram a experiência física sem qualquer preparação. Se eu, que consagrara longos anos aos estudos espiritualistas, encontrava óbices tão grandes, que não ocorreria aos homens comuns, que não cogitam dos problemas relativos à alma? Ali, à frente de meus próprios amigos, sentia-me num torvelinho de contraditórias sensações. Para quem apelar?

“Marta afagou-me a cabeça exausta e pediu-me calma. Esclareceu que as dificuldades eram justas. Muita gente se despede do mundo carnal sem obstáculos e sem desagradáveis incidentes. Inúmeras almas dormem longuíssimos sonos, outras nada percebem, na inconsciência infantil em que vazam as impressões. Comigo, porém, a situação se modificava. Adestrara a mente para enfrentar a grande transição, no campo de serviço ativo a que me dedicara. Convivera com os problemas do espírito, durante muito tempo, em esforço diário. Fizera relações extensas entre encarnados e desencarnados. E não poderia evitar que perante o corpo inerte se concentrassem manifestações mentais heterogêneas. Nem todos os pensamentos ali congregados traduziam amor e auxílio fraternais. As opiniões a meu respeito divergiam entre si, formando correntes de força menos simpáticas. Alguns conhecidos me atiravam flores que eu não merecia, ao passo que outros me crivavam de espinhos dilacerantes. Situava-me, pois, num quadro de impressões complexas.

“As informações procediam da filha querida, em suaves esclarecimentos.

“Acrescentou que não devia preocupar-me em excesso. A perturbação era passageira. Quando se dispersassem as atenções centralizadas no funeral, respiraria contente.

“Contrafeito, registrei as explicações, meditando no ensinamento que recebia.

“A vida real para mim, agora, era a do espírito, a que recomeçava com a extinção da carcaça física.

“Que desejo experimentei de materializar-me diante de todos, rogando a esmola da oração sincera! Como suspirei pela concessão de uma oportunidade de solicitar desculpas pelas minhas fraquezas! Se os amigos presentes me esquecessem os erros humanos e me auxiliassem com a prece, naturalmente o equilíbrio me beneficiaria imediatamente. Vigorosos recursos me sustentariam o coração. Mas, era tarde para ensinar atitudes íntimas, de caridade e perdão.

“Pensei nos que haviam partido, antes de mim, experimentando as aflições que me assaltavam, e consolei-me. E não me esqueci de que os encarnados a ajuizarem com tanta facilidade, relativamente à minha situação, também seriam chamados, depois, à verdade espiritual, tanto quanto ocorria a mim mesmo.

“Não me cabia reagir inutilmente por intermédio da angústia. O tempo é o nosso abençoado renovador.

“Mais alguns instantes escoaram difíceis, quando inopinado abalo me revolveu o ser. Supus haver sido projetado a enorme distância. O Irmão Andrade e Marta, naturalmente prevenidos, ampararam-me com mais força.

“Confesso que o choque me assaltou com tão grande violência que julguei chegado o momento de “outra morte”.

“Dentro em pouco, no entanto, o coração se refez, equilibrou-se a respiração e Bezerra surgiu, sorridente, a indagar se o desligamento ocorrera normal.

“Abraçaram-me os três, satisfeitos.

“Explicou-me o respeitável benfeitor que, até ali, meu corpo espiritual fora como que um “balão cativo”, mas doravante disporia de real liberdade interior. Pensaria com clareza, movimentar-me-ia sem obstáculos e deteria faculdades mais precisas.

“Com efeito, não obstante sentir-me enfraquecido e sonolento, guardava mais segurança. Meus olhos e ouvidos, principalmente, registravam imagens e sons, com relativa exatidão. As perturbações da hora não me afetavam com a intensidade de minutos antes.

“Esclareceu Bezerra que, na maioria dos casos, não seria possível libertar os desencarnados tão apressadamente, que a rápida solução do problema liberatório dependia, em grande parte, da vida mental e dos ideais a que se liga o homem na experiência terrestre. Recomendou-me observar por mim mesmo as transformações de que era objeto.

“Examinei-me, com atenção, e reparei efetivamente que, no íntimo, me achava fortalecido e remoçado, sem a carga de mazelas fisiológicas.

“Conseguia locomover-me sem auxílio, embora imperfeitamente. Inalava o ar com alegria e Marta notou que meu júbilo seria maior e minha sensação de leveza mais fascinante, quando eu pudesse respirar o oxigênio de cima, qual nadador que bebe a água cristalina da corrente purificada, distante do tisnado líquido das margens.

“Francamente, a morte do corpo fora milagroso banho de rejuvenescimento. Sentia-me alegre, robusto e feliz.

“Readquirindo minhas possibilidades de analisar com exatidão, passei a refletir nos problemas de ordem material.

“Como se fixaria o futuro doméstico? Que providências mobilizar a benefício de todos? Tais indagações como que me requisitavam a mente a plano diverso.

“Faleciam-me as forças de novo.

“Bezerra percebeu o que se passava, bateu-me nos ombros amigavelmente, e aconselhou:

“– Você conhece agora, mais que nunca, o poder do pensamento. Procure o Alto.

“Compreendi a referência e modifiquei-me interiormente.”

Como se vê, é um extraordinário relato de todo o processo de desencarnação, de onde excluímos a fase do velório e do enterramento, para nos fixar tão-somente no fato da desencarnação em si.

Naturalmente, esse processo pelo qual passou o autor não se constitui em padrão, em modelo comum de desencarnação, Sabemos que não há uma igual a outra, variando de acordo com a elevação do Espírito e as circunstâncias da morte.

Vamos a seguir transcrever um outro fato que está descrito no livro Obreiros da Vida Eterna, psicografada por Francisco Cândido Xavier, pelo Espírito André Luiz, 18 edição FEB, e que mostra características bem diversas:

“– Não convém que Dimas fale, agora, aos parentes. Formularia, talvez, solicitações descabidas.

“Indicou o desencarnante e comentou, sorrindo;

“– Noutro tempo, André, os antigos acreditavam que entidades mitológicas cortavam os fios da vida humana. Nós somos Parcas autênticas, efetuando semelhante operação...

“E porque eu indagasse, tímido, por onde iríamos começar, explicou-me o orientador:

"– Segundo você sabe, há três regiões orgânicas fundamentais que demandam extremo cuidado nos serviços de liberação da alma: o centro vegetativo, ligado ao ventre, como sede das manifestações fisiológicas; o centro emocional, zona dos sentimentos e desejos, sediado no tórax, e o centro mental, mais importante por excelência, situado no cérebro.

“Minha curiosidade intelectual era enorme. Entendendo, porém, que a hora não comportava longos esclarecimentos, abstive-me de indagações.

“Jerônimo, todavia, gentil como sempre, percebeu-me o propósito de pesquisa e acrescentou:

“– Noutro ensejo, André, você estudará o problema transcendente das várias zonas vitais da individualidade.

“Aconselhando-me cautela na ministração de energias magnéticas à mente do moribundo, começou a operar sobre o plexo solar, desatando laços que localizavam forças físicas. Com espanto, notei que certa porção de substância leitosa extravasava do umbigo, pairando em torno. Esticaram-se os membros inferiores, com sintomas de esfriamento.

“Dimas gemeu, em voz alta, semi-inconsciente.

“Acorreram amigos, assustados. Sacos de água quente foram-lhe apostas nos pés. Mas, antes que os familiares entrassem em cena, Jerônimo, com passes concentrados sobre o tórax, relaxou os elos que mantinham a coesão celular no centro emotivo, operando sobre determinado ponto do coração, que passou a funcionar como bomba mecânica, desreguladamente. Nova cota de substância desprendia-se do corpo, do epigastro à garganta, mas reparei que todos os músculos trabalhavam fortemente contra a partida da alma, opondo-se à libertação das forças motrizes, em esforço desesperado, ocasionando angustiosa aflição ao paciente. O campo físico oferecia-nos resistência, insistindo pela retenção do senhor espiritual.

“Com a fuga do pulso, foram chamados os parentes e o médico, que ocorreram, pressurosos. No regaço maternal, todavia, e sob nossa influenciação direta, Dimas não conseguiu articular palavras ou concatenar raciocínios.

“Alcançáramos o coma, em boas condições.

“O Assistente estabeleceu reduzido tempo de descanso, mas volveu a intervir no cérebro. Era a última etapa. Concentrando todo o seu potencial de energia na fossa romboidal, Jerônimo quebrou alguma coisa que não pude perceber com minúcias, e brilhante chama violeta-dourada desligou-se da região craniana, absorvendo, instantaneamente, a vasta porção de substância leitosa já exteriorizada. Quis fitar a brilhante luz, mas confesso que era difícil fixá-la, com rigor. Em breves instantes, porém, notei que as forças em exame eram dotadas de movimento plasticizante. A chama mencionada transformou-se em maravilhosa cabeça, em tudo idêntica à do nosso amigo em desencarnação, constituindo-se, após ela, todo o corpo perispiritual de Dimas, membro a membro, traço a traço. E, à medida que o novo organismo ressurgia ao nosso olhar, a luz violeta-dourada, fulgurante no cérebro, empalidecia gradualmente, até desaparecer, de todo, como se representasse o conjunto dos princípios superiores da personalidade, momentaneamente recolhidos a um único ponto, espraiando-se, em seguida, através de todos os escaninhos do organismo perispirítico, assegurando, desse modo, a coesão dos diferentes átomos, das novas dimensões vibratórias.

“Dimas - desencarnado elevou-se alguns palmos acima de Dimas - cadáver, apenas ligado ao corpo através de leve cordão prateado, semelhante a sutil elástico, entre o cérebro de matéria densa, abandonado, e o cérebro de matéria rarefeita do organismo liberto.

“A genitora abandonou o corpo grosseiro, rapidamente, e recolheu a nova forma, envolvendo-a em túnica de tecido muito branco, que trazia consigo.

“(....) – Minha irmã pode conservar o filho à vontade até amanhã, quando cortaremos o fio derradeiro que o liga aos despojos, antes de conduzi-la a abrigo conveniente. Por enquanto, repousará ele na contemplação do passado, que se lhe descortina em visão panorâmica no campo interior. Além disso, acusa debilidade extrema após o laborioso esforço do momento. Por essa razão, somente poderá partir, em nossa companhia, findo o enterramento dos envoltórios pesados, aos quais se une ainda pelos últimos resíduos.”

(...) “Duas horas antes de organizar-se o cortejo fúnebre, estávamos a postos.

“A residência de Dimas enchia-se de pessoas gradas, além de apreciável assembléia de entidades espirituais.

“Jerônimo, resoluto, penetrou a casa, seguido de nós outros. Encaminhou-se para o recanto onde o recém-desencarnado permanecia abatido e sonolento, sob a carícia materna. Reparei que o médium liberto tinha agora o corpo perispiritual mais aperfeiçoado, mais concreto. Tive a nítida impressão de que através do cordão fluídico, de cérebro morto a cérebro vivo, o desencarnado absorvia os princípios vitais restantes do campo fisiológico. Nosso dirigente contemplou-o, enternecido, e pediu informes à genitora, que os forneceu, satisfeita:

“– Graças a Jesus, melhorou sensivelmente. É visível o resultado de nossa influência restauradora e creio que bastará o desligamento do último laço para que retome a consciência de si mesmo.

“Jerônimo examinou-o e auscultou-o, como clínico experimentado. Em seguida, cortou o liame final, verificando-se que Dimas, desencarnado, fazia agora o esforço do convalescente ao despertar, estremunhado, findo longo sono.

“Somente então notei que, se o organismo perispirítico recebia as últimas forças do corpo inanimado, este, por sua vez, absorvia também algo de energia do outro, que o mantinha sem notáveis alterações. O apêndice prateado era verdadeira artéria fluídica, sustentando o fluxo e o refluxo dos princípios vitais em readaptação. Retirada a derradeira via de intercâmbio, o cadáver mostrou sinais, quase de imediato, de avançada decomposição.

“A análise do cadáver de Dimas causava tristeza.

“Inúmeros germens microscópicos entravam, como exércitos vorazes, em combate aberto, libertando gases ocultos que revelavam o apodrecimento dos tecidos e líquidos em geral. Os traços fisionômicos de defunto achavam-se alterados, degenerando-se também a estrutura dos membros. Os órgãos autônomos, por seu turno, perdiam a feição característica, já tumefactos e imóveis.

“Em compensação, Dimas - livre, Dimas - espírito, despertava. Amparado pela genitora, abriu os olhos, fixou-os em derredor, num impulso de criança alarmada e chamou a esposa, aflitivamente. Dormira em excesso, mas alcançara sensível melhora. Sentia a casa cheia de gente e desejava saber alguma coisa a respeito. A mãezinha, porém, afagando-o brandamente, acalmou-o, esclarecendo:

“– Ouça, Dimas: A porta pela qual vocês se comunicava com o plano carnal, somático, cerrou-se com seus olhos físicos. Tenha serenidade, confiança, porque a existência, no corpo físico, terminou.

“O desencarnado não dissimulou a penosa impressão de angústia e fitou-a com amargurado espanto, identificando-a pela voz, um tanto vagamente.

“– Não me reconhece, filho?

“Bastou a pergunta carinhosa, pronunciada com especial inflexão de meiguice, para que o desencarnado se abraçasse à velhinha, gritando, num misto de júbilo e sofrimento:

“– Mãe! minha mãe!... será possível?”

Este processo liberatório tem a novidade da reestruturação do corpo espiritual a partir do material orgânico do perispírito trabalhado pelo Espírito, resumido na luz liberada pelo cérebro no momento da ruptura do último laço.

No caso anterior, o do Irmão Jacob, o corpo espiritual não necessitou desse recurso e, como vimos, de repente, ele se sentiu em duplicata.

Não podemos, ainda aqui, perder de vista que o desencarnante era médium espírita com larga faixa de serviços prestados aos semelhantes e, não obstante, não conseguiu, por si mesmo, mentalizar o corpo espiritual antes da ruptura dos últimos elos que o prendiam ao corpo, como no caso anterior, sendo necessário que os mecanismos automáticos da Natureza procedessem à sua reestruturação, como está acima descrita.

De um modo geral, pois, a desencarnação do Espírito encarnado está sujeita a muitos fatores que lhe condicionam o processo, com predominância da elevação espiritual e das circunstâncias da morte.

Os dois livros de que nos servimos para estas considerações contêm valiosos subsídios para o entendimento do fenômeno da morte física e consequente desencarnação do Espírito e, assim, devem ser leitura obrigatória para todos nós que, embora sem data marcada, pelo menos de nosso conhecimento, estamos irremediavelmente condenados à morte.



Matéria extraída da Revista Espírita ano II fevereiro e março de 1996 n 2 e 3, escrita por Salvador Gentile, IDE.
Link da Página: http://www.editoraideal.com.br/ler_materia.php?id=101
(Publicado em 26/04/2010)

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