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Estudando o Espiritismo
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quinta-feira, 13 de agosto de 2015
CABOCLOS E PRETOS VELHOS NO ESPIRITISMO
CABOCLOS E PRETOS VELHOS NO ESPIRITISMO
Certo dia reparei em um companheiro de atividades, cheio de dedos ao falar abertamente do trabalho que realizam a Casa dos Espíritos Editora e a instituição parceira que lhe deu origem, a Sociedade Espírita Everilda Batista. A vergonha ou o receio que ele tinha devia-se especificamente à bandeira hasteada por ambas as casas, na qual declaram positivamente:
"Trabalhamos com pretos-velhos e caboclos."
- Mas o que o movimento espírita vai pensar? – perguntava se. – Uma casa espírita aparecer com um livro como Aruanda? Que casa espírita lança uma obra associada a pretos-velhos e caboclos?
- Entendo suas apreensões – respondi. – Acontece que a nossa sina começou há muito tempo, desde a publicação de Tambores de Angola. Quando lançamos o livro você se lembra, muitos disseram que havíamos nos tornado umbandistas, agora não há como voltar atrás.
- Então! Imagine uma continuação…
- Mas alguém precisa falar contra o preconceito. Só porque o autor espiritual aborda o tabu umbanda e espiritismo quer dizer que deixamos de ser espíritas? Só porque lançamos um livro que fala de pretos-velhos e caboclos, que tanto têm feito por nós, espíritas, tomamo-nos "antidoutrinários"? Faça-me o favor! Não perdemos a definição espírita de nossas atividades, porque espírita e o método de trabalho. Kardec é bom-senso, e o codificador debatia qualquer assunto, sem medo nem idéias preconcebidas.
Quanto aos espíritos, para eles não há barreiras religiosas: onde está o códice que informa a aparência correta de um ”espírito espírita” ? Kardec fala que é o conteúdo da comunicação que importa, e não a aparência do espírito, que pode ser forjada com facilidade.
As preocupações do companheiro de trabalho, no entanto, não eram infundadas. Com efeito, tudo que se relaciona à cultura religiosa do negro costuma ser assunto controverso, especialmente no meio espírita. Não obstante tanta relutância tenha fortes raízes históricas, é hora de começar a arrancá-las.
Aculturação
O espiritismo de Allan Kardec floresceu no final do séc. XIX, entre as camadas mais abastadas da população brasileira, em meio às elites intelectuais e econômicas. O que era de esperar, tendo em vista que e uma doutrina filosófica de implicações morais e científicas, escrita em idioma estrangeiro, oriunda da França, país que à época detinha a hegemonia cultural e ditava as regras do que era chie.
O processo de aculturação do espiritismo, ao aportar num país de características tão diversas quanto o Brasil, também era previsível, senão necessário. Além da tradução para o português, era crucial assimilar os aspectos que compunham a história e a cultura brasileiras, caso houvesse a intenção de disseminar a nova doutrina. E havia, pelo menos da parte dos espíritos que coordenam os destinos da nação.
Espírito também tem cor (!)
Uma das questões que em breve viriam à tona diz respeito à feição ou à roupagem fluídica dos espíritos presentes nas reuniões mediúnicas. Para onde iriam os espíritos de negros e indígenas que desencarnavam na psicosfera brasileira? Além dos médicos, filósofos, advogados e demais intelectuais, também morriam os pobres do povo e os pretos, recém-alforriados pela Lei Áurea de 1888.
Que critérios estabelecer?
Nas páginas de Kardec, nada sobre pretos-velhos ou caboclos, pois que não havia nem emigração das colônias africanas para a França. No máximo, o depoimento de um soldado, morto nos campos de batalha das guerras nacionalistas do continente europeu.
Como proceder, então, com essa gente desencarnada?
Assim como a prática de capoeira outrora foi considerada crime, prevista no Código Penal, falar em preto, ainda mais velho, e assunto proibido em muitos locais. Ouvem-se espíritas a debater teorias: "Se der ’estrimilique’, se errar na conjugação verbal e fizer menção a arruda e guiné", que são as ervas da medicina de que dispunha a população, "é espírito atrasado".
A lógica absurda tem justificativa. Afinal, como receber orientação daqueles mesmos que mandávamos amarrar no pelourinho e durante tanto tempo foram comercializados na praça pública, como gado? As imagens do passado espiritual estão fortemente impressas em nossas mentes.
Espiritismo cana-de-açúcar
Às vezes chego a me sentir como se estivéssemos fazendo espiritismo num engenho do Brasil colonial. E que, resquício da época da escravidão, subsiste um certo pavor de se misturar com qualquer coisa que venha dos negros.
É o advento da senzala na realidade espiritual.
Negros não prestam para assumirmos como mentores e reconhecermos como espíritos elevados. Para divulgarmos sem barreiras: "Eles nos têm muito a ensinar com sua simplicidade e sabedoria popular", também não.
No máximo, para fazer um "descarrego" no ambiente – ops!, limpeza energética – ou para lidar com os "obsessores" rebeldes ao diálogo tradicional.
Tudo na mais perfeita discrição. O quanto for possível, sem alarde, para não darmos o braço a torcer, admitindo que, nessa hora, não são os médicos nem os padres e as irmãs de caridade que atuam. Não são eles que se dirigem às profundezas do umbral ou do astral inferior para abordar QGS das trevas.
Ah! E se aparecer um Zé Grosso ou um Palminha, espíritos hoje nacionalmente conhecidos e reverenciados no meio espírita, esqueçamos que eles foram cangaceiros do bando de Lampião, o que quer dizer: nordestinos, provavelmente analfabetos, acostumados ao lombo do jegue e ao chapéu de couro – e certamente à pele escura e queimada de sol. Mesmo que trabalhem com Joseph Gleber, Fritz Hermman ou Sheilla, fechemos os olhos para o fato de que seus nomes destoam da característica européia dos demais e continuemos a nos enganar.
Mas se negros e mulatos não prestam para aparecer e serem reconhecidos, não agüentamos viver sem eles – nem ontem, nem hoje.
Na época colonial, o negro não sabia de nada, mas a cana-de-açúcar que produzia a riqueza era plantada, colhida e beneficiada por suas mãos. Não eram tidas como gente, mas foram as mulheres pretas que criaram os filhos, amamentaram os bebês, cuidaram da casa, do jardim e das roupas, prepararam a comida que serviam aos convidados.
Na atualidade, mesmo sem gozar do reconhecimento amplo – que não é seu objetivo -, as mães e os pais velhos dão importante contribuição nos centros espíritas "kardecistas" de todo o Brasil. Aceitos ou não, já se acostumaram com a discriminação - não é isso que importa para eles.
Percebidos ou não pelos médiuns da casa-grande, são os caboclos que manipulam o bioplasma das ervas, são os pretos-velhos que preparam o ectoplasma utilizado em reuniões de cura e tratamento espiritual. São eles que, por vezes, detêm a sabedoria simples que tocará aquele espírito furioso, revoltado com a fome, com o abandono e a chibata que experimentou e que muitos de nossos médiuns, doutrinadores e mentores desconhecem.
São eles que farão frente aos chefes das trevas, impondo-lhes o respeito, o limite e a autoridade moral, o que uma alma mais doce ou delicada não poderia fazer. Acaso estou enganado ou situações como essas só ocorrem em terreiros de umbanda?
É ou não é o perfeito engenho, a estrutura social da colônia que se reproduz de modo atávico e ancestral, projetando-se até na questão espiritual?
De Paris para o Pelourinho
O primeiro centro espírita com base nos livros de Kardec de que se tem notícia no país foi fundado em Salvador, na Bahia de Todos os Santos, ainda no séc. XIX. Capital do Brasil colonial até 1763, a cidade ostenta até hoje o belo Elevador Lacerda, que conduz à Cidade Baixa e ao mercado em que se vendiam negros.
Está aí um retrato fiel do ambiente espiritual brasileiro: Allan Kardec posto justo ao lado do Pelourinho.
Talvez mera coincidência, talvez uma forma de a vida nos lembrar do compromisso que temos com os povos negro e indígena – explorados e massacrados pela civilização dos colonizadores e que deve ser resgatado desde já, também no trato com o além-túmulo.
Que cesse o preconceito e que vivam as curimbas e as mandingas do preto-velho, a garra e as ervas dos caboclos. Que viva a atmosfera espiritual do Brasil, onde cada um mantém seu método de trabalho, mas sabe respeitar e auxiliar onde quer que seja preciso, com espírito de equipe e de solidariedade. Que vivam os médicos alemães, as freiras e os padres católicos, os árabes e indianos de turbante, os soldados de Roma e todas as falanges e nações que, na pátria espiritual, se reúnem em torno da insígnia de Allan Kardec – e, sobretudo, sob a bandeira do Cristo, de amor e fraternidade.
(Spiritus n.º 62, de junho/julho de 2004 – Periódico editado pela Casa dos Espíritos Editora)
Retirado do livro Aruanda – Robson Pinheiro
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