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domingo, 27 de junho de 2010
um 'anjo' com os pés assentes na terra
Austrália
por ABEL COELHO DE MORAISHoje
A baía de Sydney não é apenas conhecida pelo edifício da Ópera, pelos fogos-de-artifício que envolvem a sua ponte nem pela proximidade de belas praias. É também assinalada pela existência de um penhasco onde muitos vão para porem fim à vida. Para os dissuadir, lá está o 'anjo de Sydney'.
Don Ritchie muitas vezes teve de arriscar a sua vida para salvar a dos outros. Conhecido como o "anjo da guarda de Sydney", durante mais de meio século dedicou-se a vigiar um local à entrada do porto desta cidade australiana, o promontório The Gap, tristemente conhecido por ser um ponto procurado por aqueles que querem pôr termo à vida.
Apenas uma pequena vedação de um metro de altura bloqueia o acesso ao precipício. Só recentemente o município local pediu um subsídio ao Governo federal para edificar um muro de segurança mais elevado e outros sistemas de protecção.
O que não podia suceder em momento mais adequado: Ritchie anunciou que, aos 84 anos, vai reformar-se da sua função de "anjo da guarda".
"Creio que alguém irá aparecer para fazer o que tenho feito até aqui", disse na passada semana numa das entrevistas dadas aos jornais australianos e agências internacionais quando se soube que este antigo agente de seguros ia cessar a sua vigília ao The Gap.
Ritchie sabe por experiência própria o valor da vida e da morte. Nestes últimos anos, foi-lhe diagnosticado um cancro para o qual está a receber tratamento.
Marinheiro na sua juventude, Ritchie não segue uma qualquer estratégia psicanalítica nem sugere estar em condições de resolver os problemas e as causas de angústia na vida de cada um. "Apenas sorrio", explica. "De facto, muitos deles não querem pôr fim à vida. Querem principalmente que desapareça o sofrimento, a dor, por que estão a passar".
Por isso, Ritchie acredita que "alguém que seja capaz de se mostrar bondoso, de mostrar esperança, está em condições de ajudar muitas pessoas". É isso que ele faz: ofereço-lhes "uma alternativa" quando pergunta "se querem falar" e os convida para "tomarem um chá" na sua casa. "Às vezes aceitam." Claro que nem sempre conseguiu esse objectivo e nos seus tempos de maior destreza física foi forçado a impedir pessoas de saltarem enquanto a sua mulher, Moya, telefonava para a polícia. Numa das vezes, o próprio esteve quase a cair ao precipício, quando tentou impedir uma mulher de saltar. Se esta se tivesse lançado, ele teria caído primeiro.
Nesses tempos, Ritchie ajudava as equipas de salvamento a recuperarem os corpos dos que se lançavam do The Gap.
Para muitos, a localização da pequena moradia de dois andares deste casal com três filhas e três netos seria uma "maldição". A ideia de estar à janela e ver alguém do outro lado da rua saltar para o precipício não seria uma visão agradável. Mas para Ritchie e para a mulher é "uma bênção". "Acreditamos que é maravilhoso vivermos onde vivemos e ajudar as pessoas", diz Moya.
Isso mesmo reconheceu o Governo de Camberra ao entregar ao casal, em 2006, a Medalha da Ordem da Austrália, uma das mais importantes distinções civis.
Ritchie "não se deixa abater por ter morrido alguém. Já não se lembra do primeiro suicídio a que assistiu", diz a mulher. "Ele acredita que faz o melhor possível por cada pessoa, e quando as perde aceita que não havia nada a fazer naquele caso." Mas houve, pelo menos, 160 situações em que Ritchie conseguiu salvar vidas.
Num dos artigos sobre o "anjo da guarda de Sydney" era recordada uma história muitas vezes citada quando se fala do suicídio. É a história passada nos anos 70 de um homem que deixou uma mensagem no seu apartamento. Nela lia-se: "Vou andar até à ponte. Se alguém sorrir para mim durante o caminho, não saltarei." Ninguém sorriu. Aos 30 e poucos anos de idade, lançou-se da Ponte Golden Gate, em San Francisco. É esta a diferença entre a vida e a morte. É este o valor do sorriso de Don Ritchie.
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