Estudando o Espiritismo

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sábado, 7 de janeiro de 2017

BERNARDO VAI AO LANGUEDOC - Hermínio


Prometi no capítulo anterior retomar o episódio da participação de Bernardo de Clairvaux para análise mais aprofundada. Recorro, inicialmente, à Vie de Saint Bernard, abbé de Clairvaux, de Vacandard e à Histoire des cathares [1145: la mission de saint Bernard, pp. 54-56), no qual Michel Roquebert cuida do envolvimento do influente monge no problema cátaro. Estou usando delibe¬radamente o termo problema, dado que essa é a dimensão que o movimento ad¬quire dos diversos pontos de vista sob os quais for estudado e não apenas religioso, mas histórico, político, social, cultural e até económico.

Roquebert, aliás, caracteriza a missão de Bernardo no Languedoc, em 1145, de "particularmente significativa".

Bernardo já se pronunciara acerca das "heresias neomaniqueístas", como se lê em Vacandard (Tomo Segundo, pp. 206 e seg.). E nesse livro que vamos encontrar relato mais minucioso do episódio ocorrido em Colônia, narrado por Everwin, prior do convento de Steinfeld, em carta a Bernardo, como vimos.

Vários heréticos haviam sido encaminhados ao tribunal presidido pelo arcebispo. Ao serem interrogados, alguns deles "reconheceram seus erros - escreve Vacandard (p. 218) e abjuraram". Dois ou três, no entanto, contestaram formalmente as acusações que lhes foram dirigidas.

(I) Consistia essa prova em atirar a pessoa na água de um rio ou mar. Se boiasse, seria considerado inocente, na presunção de estar sob a proteção divina. Se se afogasse, era culpado.

Submetidos à prova da água fria,12 fracassaram, com o que se teria evidenciado a culpabilidade deles. Longe de se intimidar, obstinaram-se destemidamente na sustentação de suas heresias. O texto informa que facilmente os clérigos presentes repeliram a argumentação pretensamente evangélica do acusado que se fazia passar por bispo da seita (provavelmente um parfait) e o levaram a calar-se.

Os heréticos solicitaram, então, que lhes fosse permitido tomar por advogados os doutores da comunidade e que se fixassem dia e hora para debate público.

Caso seus defensores perdessem a causa, prometiam submeter-se; do contrário, preferiam morrer do que renunciar às suas convicções.

Não se sabe se lhes foi concedida a defesa solicitada, mas, após três dias de doutrinação e pressão para que abjurassem, os acusados continuavam firmes nos seus propósitos.

Irritado com essa obstinação, o povo precipitou-se sobre eles e - "a despeito da oposição do tribunal", o que é no mínimo duvidoso -, levaram os teimosos hereges para a fogueira, "onde num instante foram tomados pelas chamas".

Profundamente impressionado pela incrível coragem demonstrada pelos heréticos no enfrentamento do suplício, Everwin resolveu escrever a Bernardo de Clairvaux, pedindo-lhe uma explicação para o que lhe parecia inexplicável.

Na melhor tradição de sua época e com a força de sua autoridade, Bernardo respondeu ao perplexo abade de Steinfeld que o demônio havia infundido neles aquela determinação, da mesma forma pela qual inspirara a Judas a disposição para se enforcar.

Não deixou, contudo, de censurar o procedimento adotado. A seu ver, com aquele gesto impulsivo, o povo nada conseguira senão produzir falsos mártires, e nisso havia ultrapassado os limites. "Se aprovamos o zelo religioso demonstrado - escreve Bernardo - não aprovamos de nenhum modo o que foi feito, dado que a fé deve ser obtida pela persuasão e não pela imposição." Se você prefere o latim: "Fides suadenda est, non imponenda." A frase caracteriza uma atitude humanitária, apela à tolerância e marca posição, mas nem sempre ou quase nunca foi praticada, especialmente naqueles duros tempos do crê ou morre.

O autor aproveita o ensejo desse episódio para analisar o pensamento de seu biografado em face dos confrontos heréticos versus Igreja católica. Como a Inquisição, de tenebrosa memória, somente seria instituída oficialmente pelo papa Gregório IX, cerca de um século depois, em 1233, o termo, no texto de Vacandard, deve ser tomado no seu sentido primitivo de mera inquirição ou averiguação.

Já há algum tempo Bernardo vinha atento ao problema das heresias. Censurava abertamente os bispos e mesmo os nobres leigos pelo descuido ou indiferença ante "as raposas que rondavam a vinha do Senhor". Queria das autoridades presença mais atuante na defesa da Igreja, mas não se esquece de recomendar que os culpados porventura descobertos sejam tratados com doçura. Que sejam conquistados pela força dos argumentos e não pelo poder das armas. Que seus erros sejam refutados e, se possível, reconduzidos ao seio da Igreja católica. Se persistissem em suas heresias, que fossem até excomungados, mesmo que necessário aprisioná-los, a fim de impedir que prosseguissem em sua atividade destrutiva. A obrigação dos que dispõem da espada é a de conter os malfeitores.

Em suma [conclui o futuro santo], a Igreja e o Estado cristão têm, cada um, seus deveres nitidamente estabelecidos : a Igreja defende seus dogmas pela arma que lhe é própria - a palavra, e o Estado não intervém senão para proteger o bem mais precioso de sua gente - a fé, aberta ou veladamente atacada.

Vacandard - também sacerdote e autor católico, não nos esqueçamos - entende ser essa a correta e tradicional atitude da Igreja e vai buscar na história eclesiástica atitudes semelhantes à de Bernardo:
santo Agostinho, por exemplo, prescreveu a tolerância para com os heréticos de seu tempo, recomendando que fossem tratados com brandura. Mais tarde, desenvolveu o que o autor caracteriza como "uma espécie de teoria das perseguições legítimas", que incluía a famosa entrega ao braço secular (poder civil) como instrumento de intimidação, no esforço de levar o acusado a refletir melhor sobre a questão religiosa. Para ele, contudo, o procedimento tinha de ser circunscrito em bem definidas limitações. Quando lhe foi colocada a questão da pena de morte, Agostinho reagiu com "generosa indignação". "A idéia de que se pudesse derramar o sangue de um cristão em nome da Igreja lhe causava horror." (Vacandard, p. 222)

São João Crisóstomo, outra autoridade invocada pelo biógrafo de Bernardo, é de opinião que:

- "Não se deve matar o herético; fazer isto seria introduzir no mundo uma guerra imperdoável." No entender de Vacandard, Bernardo concorda com tais posições moderadas, mas a "guerra imperdoável" estava para acontecer no Languedoc, a partir de 1209, a menos de meio século após a morte de Bernardo, em 1153.

O monge de Clairvaux não teria, por certo, como impedir a espantosa Cruzada contra os cátaros, verdadeiro massacre de uma comunidade pacífica, num embate sangrento de cristãos contra cristãos. O fato de se caracterizarem os cátaros como integrantes de uma comunidade de heréticos a serem exterminados não muda a condição de que também eles eram cristãos, que simplesmente divergiam em interpretações e posturas adotadas pela Igreja, na leitura que faziam do cristianismo.

Bernardo fazia parte do sistema e também ele assumiu, por vezes, atitudes radicais e intolerantes, naquilo que lhe parecia a defesa da Igreja; concordou até, ainda que relutantemente, em colocar sua convincente oratória a serviço da ingrata causa da segunda Cruzada, empenhada na 'libertação' da Terra Santa -, mas, se dependesse dele, provavelmente a história não teria testemunhado o desolador espetáculo de crueldade promovido, em nome do Cristo, pela Cruzada contra os cátaros, no início do século 13.

Ao adotar as posturas moderadas de Agostinho, João Crisóstomo e outros, se é que a elas acrescenta algo de seu, é, ainda - no entender de Vacandard (p. 223) - para atenuar as severidades porventura contidas nelas. "É pelo menos duvidoso - acrescenta o biógrafo - que ele concorde em seguir até o fim a teoria agostiniana da perseguição moderada. Fides - repete - suadenda est, non impo-nenda." O que ele pede ao poder civil - conclui - "é a proteção à fé dos católicos contra os artifícios abertos ou secretos dos heréticos; o resto é problema da Igreja e somente a ela compete castigar os filhos indóceis ou infiéis", nos termos de seus códigos de direito eclesiástico.

Esse é o homem que vai ao Languedoc em 1145, com o objetivo de trazer de volta ao aprisco da Igreja todos os filhos e filhas transviados que lhe for possí¬vel dissuadir. Sem imposições.

Bernardo vinha da tradição de Citeaux, "ordem fundada - ensina Anne Brenon (p. 20) - com o duplo objetivo de certo despojamento no estilo e na maneira de ser em relação ao luxo e à profusão dos beneditinos, e de um engajamento regular de intelectuais dedicados à pregação ao povo cristão e sobretudo contra os heréticos".

A visita de Bernardo ao Languedoc "foi organizada - segundo Roquebert (p. 54) - por iniciativa do legado pontifício, escandalizado ante a inércia das autoridades locais e pela impunidade de que gozava principalmente Henri de Lausanne", figura notória e popular na região. (Falaremos dele, daqui a pouco.)

Roquebert se confessa em dificuldades, em seu livro de 1999, para explicar tal "permissividade" de parte do poder civil, como também, da parte do povo occitano em geral, em relação às crenças religiosas. Realmente é estranho que numa época de tanta severidade e rigidez da parte da Igreja católica, tenha sido possível criar-se no Languedoc esse clima de tolerância que, de certa forma, estava facilitando a divulgação, implantação e consolidação da 'perigosa' seita catara.

Como simples espectador do show de erudição histórica a que assistimos nos livros especializados na apaixonante saga dos cátaros, arrisco-me a oferecer uma hipótese: teria renascido ali, naquela região, verdadeira multidão de pessoas programadas para atuar em diferentes papéis no desempenho da tarefa de promover uma renovação religiosa. Não se tratava, desta vez, de simples reforma. A tônica seria uma passagem do cristianismo a limpo, um retorno às suas origens, às tontes de suas primitivas águas lustrais, que se haviam poluído irrecuperavelmente no correr do tempo. E' de se relembrar, neste ponto, a informação de que Paulo é aconselhado pelo Cristo póstumo, manifestado mediunicamente, que não deixasse de ir a Corinto para o trabalho que o aguarda, pois havia lá numerosas pessoas que se comprometeram, antes de renascer, com a tarefa da implantação do cristianismo. E o que se depreende do texto, em que o Cristo informa que existe lá grande número de pessoas predispostas ao acolhimento da doutrina e aas práticas cristãs.

De qualquer modo, a "tolerância de fato" que predominava em todo Languedoc causa certa perplexidade em Roquebert. No seu dizer, "ajusta-se mal ao que se sabe ou se acredita saber da mentalidade medieval" (p. 55). Não seria moda, essa tolerância, por um propósito deliberado de parte dos occitanos em preservar a liberdade de consciência, noção que não fora ainda concebida - "teo-razada" é a palavra de Roquebert - naquela época?

A falta de evidências que sirvam de sustentação a qualquer hipótese expli-;at:va, Roquebert sugere (p. 56) que "talvez se tratasse de um valor difuso, uma espécie de 'bem comum', nascido do longo hábito de testemunhar a convivência pacífica de diferentes religiões".

Lembra, para ilustrar sua teoria, a convivência pacífica de três correntes re-_rosas importantes, no século quinto, quando "o arianismo dos conquistadores >s se justapôs ao catolicismo romano do clero e às crenças e aos cultos dos :¦: as autóctones (nativos)".

Informa, ainda, que os judeus, particularmente numerosos nos domínios dos condes de Toulouse, conviviam há muito tempo em boa paz com os cristãos.

Na Espanha - também afetada pela 'heresia' cátara, não nos esqueçamos - cristãos e muçulmanos entendiam-se razoavelmente bem nos seus contatos econômícos e culturais.

Em suma [conclui o autor francês (p. 56)], deveríamos saber que, no Languedoc, nem todo mundo professava necessariamente a mesma religião e a diversidade de crenças talvez fosse considerada ali coisa tão natural que não se cogitava de saber em nome de quem vinham combatê-la.

Se Roquebert precisasse da minha manifestação, teria não apenas a concordância, mas o aplauso pelo seu achado histórico. A tolerância religiosa assumira no Languedoc a condição de um estado de espírito do qual talvez, conscientemente, nem se dessem conta as populações locais.

Para mais uma ilustração, Roquebert conta uma historinha verídica da melhor qualidade e que a ele próprio pareceria anacrônica, caso não houvesse sido relatada pelo cronista Guillaume de Puylaurens, historiador e sacerdote católico e, portanto, insuspeito.

Foi assim: em setembro de 1207, em debate promovido entre valdenses, cátaros e católicos em Pamiers, no condado de Foix, um nobre por nome Pons Adhémar de Roudeille declarou ao bispo Foulque, de Toulouse, que jamais acreditou que a Igreja romana tivesse contra os heréticos "argumentos tão numerosos e tão eficazes".

"Então - respondeu-lhe o prelado - por que o senhor não os expulsa de seus domínios?"

"Não podemos fazer isso - foi a resposta de Pons Adhémar. - Fomos criados juntos, temos primos entre eles e observamos que eles vivem honradamente..."

Os argumentos não seriam tão "numerosos e eficazes", como os via o cavalheiro Pons Adhémar, mas sua tolerância pelas divergências ideológicas certamente fala com eloquência do verdadeiro entendimento que ele revela ter do problema da liberdade de consciência e expressão.

E pensar que esse clima de fraterna convivência perdurava tranquilamente a menos de dois anos da Cruzada, lançada em 1209. E o caso de perguntar-se: quais eram, afinal de contas, as raposas que rondavam avinha do Senhor? Quem seriam os lobos a espiar de longe as ovelhas que pastavam mansamente na doce, quase idílica região do Languedoc?

Como assinala Zoé Oldenbourg (p. 121), na sua análise do confronto catarismo versus catolicismo, não há como espantar-se da reação da Igreja ao problema da heresia no Languedoc; ela foi, desde logo, "de uma intolerância absoluta e sem concessões". A historiadora aprecia a questão dentro de uma óptica de compreensão, se é que esta é a palavra adequada à situação, ao declarar que "o cristianismo romano não detinha o monopólio da intolerância. Uma religião forte -prossegue -, que se torna religião de Estado, oprime com toda boa-fé, porque qualquer oposição lhe parece sacrilégio e ofensa a Deus". E conclui, dizendo que tais igrejas não conseguem desembaraçar-se de seus fanáticos da mesma forma que uma pessoa não amputa o próprio braço ou a perna. Os fanáticos seriam, portanto, uma espécie de mal necessário à sobrevivência do sistema. O que estava em jogo nos confrontos era a própria vida da Igreja, o que justificaria o fanatismo. E havia muita coisa em jogo, muito poder terreno, vultosos interesses materiais, tudo isso recoberto com o manto sutil e incontestável do poder de ligar e desligar. Se as criaturas dependiam da Igreja para salvar as próprias almas do fogo do inferno, como desobedecer, contestar ou simplesmente murmurar sobre o poder civil que a Igreja exercia por si mesma e através do "braço secular"? O arsenal utilizado para obter tais resultados era amplo, variado, indiscutível e alcançava desde o camponês inculto, passando pelos artesãos, pela nascente burguesia até -negar aos nobres locais e, além, aos reis eimperadores, se e quando necessário.

A excomunhão - que, no correr do tempo, perdeu toda a eficácia como -instrumento de pressão - excluía o contestador da sociedade. Ele passava a ser como um leproso com o qual ninguém desejava ou podia manter qualquer relacionamento sem expor-se também à cólera das autoridades eclesiásticas. Era um poder de vida e morte sobre toda a comunidade, a família, os bens e títulos de la um. Inocêncio III, como vimos, simplesmente decretou que as propriedades tomadas aos barões heréticos, bem como seus títulos nobiliárquicos, passarem automaticamente para aqueles que os derrotassem. Foi assim que Simon de Monfort passou a ser conde de Toulouse, para citar apenas um exemplo.

A Igreja se tornara um Estado dentro do Estado, titular de mandato divino, -organizada para administrar a vida humana desde antes do nascimento até depois aa morte, como costumava 'provar', de textos evangélicos nas mãos. Com esses --instrumentos, manipulados com implacável obstinação e arbitrariedade, criava e mantinha um intimidador clima de tensão social, quando não de terror.

Como também esclarece Oldenbourg, a Igreja cátara não representava quaisquer perigo nem para a moral pública, nem para a vida social, ou para as autoridades civis - mas eram evidentes os riscos a que expunha a Igreja romana.

Por tudo isso, mesmo correndo risco semelhante de perder a vida, a família e os bens, eram muitos os que começaram a perceber na pregação cátara e, principalmente, no comportamento de seus líderes, a esperança de criar-se uma sociedade mais justa e descontraída, a partir de uma nova religião tolerante, compreensiva a alma. Além do mais, os representantes do clero católico, notadamente aqueles de nível hierárquico mais elevado, viviam distanciados do povão. Os cátaros, ao contrário, tinham acesso à nobreza, da qual muitos deles saíram, convertidos à heresia, sem ignorar, contudo, a convivência fraterna com os simples e destituíra, estes partilhavam suas carências e os assistiam nas dificuldades e nas doenças fossem ou não companheiros de crença. Desejavam outra ordem sóciaeconômica, na qual cada um tivesse espaço próprio e pudesse viver em liberdade e em paz com Deus, o semelhante e o mundo.

O contraste entre a compreensão e a solidariedade dos cátaros e a severidade permanentemente arbitrária e prepotente da Igreja romana contribuiu para rápido crescimento da seita.

Além do mais, os representantes da Igreja viviam na opulência, muitos deles eram senhores de ricas propriedades, titulares da nobiliarquia local, tinha seus próprios mini-exércitos. Não faltava, entre eles, os que praticassem discreta ou escancaradamente a corrupção.

A avaliação de Bernardo de Clairvaux ao chegar ao Languedoc, em 1145, é desoladora na sua eloquência.

As basílicas [escreveu ele] estão vazias de fiéis, os fiéis sem sacerdotes e os sacerdotes sem honra. Não há mais senão cristãos sem Cristo. Os sacramentos se acham vilipendiados, as festas religiosas não mais se realizam. As pessoas morrem no pecado. Priva-se às crianças da vida em Cristo ao lhes recusar a graça do batismo.

Esse lamento tem mais de uma leitura. Bernardo via as igrejas vazias e os sacerdotes desonrados não somente porque não estavam pregando e praticando o verdadeiro cristianismo, ou porque a hierarquia católica se distanciara do povo, ou ainda porque mantinha a todos sob um regime de temor, vizinho do terror, mas porque os fiéis estavam se bandeando para a heresia.

A verdade, porém - como raciocina Oldenbourg (p. 120) -, é que a Igreja não tinha como deixar de atacar duramente a heresia. A pessoa que está com a roupa pegando fogo - diz ela - lança mão de todo e qualquer meio para extinguir as chamas. Lembra que, mesmo assim, nem todos os recursos são legítimos, mas, por esse tempo, a Igreja se tornara "uma potência totalitária e, portanto, opressora e desenvolvera a tendência a considerar como legítimo aquilo que servia aos seus interesses temporais". (E aos de seus dirigentes, pode-se acrescentar.)

Foi esse o clima que Bernardo encontrou ao chegar em 1145 ao Languedoc, onde, no dizer de Vacandard (p. 224), a situação religiosa era ainda mais desoladora do que nas igrejas do Norte da França. Entendeu-se chegada a hora de Bernardo interferir como o conceituado médico que vem para a cabeceira do doente desenganado, em estado desesperador.

Não se definira, ainda, com a desejável nitidez a presença dos cátaros na região, embora lá estivesse a heresia implantada por esse tempo. As preocupações da Igreja centravam-se nos distúrbios religiosos provocados por certo Henri de Lausanne, monge itinerante, discípulo e continuador de Pierre de Bruys, caracterizado por Michel Roquebert como "cura dofinês (dauphinois), violentamente contestador", que acabou queimado vivo em Saint-Gilles, aí por volta do ano 1140.

Bernardo tivera oportunidade de escrever sobre (e contra) as heresias de Pierre e, segundo Roquebert (p. 52), conheceu pessoalmente Henri, "monge apóstata e culto", que até abrigara por algum tempo na própria comunidade de Clairvaux.

De lá, saiu novamente para a sua vida aventurosa, após ter-se retratado de suas heresias perante um Concílio reunido em Pisa. Retomou, em seguida, sua atividade subversiva, instalando-se, em torno de 1136, em Toulouse, onde a indiferença do conde Alphonse-Jourdain pela questão religiosa garantia a impunidade das diversas seitas heréticas que prosperavam na região, como as conhecidas pelos nomes de arianos e tecelões. Finalmente, em 1145, quando Bernardo iniciava sua pregação no Languedoc, Henri foi preso e morreu nas masmorras do conde.

Pelo que dele apurou Vacandard, tratava-se de um sujeito ainda jovem, muito culto, alto, bonitão ("pele fina, voz sonora, olhar vivo"), cabelos presos por uma tira, barba longa e dotado de excelente poder de comunicação. Andava descalço, frequentava as altas rodas da nobreza, mas falava também ao povo. "O elegante apóstolo - denuncia Vacandard (p. 225) - a todos seduzia com seu charme pessoal, especialmente os jovens e as mulheres."

Não é, pois, de se admirar que o charmoso pregador subversivo - no enfático e talvez exagerado dizer de Vacandard - tenha, por assim dizer, "descristianizado o Languedoc em menos de dez anos".

Já há algum tempo, Bernardo vinha sendo informado da calamitosa situação e até solicitado a comparecer pessoalmente para cuidar da crise que ameaçava as estruturas da Igreja na região. Foi Albéric, cardeal de Ostia e legado papal, que voltou à carga de modo mais veemente e conseguiu convencer Bernardo a aceitar o desafio. O prestigioso monge, futuro santo, contava a essa altura cinquenta e cinco anos de idade e tinha pela frente mais oito anos de vida. Sua saúde, que nunca fora boa, passava por um ponto mais baixo. Mesmo assim, se pôs a [ aminho no mês de maio para a longa e penosa viagem. Chegou a Poitiers, "à bout de torces", no dizer de Vacandard, ou seja, nos extremos limites de suas parcas -asistencias físicas. Desencorajado, pensou até em desistir da missão. Recupera-se, contudo, e seguiu viagem.

De cidade em cidade, demorando-se usualmente para pregar e informar-se da situação, Bernardo traçou em Orléans, ao que se supõe, o itinerário com destino a Toulouse. Farão parte integrante da comitiva Henri, não o monge apóstata, - bispo de Chartres e legado papal, bem como Geoffroy de Leves e Raymond, de Agen.

Já se dirigira antecipadamente ao conde, por carta, na qual dissera:

Irei, ainda que bastante enfermo do corpo, a essa região particularmente arrasada pelo selvagem Henri. Expulso de toda a França por causa de sua malícia, ele aí encontrou asilo e desencadeou com toda segurança seu furor contra o rebanho do Cristo em seus domínios. Cabe ao senhor, ilustre príncipe, decidir se isso convém ou não à sua honra. Quanto ao mais, não me admiro de que aquela ardilosa serpente haja conseguido enganá-lo, dado que, se ele não possui a virtude da piedade, tem toda a aparência de possuí-la.

O tom é severo e típico de um convicto defensor da sua Igreja. Há algum tempo vinha o papa preocupado com o que acontecia no Languedoc, onde se criara coisas "impensável e inadmissível aos olhos de todo sincero católico - escreve Oldenbourg (p. 122). Aperigosa seita atingira o próprio coração da cristandade, como enfatiza a autora. Tratava-se de uma região tradicionalmente cristã, próspera, influente, ativo centro de atividades comerciais, núcleo de uma civilização universalmente admirada e que, no entanto, estava prestes, não apenas a prescindir da Igreja católica, mas rejeitar abertamente sua autoridade em proveito de uma religião nova. E o que acrescenta Oldenbourg.

Em suma, na avaliação das autoridades católicas, estava em risco, não só a Igreja, mas toda a estrutura da civilização medieval, administrada àquela época pela força de um tácito pacto político-religioso dotado de incontestável poder de pressão.

Na ansiosa tentativa de evitar um colapso total, o papa dirige veementes apelos aos poderosos da época - especialmente ao rei de França -, e não poupa advertências e até veladas ou explícitas ameaças.

Vale-se dos recursos de que dispõe, enviando à crítica região afetada, seus legados, escolhidos entre monges cisterciences da ordem reformada por são Bernardo. "Essa ordem - esclarece Oldenbourg (p. 131) - representava, na Igreja, o partido da austeridade, da reforma dos costumes e da disciplina, o partido da intransigência, a força atuante da Igreja". A palavra deles, no entanto, é recebida com indiferença. Por isso, renovam-se as esperanças, quando o próprio Bernardo parte para o Languedoc.

Partindo de Orléans, Bernardo dá uma volta por Bergerac, Périgueux, Sarlat e Cahors, precedido sempre por sua reputação de santidade e sendo "recebido como um anjo descido dos céus", como assinala Vacandard (p. 233). A curiosidade atraía grande número de pessoas; o carisma e a eloquente palavra do abade faziam o resto, trazendo de volta ao rebanho - pelo menos ali, no calor da emoção - numerosas ovelhas transviadas.

Em Sarlat, por exemplo, onde se previra alguma resistência, Bernardo lançou mão de recurso extremo, que Vacandard caracteriza como "meio de conversão extremamente delicado".

Foi assim: apresentaram ao monge alguns pães para que ele os abençoasse. Bernardo pediu aos céus nada menos que um milagre. "Eis aqui - disse, dirigindo-se ao povo - o sinal pelo qual vocês poderão reconhecer a pureza de nossa doutrina e o erro dos heréticos. Os doentes que comerem deste pão ficarão curados."

Evidentemente apreensivo ante a amplitude da promessa, o bispo de Chartres tentou aliviar a responsabilidade, acrescentando ser necessário que o pão fosse comido com fé. "Não, não - declarou Bernardo -, qualquer pessoa que o coma ficará boa, para que se saiba que somos verdadeiros enviados de Deus."

Tamanhas eram a confiança e a convicção do pregador, que o povo nem esperou para conferir o milagre: converteu-se na hora.

Bernardo e seus companheiros chegaram a Toulouse em meados de junho (1145) e foram recebidos com as homenagens de praxe. Por via das dúvidas e sem disposição para enfrentar o desafio, Henri, o monge herético, preferiu desaparecer discretamente. Sua fuga proporcionou a Bernardo o tema central de sua pregação. Que apóstolo era aquele que temia o testemunho de um debate público? Além disso, o eminente pregador contava com a expectativa de que toda aquela gente, ainda que momentaneamente seduzida pela heresia, guardasse no coração "um resto de religião", no dizer de Vacandard.

Mas a carismática eloquência do pregador não produziu os esperados resultados junto aos teimosos toulousianos. Bernardo queixou-se docemente a Deus.

Parece que faltava um 'milagre'. O que logo aconteceria. Ao cair da noite, alguém pediu-lhe que fosse atender a um cónego gravemente enfermo, paralítico das duas pernas e que não contava mais com os recursos da medicina da época, da qual ele próprio fora praticante. O doente queria se confessar com Bernardo e ousou pedir-lhe que o curasse. O abade de Clairvaux ouviu-lhe a confissão e se emocionou com o apelo do homem, já desenganado, à espera da morte. Ao sair, reiterou suas 'queixas' a Deus: "Senhor - orou - esta gente deseja um sinal. Não conseguiremos de outro modo sua conversão. Até quando tardareis a vos mostrar?"

Diz-se, com base em testemunha ocular (Vacandard, p. 235), que na mesma hora o homem levantou-se da cama e foi para a Igreja cantar o Te Deum, junto de seus companheiros.
Estava dado o sinal. No dia seguinte, a igreja transbordava de gente. Todos queriam ver e ouvir o taumaturgo e "os toulousianos se converteram em massa".

Mas nem tudo eram flores.

Rumo a Albi, a comitivia passou por Verfeil, "verdadeiro ninho de heréticos", onde o clima era ostensivamente hostil a Bernardo, que ainda não experimentara nenhum fracasso total nos seus apelos ao povo do Languedoc.
Com apoio nos textos muito consultados e citados de Guillaume de Puy-aurens, Vacandard diz que Bernardo teria amaldiçoado a cidade rebelde. Sacudiu o pó de suas sandálias, deixou-a para abrigar-se num lugarejo vizinho, que ficaria com o nome de Vila São Bernardo.

Verfeil - folha verde - prestava-se à maldição. O abade teria dito: "Viride a dessiccat te Deus!", ou seja, "Folha verde, que Deus te desseque!". Pelo que consta, a praga 'pegou'. Em poucos anos, as famílias ricas locais ficaram arruinadas e toda a região, reduzida a extrema pobreza. Setenta e cinco anos mais tarde, passando por ali e contemplando a desolação, são Domingos lembrar-se-ia inevitavelmente do abade de Clairvaux.

A campanha de Bernardo no Languedoc não obteve o esperado êxito, de vez que a Igreja se veria forçada a suscitar contra a heresia, que continuava a expandir--se. a Cruzada de 1209, sessenta e quatro anos depois, e, como nem isso sido suficiente, a Inquisição, instituída oficialmente em 1233. Ao que tudo indica, o prestigioso abade chegara tarde demais; não havia como deter a heresia que enraizava mais profundamente do que se julgava no imaginário popular.


Por isso, historiadores laicos, notadamente entre os mais recentes, não hesitam no emprego da palavra fracasso, pura e simplesmente, sem nuanças ou gradações, para avaliar a tentativa do futuro santo. Se você lê, no entanto, apenas Bernardo de Claraval, de Ailbe J. Luddy (Editorial Aster [1959?] Lisboa, tradução do original inglês Life and Teachings of St. Bernard, por Eduardo Saló), ficará com a impressão de que a pregação de Bernardo alcançou o mais pleno êxito, liquidando com a heresia no sul da França. O capítulo em que o assunto é tratado intitula-se caracteristicamente "Completo triunfo sobre os hereges".

"Henrique (o monge herético) foi preso pouco depois de o santo deixar Languedoc - escreve Luddy, em conclusão (p. 460) - e parece haver permanecido o tempo que lhe restava de vida na prisão." A heresia desapareceu com o herege para romper de novo de forma mais intensa um quarto de século mais tarde, quando já não havia um são Bernardo para atacá-la.

Referindo-se ao êxito que coroou o zelo e a eloquência do santo abade, Ra-tisbonne diz: "São Bernardo refreou a erupção da heresia do século doze. Que teria sucedido se existisse um São Bernardo no século dezesseis? Que sucederia se existisse agora?" - Histoire, II, 182.

Especulação por especulação, podemos também alinhar as nossas. Que sucederia, recorrendo-se ao conceito das vidas sucessivas, se Bernardo, renascido, fosse situado no contexto da Reforma Protestante? Estaria contra ou a favor? Onde estaria e o que estaria fazendo o antigo abade, novamente renascido, no século vinte, por exemplo, quando o próprio conceito de religião vem sendo escrutinizado, revisto, reformulado, contestado ou simplesmente ignorado quando não triturado pela crescente síndrome de alienação espiritual em que vivemos?

Além do mais, a verdade é que, por mais poderosos que tenham sido seu carisma e sua oratória, Bernardo não reduziu a heresia ao silêncio obsequioso, a fim de reabrir os amplos espaços incontestados que a Igreja estava habituada a ocupar. Com as Cruzadas e a Inquisição, mais tarde, exterminou-se o herege, não as idéias que pregavam ou os sonhos que sonharam.

O livro de Luddy é um panegírico e, por isso mesmo, pouco atento à verdade histórica, de vez que o objetivo de tais escritos é o de ressaltar as excelentes virtudes de seus heróis, o que deve ser respeitado, como louvável testemunho de admiração. A história, como qualquer outro pronunciamento, pode e deve ser também opinativa, mas o leitor deve ficar sabendo onde fica a informação pura e desataviada e onde se planta a opinião do autor sobre o que relata. São coisas diferentes. De qualquer modo, convém acrescentar que o livro de Luddy traz o Nihil obstat e o Imprimatur do bispado de Coimbra, datado de 14 de dezembro de 1959.

Vacandard, abade e capelão do Liceu de Rouen, é também grande admirador de seu biografado; a obra foi premiada pela Academia Francesa, o que atesta sua boa qualidade literária, e mereceu a honra de um breve do papa Leão XIII. Sua visão, contudo, é mais moderada do que a de Luddy.

Ao concluir o módulo no qual narra a missão de Bernardo ao Languedoc, Vacandard informa que, pouco depois de chegar de volta a Clairvaux, o abade soube da prisão de Henri, o monge apóstata condenado a passar o restante de sua vida nos calabouços do bispo de Toulouse. Não consta que seus antigos seguidores tenham manifestado qualquer interesse por sua sorte, ou melhor, sua falta de sorte. "O silêncio e a maldição - comenta Vacandard (p. 240) - caíram sobre seu nome, até o dia em que o protestantismo reabilitou sua memória, saudando nele um precursor da reforma."

O biógrafo de Bernardo escrevia a um tempo - a edição de que me sirvo está datada de 1920 e o exemplar faz parte do sétimo milheiro de exemplares -em que eram frequentes em textos católicos os ataques, às vezes impiedosos e azedos, à Reforma do século dezesseis. Tanto quanto sei, já não há tanta rejeição e hostilidade, pelo menos explícitas, a partir do Concílio Vaticano II, convocado por João XXIII, e que, no dizer de alguém, fez soprar um vento mais forte que escancarou as janelas do Vaticano, que não mais se fecharam hermeticamente, como dantes.

Vacandard não dá, contudo, por liquidada a heresia languedociana, cujo sucesso atribui exageradamente aos esforços pessoais de Henri.

Como vimos em Anne Brenon, pelo menos desde o ano 970, na carta de Cosmas, o Padre, se menciona uma heresia dualista que estava sendo pregada em Bizâncio e na Bulgária, cento e setenta e cinco anos, portanto, antes da incursão de Bernardo pelo Languedoc. A heresia não havia, pois, começado com Henri e nem sua prisão liquidava com ela, como se poderia crer se tivéssemos apenas textos semelhantes ao de Luddy.

Vacandard acha justa a punição inflingida ao monge, considerando-a "absolutamente conforme os costumes do tempo, aliás, merecida" - acrescenta [p. 240).

O próprio Bernardo estava certo de que a heresia não fora extirpada e, segundo Vacandard, nem acreditava na sua extinção a curto prazo, dado que recomendava as autoridades de Toulouse a perseguição aos líderes remanescentes, deveriam ser feitos prisioneiros ou, pelo menos, que fossem "caçados de vossas paragens, pois é perigoso dormir na vizinhança de serpentes".

Para o diligente biógrafo do futuro santo, o relato de Geoffroy - cronista oficial que acompanhava o abade nas suas andanças - tem um colorido de otimista confiança "da qual o historiador não partilha". E pouco provável que a maioria dos toulousianos se tenha convertido à ortodoxia católica, por mais eloquente que tenha sido a palavra do grande pregador. Como o tempo haveria de confirmar, a missão de Bernardo - no entender de Vacandard - terminou antes que ele pudesse ter concluído ou consolidado sua obra. "Seria preciso pelo menos um ano inteiro a mais para assegurar definitivamente o triunfo da ortodoxia em Albi e em Languedoc." (p. 238)

No meu entender, o próprio Vacandard demonstra exagerado otimismo. A idéia de reformulação do cristianismo era mais forte do que se supunha, não apenas àquela época, mas, pelo que podemos perceber, até hoje. O projeto dos cátaros frustrou-se porque se levantaram contra ele não somente os poderes religiosos, civis e militares reunidos na Cruzada, como o terrorismo ainda mais implacável e cruel da Inquisição. Na realidade, do ponto de vista religioso - se assim podemos dizer - a Cruzada fracassou. Ou não teria sido necessário inventar a Inquisição. O 'sucesso' da Cruzada foi meramente político, pelas conquistas que promoveu em benefício direto ou indireto da coroa francesa, como reconhecem os historiadores modernos.

Bernardo certamente não aprovaria tais métodos, mas tanto estava certo de que era necessário dar continuidade ao seu trabalho que, reiterando conselhos que lhes passara de viva voz, recomendava aos toulousianos que não acolhessem pregadores desconhecidos sem as devidas credenciais do papa e aprovação do bispo local. Tais 'intrusos' podem ter a aparência piedosa mas não a virtude correspondente. Eles "misturam novidades profanas às palavras celes¬tes, o veneno ao mel".

O biógrafo duvida de que esses conselhos tenham sido seguidos à risca pelos toulousianos. "O sonho do abade de Clairvaux não se realizou." A heresia henriquiana propriamente dita, na verdade, desaparecera, mas foi para se mesclar e se confundir com outra heresia ainda mais perigosa. Vinte anos mais tarde - prossegue (p. 241) - o maniqueísmo, fortalecido pelas tentativas de Pierre de Bruys e de Henri desencadeava seu furor por todo o Languedoc. Bernardo não previu esse espantoso flagelo ou, se o fez, morreu com a satisfação de havê-lo exorcismado, tanto quanto isso estava no poder de um homem fazê-lo.

Temos observado em Vacandard13 e outros autores, principalmente católicos, constantes referências às características maniqueístas das heresias do ano mil que, pouco a pouco, iriam se definindo melhor como catarismo, e isso nos leva a algumas reflexões adicionais que julgo oportuno colocar neste ponto, embora o tema seja tratado em maior profundidade adiante, neste livro.

Zoé Oldenbourg e Arno Borst não insistem nesse aspecto.

Borst destaca prioritariamente os aspectos gnósticos e dualista das heresias da época. O maniqueísmo figura no seu texto de modo meramente tópico. "A mais clássica e rigorosa forma de gnose dualista - escreve à p. 58 -, o maniqueísmo, tor-nou-se, sendo ele próprio uma religião específica, o tipo perfeito da heresia cristã."

(13) O capítulo XXV de Vacandard, Vol. II, é intitulado "Bernardo e as seitas heréticas" e se compõe de dois módulos: 1. Refutação das heresias neomaniqueístas, e 2. Viagem ao Languedoc

Em nota de rodapé, na página seguinte, ressalva enfaticamente: 1 .Os maniqueístas têm sido considerados como precursores imediatos dos cátaros por autores que não estavam bem informados acerca destes últimos. 2. "Espero - escreve mais adiante, nessa mesma nota - poder demonstrar que o título de maniqueístas, tão frequentemente empregado hoje - seu livro, como vimos, é de 1952 -, é completamente inadequado para os cátaros."

Oldenbourg sugere (p. 48) que as heresias surgidas nas regiões rurais do Languedoc talvez fossem mera "sobrevivência do misticismo celta cristianizado". É relevante tal observação no sentido de que lembra - como em outros autores -as influências célticas sobre o que seria o catarismo. Ou, para colocar a mesma idéia de outra maneira: os cátaros estariam, a meu ver, recuperando o cristianismo primitivo, sem dúvida, mas no contexto daquelas origens, princípios ideológicos - mais do que teológicos - que já haviam figurado em antigas religiões esquecidas. Os pensadores cátaros não fizeram uma salada mais ou menos aleatória de idéias colhidas aqui e ali, no tempo e no espaço; eles elaboraram um corpo doutrinário, grupando os mesmos conceitos fundamentais que sempre participaram e participam até hoje de qualquer contexto gnóstico que se preze: preexistência e sobrevivência do ser, reencarnação, imortalidade, responsabilidade pessoal de cada um por seus atos. Isso aponta, por conseguinte, não para um critério de 'salvação' coletiva, mas para um trabalho pessoal, individualizado, dentro de si mesmo, em busca daquilo a que o Cristo chamava de o Reino de Deus.

Os celtas, para mencionar apenas um daqueles antigos cultos, estavam entre os que preconizaram modelo semelhante. E os gnósticos também, cerca de setecentos anos antes dos cátaros.

Daí, em parte, como adverte Oldenbourg, a dificuldade em convencer os eréticos do Languedoc de que estavam errados. Os argumentos doutrinários batiam, no seu dizer, "contra um muro inabalável", de vez que os cátaros não eram católicos dissidentes; tinham, ao contrário, perfeita consciência e convicção de pertencerem a uma religião "que jamais teve coisa alguma a ver com o catolicismo, a uma religião mais antiga do que a Igreja".

Eu estaria em desacordo com Oldenbourg se ela houvesse empregado o termo cristianismo em lugar de catolicismo, dado que o cristianismo do Cristo, ou melhor, de Jesus, incluía aqueles mesmos conceitos aos quais temos nos referido reiteradamente aqui e que foram mais difundidos e praticados e, há muito mais tempo, no Oriente.

Na verdade, como lembra Oldenbourg (p. 49), a maior parte das heresias na Europa ocidental, a partir do século 11, eram tidas por seus contemporâneos como maniqueístas, provavelmente por causa da insistência num mal-entendido dualismo.

A autora ressalva, no entanto, que isto constituía 'simples maneira de dizer", dado que esses heréticos não admitiam qualquer vinculação com Mani. O que vamos ver confirmado em Anne Brenon daqui a pouco.

Para Oldenbourg, portanto, os cátaros "nada tinham a ver com os maniqueístas e nem com os que se intitulavam cristãos". Estou admitindo aqui a palavra cristão, porque no texto de Oldenbourg, ela figura entre aspas, como que a chamar a atenção para o fato de que se faziam passar por cristãos, quando, na verdade, eram católicos.

Proponho ficarmos um pouco mais com essa autora, dado que neste como em outros aspectos fundamentais temos umas tantas concordâncias, o que muito me alegra. Mencionando Niel, destaca que os historiadores modernos - seu livro, convém lembrar, é de 1959 - chegam até a considerar que "o catarismo não é uma heresia, mas uma religião que nada teria em comum com o cristianismo". (Destaquei.)

E corrige, dizendo a seguir que seria mais exato dizer que a heresia cátara "não teria nada em comum com o cristianismo tal qual dez séculos de história da Igreja fizeram dele", (p. 49. Também aqui, o destaque é meu.)

Estou de pleno acordo com sua oportuna e competente ressalva. Leitor e leitora, porventura interessados nas minhas reflexões a respeito dessa temática, devem ler o livro Cristianismo - a mensagem esquecida.

Antes dos cátaros, os gnósticos tentaram uma releitura do cristianismo que, ao tempo deles, já começava a trilhar os descaminhos ou, no dizer de Luciano dos Anjos, o atalho.14 Tais idéias, igualmente tidas por subversivas pelos chamados Pais da Igreja - lembra, ainda, Oldenbourg - foram condenadas e como que se recolheram ao silêncio, mas apenas por algum tempo. Nunca foram totalmente apagadas da memória dos povos e, de tempos em tempos, ressurgem, teimosa e até obstinadamente, como vimos testemunhando, expondo-se a sucessivos reexames por parte da história, especialmente a das idéias e, entre estas, as de natureza religiosa.

Se é que ainda precisamos de mais argumentos, temos, ainda, dois testemunhos de peso para nos convencer de que os cátaros nada têm a ver com o maniqueísmo: Anne Brenon e Michel Roquebert.

Brenon liquida o assunto em pouco mais de duas páginas, sob o sugestivo título de "Reboliço acerca dos maniqueus". Em justa e merecida homenagem, diz ela que os fundamentos e manifestações do catarismo tornaram-se conhecíveis a partir dos estudos de René Nelli e Jean Duvernoy. O primeiro, ao extrair dos tratados dualistas a essência da filosofia deles, e o outro que, no primeiro volume de La Religion, revelou minuciosamente a eclesiologia e as práticas da igreja cátara.

Referindo-se às disputas ideológicas da época, esclarece Brenon (p. 35) que, tanto valdenses - que tinham suas diferenças com os cátaros - quanto católicos, combatiam o adversário comum, acusando-o de dualista e maniqueu. Esta palavra, como também o termo ariano, teria "escorrido por si mesma", da pena de algum clérigo erudito nutrido pela literatura patrística.15 Os termos eram considerados suficientemente insultuosos. Além do mais, poupavam maiores esforços de pesquisa e argumentação, de vez que podiam ser reutilizados no combate aos desvios doutrinários assim catalogados, antigas refutações já prontas e consagradas com os argumentos necessários nos seus devidos lugares.

Mas, como adverte Brenon, a controvérsia entre valdenses e católicos contra o catarismo tinha de se readaptar e trabalhar melhor as fontes patrísticas consultadas. Em busca de estratégia mais eficaz na luta ideológica contra o adversário comum.

De fato [conclui a historiadora (p. 36)] os grandes "doutores universais" do cristianismo oficial, os Bernard de Clairvaux [são Bernardo], os Allain de Lille, cederam com vantagem, a pena aos "práticos" - que haviam tido ao vivo experiência com a dialética dos cátaros - e a especialistas que haviam meditado longamente os argumentos contidos nos tratados dualistas.

Brenon se refere, neste ponto, aos valdenses convertidos ao catolicismo, rara o qual levaram sua experiência pessoal com a temática dos cátaros.

No entanto, nenhum resultado se teria obtido no combate ao catarismo -em o recurso às armas e, principalmente, à repressão inquisitorial. Passara, portanto, a época dos Bernardos e dos Allain de Lille. E, com eles, o argumento de que os cátaros seriam nova edição viva dos maniqueus.

Pouco antes (p. 28), Brenon já firmara posição à sua moda enfática de expressar-se: os cátaros pregavam exclusivamente sobre textos cristãos, nem uma frase da abundante literatura religiosa de Mani - amplamente difundida pelo Oriente - foi copiada ou utilizada por pregadores cátaros. E mais; nem um traço dos ensinamentos budistas. O fundamento de toda essa pregação era a mensagem do Cristo. "O catarismo - dirá ela mais adiante (p. 33) - foi uma religião cristã baseada numa interpretação dualista das escrituras."

Pregavam eles um "cristianismo diferente" (p. 32). "Seus conhecimentos -: -prossegue -, sua familiaridade e a prática com os textos não eram gratuitos, e sim sustentados por um pensamento e uma lógica vigorosos e convincentes."

Pouco acima, nessa mesma página, a historiadora escrevera, com inequívoco toque de admiração e respeito, que os pregadores cátaros não podiam ser considerados laicos, amadores, despreparados; eram, ao contrário, "profissionais, aos pela Igreja de Roma justamente pela ampla cultura teológica e o hábito aposentarem argumentos fundados na Escritura". No prefácio escrito para a nova edição (1995) de Ecritures cathares, de Nelli, Brenon reitera sua convicção nesse sentido, ao escrever (p. 12) que textos de autoria dos chamados Pais da Igreja, grandes teóricos e formuladores da doutrina Católica. Provavelmente, você não achará duas listas que citem o mesmo número e os mesmos : mes, ou, ainda, que cubram idêntico período onde começa a literatura patrística e onde termina. Há quem diga que Bernardo de Clairvaux teria sido o último dos Pais da Igreja. Outros encerram a fase patrística bem antes dele.

(14) Ver seu livro O atalho (Publicações Lachâtre), no qual cuida dos desvios que, a seu ver, estariam ocorrendo no movimento espírita brasileiro.

Os cátaros medievais não tinham, certamente, qualquer necessidade de recorrer aos textos maniqueus [que, aliás, eles ignoravam e dos quais jamais se utilizaram], para constatar que a Igreja romana não seguia mais o exemplo dos apóstolos, praticava uma piedade de caráter formalista e supersticioso e se envolvia nos negócios do mundo.

Não há, pois, nada de maniqueísmo no catarismo - apenas uma releitura dualista dos evangelhos.

Nesse mesmo tom, Michel Roquebert define logo na Introdução, a linha de abordagem por ele adotada em seu livro, pulverizando erros mais sutis ou mais grosseiros de intepretação cometidos por autores desatentos ou mal informados. Um desses, talvez o mais comum, a seu ver, foi o de considerar o catarismo seita neomaniqueísta, numa retomada da religião de Mani, do século terceiro, em pleno coração da civilização cristã ocidental.

Ainda que se admita - como o faz Roquebert - a existência de alguns pontos em comum entre as duas correntes religiosas, o catarismo não é - como foi proposto por várias "gerações de historiadores" (Roquebert, p. 22) e ainda hoje insistem alguns autores - um prolongamento ou desenvolvimento do maniqueísmo que passou pelo bogomilismo dos Bálcãs.

Se havia alguma dúvida acerca desse aspecto, não mais se justifica a partir da descoberta do Livro dos dois princípios, pelo padre dominicano Antoine Dondaine, em 1939, em Florença. A obra é um tratado de teologia, ou melhor, resumo redigido em 1250 da obra original de João de Lugio (Giovanni?), teólogo cátaro de Bérgamo, na Itália. No mesmo ano (coincidência?) descobriu-se, em Praga, um tratado cátaro anônimo, atribuído a Durand de Huesca, ao que tudo indica, de origem occitana, datado, provavelmente, do início do século 13.

São estas, no dizer de Roquebert "preciosas descobertas, que proporcionaram, enfim, acesso direto à doutrina cátara", que até então havia sido estudada através dos reflexos projetados em textos gravemente comprometidos por deformações insanáveis, de autoria de seus mais ferrenhos adversários.

Teremos oportunidade de comentar esses e outros textos mais adiante, com base em Ecritures cathares, de René Nelli.

Como assinala Roquebert, para admiração de muitos, os escritos cátaros "não deixam absolutamente nada a transparecer que possa evocar qualquer influência do maniqueísmo". (p. 23) "Ao contrário - lê-se adiante -, eles não cessam de se afirmar cristãos, e nada menos, nada mais."

Ante essa enfática avaliação dos que sabem o que estão dizendo, vamos, portanto, reiterar aqui: os cátaros nada têm a ver com o maniqueísmo.

E' admissível, portanto, que Bernardo, no século doze, possa ter considerado o catarismo como seita maniquéia, mas tal vinculação é, hoje, inaceitável.

Hermínio C. Miranda

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