Estudando o Espiritismo

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domingo, 16 de setembro de 2012

Do Princípio inteligente por Herculano Pires


Tratei até agora da relação direta do pensamento de Deus com a matéria. Essa relação é necessária, da mesma maneira que é necessária a relação direta do pintor com o quadro que ele executa, e portanto do trabalho que ele realiza no quadro, orientado pelo seu pensamento. Na verdade, o seu pensamento se projeta no quadro e ali se materializa, passa do plano do inteligível para o plano do sensível. Ao completar sua obra, cessa a relação direta ou ativa, mas permanece a relação passiva ou indireta. Assim, a relação direta caracteriza o ato de pintar, ou de criar. Pode-se alegar a existência de intermediários: as mãos, a palheta e o pincel, a tinta. Mas convêm lembrar que todos esses instrumentos fazem parte da obra em execução, sobre a qual o pensamento do pintor atua diretamente.
Na ação de Deus sobre a matéria o processo é o mesmo. O pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe estrutura, através da qual temos a passagem do pensamento do plano do inteligível para o plano do sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o inteligível é o intelecto divino e o sensível é o plano do sensório, das sensações humanas. Dessa maneira, Deus materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade do campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou ato inicial da criação temos a ação direta e ativa do pensamento divino estruturando a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge um elemento novo que é designado pela expressão princípio inteligente. O pensamento divino ligado à matéria adquire autonomia, sem com isso desligar-se da fonte que o alimenta. Transforma-se na mônada, elemento básico e estrutural da matéria, de que são compostas as próprias partículas atômicas. A palavra mônada procede de Pitágoras, foi empregada por Platão como idéia e desenvolvida modernamente por Leibniz e Renouvier como uma substância inteiramente simples (pura indivisível e refratária a qualquer influência exterior. A mônada é dotada de uma força interior que a transforma, de potencialidades que se desenvolvem continuamente e de capacidade de percepção e vontade. As mônadas são diferentes entre si no tocante a essas potências internas.
Estas correlações filosóficas são necessárias para entender-se o que é o principio inteligente da concepção espírita. Trata-se, como se vê, do princípio básico de toda a realidade, responsável pela formação dos reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida e de todas as faculdades vitais e anímicas dos seres. O admirável poder de intuição dos gregos captou não só a existência dos átomos, como também a das mônadas, que a Ciência atual já está conseguindo atingir nas profundezas da misteriosa estrutura da matéria, na pesquisa sobre as partículas atômicas. A teoria espírita do princípio inteligente é explicada de maneira sintética no “O Livro dos Espíritos”. No item 23 dessa obra lemos o seguinte: Que é o espírito? É o princípio inteligente do Universo. Seguem-se outras explicações nas quais a inteligência se define como um atributo essencial do espírito. Geralmente confundimos a substância (espírito) com a inteligência, que é seu atributo.
Colocado assim o problema, parece-me explicada a razão pela qual os Espíritos Superiores não esmiuçaram essa questão fundamental. Na própria tradição filosófica, desde bem antes da era cristã, já dispúnhamos dos elementos necessários de intuições capazes de nos fornecerem os dados para uma equação futura. Faltava-nos, porém, o desenvolvimento, que só mais tarde poderia ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade. Atualmente já podemos compreender com mais clareza a dinâmica do processo criador. A teoria filosófica da mônada, que antes poderia ser considerada como simples hipótese inverificável, adquire hoje a condição de uma teoria científica ao alcance da comprovação pela pesquisa. Teorias como a do físico inglês Dirac, par exemplo, segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano de elétrons livres, ou a dos físicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz violácea proveniente dos primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades novas que as pesquisas espaciais estão abrindo nesse campo. O mesmo se pode dizer da teoria dos campos de força que preenchem todo o espaço sideral.
É evidente que, diante dessas novas posições conceptuais, toda a nossa cultura entra em crise, prenunciando o advento de um novo mundo. A inteligência humana se abre para dimensões mais amplas e profundas da realidade universal, exigindo a reformulação de conceitos e estruturas culturais envelhecidas. Não podemos mais pensar em Deus como uma figura humana, nem do ponto de vista formal, nem do substancial. Só podemos considerá-lo como o Ser Absoluto, como a Inteligência Suprema, mas assim mesmo sem lhe atribuir nenhuma das limitações humanas. Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, sentem isso na própria pele, mas faltam-lhes os dados para uma equação mais positiva do problema. Divagam através de suposições ameaçadoras e caem irremediavelmente num torvelinho de contradições. Se tivessem a humildade de consultar a Filosofia Espírita, essa pedra rejeitada da parábola evangélica, encontrariam nela a pedra angular do novo edifício a construir.
O Espírito a que a Bíblia se refere em numerosos tópicos e que nos Evangelhos toma o nome de Espírito Santo é o Espírito de Deus em sua manifestação universal. A Criação tem dois aspectos, o material e o espiritual. O sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de barro, o Adão terreno, o ápice da criação nos mundos em desenvolvimento, como a Terra. O sopro de Deus nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio da vida e da inteligência, é a ligação do espírito com a matéria na formação da mônada. No pensamento divino todo o quadro da criação estava presente desde o princípio. E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o modelo da realidade (o mundo da rés, das coisas) que devia projetar-se no Infinito. Por isso, as mônadas diferenciadas, com características específicas, seriam semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura e contínua, dos conteúdos essenciais de cada uma delas. A mônada é a semente do ser, da criatura humana e divina que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.
Não se pode conceber, em nossa relatividade humana, mais grandiosa e perfeita concepção do ato criador. Podemos perguntar porque Deus, que é o supremo poder, precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas o Espiritismo ensina que a nossa relatividade decorre de necessidades nossas e não de Deus. O que para nós são séculos e milênios, para Deus pode ser apenas aquele instante que, para Kierkegaard, era o encontro do tempo com a eternidade. Um instante de profundidade e extensão imensas, que resume para o homem todas as suas existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos são acessíveis: a espiritual e a material.
É, sem dúvida, espantoso pensar, como Gustave Geley, que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o grão de areia aos mundos que giram em torno dos sóis, possui a potencialidade da consciência em desenvolvimento no seu interior. Mas quando compreendemos que a mônada, síntese de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal, sobre a qual se apóia toda a realidade – o que corresponde à concepção atômica da Ciência em nossos dias –, nossa mente começa a abrir-se para um entendimento superior. Se o poder do átomo nos espanta, a potencialidade da mônada nos aturdiria. E ambos esses poderes nada mais são do que fragmentos do poder de Deus. Quando pensamos nisso, a teoria do princípio inteligente começa a revelar-nos a grandeza da doutrina espírita.
E no entanto os seus fundamentos estão nos princípios evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos, filósofos, místicos e pregadores escreveram e falaram sem cessar, numa catadupa de páginas e palavrórios ao longo de dois mil anos? Essa opacidade da inteligência humana, esse embotamento da capacidade de compreensão poderia fazer-nos descrer das potencialidades do principio inteligente se não soubéssemos que o instinto gregário do homem o leva à imitação e à repetição dos papagaios. Quando Kardec se atreveu, utilizando-se de todos os recursos de sensatez e equilíbrio, apoiando-se na cultura do Século XIX – para não provocar reações precipitadas que lhe prejudicariam a obra – a publicar “O Livro dos Espíritos”, todos os anátemas da Religião, da Ciência e da Filosofia caíram sobre ele como as bombas norte-americanas sobre o Vietnã. Somente agora se abre uma perspectiva favorável, em todos aqueles campos reacionários, para uma possível compreensão do seu gigantesco trabalho de reposição das coisas em seus lugares. Mas então aparecem os que pretendem reformar, atualizar e tecnilizar as suas obras ao invés de estudá-las e aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto necessitamos do tempo para que a mônada oculta se abra e se atualize em nós.
Todas as coisas têm sua origem no mundo das idéias, como Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu claramente. Nos planos superiores do Universo não se usa a linguagem articulada das hipóstases inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepática pura. Sócrates descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no fundo de cada palavra. Podemos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente divina a idéia do Universo delineia-se perfeita, mas a projeção dessa idéia no plano inferior da matéria tem de vencer os obstáculos e as resistências da materialidade. Foi o que Hegel viu e descreveu com precisão em sua teoria estética, mostrando a luta do belo para se sobrepor, no tempo, às imperfeições materiais.
O mesmo se dá com o princípio inteligente, que, para vencer a opacidade da matéria, para inteligenciá-la, segundo Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas, podemos perguntar, porque Deus não fez em condições transparentes a matéria, ao invés de opaca? O Espiritismo explica que a matéria se torna transparente na proporção em que visualizamos as planos superiores, de tal maneira que a confundimos com o espírito. Isso nos mostra que a técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligência considerou como o Nada. Kant teve razão ao localizar os limites da razão humana no momento em que cessam as contradições dialéticas. Mas nesse momento, nessa linha divisória entre o mundo real e o mundo ideal, começa a razão angélica. Os homens transformados em anjos – não com asas nem com estrelas na fronte, mas com a mente e o coração purificados – passam a ver e a compreender a realidade pela intuição direta e global. Nesse momento descobrem a perfeição do Universo, aquela perfeição que, desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas que nas hipóstases materiais tornava-se irreconhecível como a Vênus de Milo coberta de terra e lama quando a arrancaram do subsolo.
O próprio tempo desaparece nesse momento. Não há mais necessidade do véu de Ísis da temporalidade para encobrir a verdade das coisas e dos seres. Mergulhamos no eterno, que não é estático e inerte como o supomos, mas tem a dinâmica e a lucidez de que o pensamento nos pode dar um vago exemplo. Kardec verificou, em suas pesquisas espíritas, que a esquematização do sensório humano, com a divisão das faculdades sensoriais em órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo, não existe para os espíritos libertos das impressões materiais. Os espíritos percebem, vêem e sentem de maneira global, por todo o seu ser em sintonia com toda a realidade. As deslocalizações e transferências das sensações nas práticas hipnóticas comprovam, em nosso plano, a veracidade dessa descoberta efetuada nas suas pesquisas mediúnicas. Seu ensaio sobre a sensação nos espíritos, que se encontra no livro básico da doutrina, é uma peça de esclarecimento lúcido e didático desse problema.
As pesquisas atuais da Parapsicologia, que até agora só puderam refazer o caminho percorrido por Kardec, representam uma confirmação da validade das suas afirmações de mais de um século. Apesar disso, e no interesse inferior da defesa de posições sectárias, toda uma multidão de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata de desmentir o Espiritismo através de capciosos argumentos temperados na panela da mentira ou nos caldeirões da trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá que a verdade triunfe, pois a verdade é, existe por si mesma e não pede licença a nenhum censor religioso ou ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos os que se fizerem dignos dela.

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